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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

EM PAUTA

 

A poética do tempo/espaço em "A mesa";

 

The poetics of time/space in "The table";

 

 

Izidoro Blikstein*

Universidade de São Paulo
Fundação Getulio Vargas de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O poema "A mesa";, numa primeira leitura, consistiria na fala de um filho dirigida a seu pai: lançando a hipótese de uma festa em homenagem ao pai, o filho passa a descrever como seria esse "grande jantar";. Mas, evidentemente, o Poeta vai muito além da mera descrição. Com efeito, ao reunir a família inteira – os mortos e os vivos – as dimensões temporais e espaciais acabam por se fundir: passado e presente se condensam num mesmo espaço e objeto, a mesa. Cabe indagar, afinal de contas: 1. Como é esse fazer poético do ubíquo e do icônico? 2. Com que mecanismo e instrumentos linguísticos o Poeta constrói essa reunião de vivos e mortos em tomo da mesa, num só tempo e espaço? 3. Por que reunir a família toda e o que busca o Poeta nesse percurso em volta da mesa? Nosso propósito, neste artigo, é responder essas perguntas.

Palavras-chave: Semiótica, Dêixis, Anáfora, Condensação, Corredor isotópico.


ABSTRACT

The poem "The table";, on a first reading, would consist in the speech of a son addressed to his father: introducing the hypothesis of a party to honor his father, the son begins to describe what this "great dinner"; might be. But it is evident that the Poet goes far beyond a mere description. Indeed, by bringing together the whole family – the dead and alive ones – the temporal and spatial dimensions end up merging: past and present are condensed in a single space and object, the table. It is worth asking, after all: 1. How is this poetics of the ubiquitous and iconic? 2. Through what mechanism and linguistic tools does the Poet build this meeting between the living and dead ones around the table, at a single time and space? 3. Why gathering the whole family and what does the Poet seek in this path around the table? Our purpose, in this paper, is to answer these questions.

Keywords: Semiotics, Deixis, Anaphora, Condensation, Isotopic corridor.


 

 

[...] que inconteste
vocação de sacrifício
pôs a mesa, teve os filhos?

(Drummond de Andrade, "A mesa";)

 

O poema "A mesa";, à primeira vista, nada mais seria do que a fala de um filho dirigida ao pai: lançando a hipótese de uma festa em homenagem ao pai, o filho passa a lhe narrar e descrever como seria esse "grande jantar mineiro";, com a presença da família inteira.

Mas... é evidente que Carlos Drummond de Andrade vai muito além da mera descrição de uma festa: a montagem de "A mesa"; ilustra um fazer poético em que a língua é utilizada na plenitude de suas funções, como a "grande matriz semiótica";, "interpretantes dos outros sistemas de significação"; (Benveniste, 1974, p. 63).

Com efeito, ao reunir a família inteira – mortos e vivos – para um hipotético "jantar mineiro"; oferecido ao pai, Carlos Drummond de Andrade supera a tal ponto as clássicas dicotomias linearidade × iconicidade e sincronia × diacronia que as dimensões temporais e espaciais acabam por se fundir: passado e presente se condensam num mesmo espaço e num mesmo objeto, a mesa, que, de início, aparentemente, está vazia. Mas... não tão vazia como parece. Ocorre que o "jantar mineiro"; deixa de ser hipotético e vira "realidade";; então, circulando em torno da mesa, como um hábil operador de câmera cinematográfica, o Poeta vai, num vertiginoso e alucinante traveling, recuperando, um a um, os membros da família, por meio de sucessivos closes.

Subitamente, graças a uma poética da iconicidade e da ubiquidade, todos estão presentes, vivos e ruidosos, em torno da mesa que, "repleta"; e "maior do que a casa";, vai-se tornando objeto de vida, na medida em que constitui o espaço de presentificação da família. Mas... cabe indagar, afinal de contas:

1 – Como é esse fazer poético do ubíquo e do icônico? Com que mecanismo e instrumentos linguísticos o Poeta vai construindo essa reunião de vivos e mortos em torno da mesa, num só tempo e num só espaço?

2 – Por que reunir a família toda e o que busca o Poeta nesse percurso em volta da mesa?

 

1. Mecanismo e instrumentos linguísticos do fazer poético

O "jantar mineiro"; em torno da mesa vai sendo tecido por um rápido e quase instantâneo mecanismo de vaivém entre instrumentos anafóricos e dêiticos.

A anáfora, sabemos, remete a um pressuposto, a um texto ou enunciado já conhecido do emissor e do receptor da mensagem; no momento do discurso, instrumentos anafóricos resgatam o passado e instalam o eixo da anterioridade. Já os instrumentos dêiticos são os embreantes espaçotemporais que, no momento do discurso, possibilitam a presentificação, a atualização ou a concomitância de quaisquer elementos na situação discursiva: pessoas (gestos, movimentos, postura, posição no espaço, ou melhor, aspectos cinésicos e proxêmicos), objetos (formas, posição, movimento etc.), contextos e atmosferas psicológicas etc.; com os dêiticos é que se estabelece no discurso o eixo do presente, do aqui e do agora.

Cabe lembrar ainda que, como processos bem abrangentes da sintaxe discursiva, anáfora e dêixis não se restringem apenas à categoria pronominal, mas se apoiam num conjunto de categorias linguísticas concatenadas entre si: pronomes, verbos, advérbios, conjunções, interjeições etc.

Pois é como o arranjo sutil desses instrumentos que o Poeta vai misturando passado e presente, ausência e presença, real e irreal, num universo ubíquo e ambíguo, em que as pessoas estão e, ao mesmo tempo, não estão.

Assim é que, embora o pai já esteja morto e o filho permaneça sozinho à volta da mesa vazia, a "conversa"; entre ambos se passa num aqui/agora, isto é, ela é presente, atual e concomitante à própria leitura do poema. Essa deiticidade é produzida pela reiteração, ao longo do poema, de formas verbais e pronominais de 2ª pessoa, pelo uso de interjeições e vocativos e, sobretudo, pelo emprego de formas verbais cujo aspecto é imperfectivo, ou não acabado (imperfeito, futuro do pretérito):

Ai, velho, ouvirias coisas
de arrepiar teus noventa.
E daí, não te assustávamos,

Vejamos como as combinações e "colisões"; entre os instrumentos dêiticos e anafóricos vão produzindo esses movimentos ambíguos de fluxo e reflexo de passado/presente, ausência/presença, real/irreal.

A – É logo nos primeiros três versos que se instaura a ambiguidade dêitico-anafórica:

E não gostavas de festa...
Ó velho, que festa grande
Hoje te faria a gente.

A hipótese de uma festa a ser oferecida ao pai esbarra em dois entraves a que o 1º verso remete, anaforicamente:

 

 

Tais pressupostos são resgatados pelo predicado não gostavas de festa, cujo tempo verbal – o imperfeito – situa o fato no passado. Mas, e aí começa a instaurar-se a ambiguidade espaçotemporal, o imperfeito, como o próprio nome indica, é o tempo da ação ou estado não acabados, vale dizer, uma ação ou estado que estão ocorrendo no passado. Por outro lado, sendo uma forma verbal de 2ª pessoa, gostavas indica um fato no presente: o filho está dirigindo a palavra ao pai. O melhor indício desse cruzamento dêitico-anafórico é a conjunção E, primeira palavra do poema: a forma e, em primeira instância, tem valor anafórico, na medida em que remete a um enunciado anterior ao momento da "conversa";; o mesmo e, contudo, enquanto faz o leitor voltar a esse pressuposto, funciona também como elo metalinguístico entre o passado e o presente, apontando para a continuação de um discurso que estava acontecendo no passado e que, aqui e agora, está recomeçando. É como se uma conversa, suspensa no tempo e no espaço, estivesse sendo retomada. As reticências colaboram graficamente para esse efeito de suspensão entre passado e presente:

 

 

B – Desfeita a suspensão, a pausa, as marcas da dêixis vão-se insinuando nos versos seguintes:

Ó velho, que festa grande
hoje te faria a gente

Nessa passagem, todas as expressões, à exceção de faria, contêm elementos dêiticos, atualizando e indicando, no cenário da "conversa";:

 

 

Esse movimento dêitico, entretanto, é reprimido pelo anafórico faria, alusivo a um fato irreal do presente (a festa), ao remeter a um pressuposto, este sim, um fato real já acontecido:

 

 

E vai-se instalando uma nova ambiguidade: embora remeta a um fato real do passado/irreal do presente, a forma verbal faria, como futuro do pretérito, pode conotar um desejo, uma hipótese ou uma possibilidade que a realizariam, se certas condições fossem preenchidas; teríamos a seguinte correlação:

 

 

Há, pois, um fluxo/refluxo dêitico-anafórico, gerador de um cruzamento passado/presente, real/irreal; o termo faria está ambiguamente situado bem no meio da tensão dêitico-anafórica:

 

 

C – A partir da ambiguidade semântica de faria, a hipótese ou, melhor ainda, o desejo de fazer a festa vai-se insinuando como um fato real do presente, reforçado por um jogo sutil de instrumentos linguísticos que, furtivamente, a princípio, e, depois, às claras, produzem um efeito de deiticidade tal que, de repente, nós, leitores, nos encontramos em pleno "jantar mineiro";. É o que se pode verificar no seguinte trecho:

E teus filhos que não bebem
e o que gosta de beber,
em torno da mesa larga,
largavam as tristes dietas,
esqueciam seus fricotes,
e tudo era farra honesta
acabando em confidência.
Ai, velho, ouvirias coisas
de arrepiar teus noventa.
E daí, não te assustávamos,
porque, com riso na boca,
e a nédia galinha, o vinho
português de boa pinta,
e mais o que alguém faria
de mil coisas naturais
e fartamente poria
em mil terrinas da China,
já logo te insinuávamos
que era tudo brincadeira.
Pois sim. Teu olho cansado,
mas afeito a ler no campo
uma lonjura de léguas,
e na lonjura uma rês
perdida no azul azul,
entrava-nos alma adentro
e via essa lama podre
e com pesar nos fitava
e com ira amaldiçoava
e com doçura perdoava
(perdoar é rito de pais,
Quando não seja de amantes).
É, pois, todo nos perdoando,
por dentro te regalavas
de ter filhos assim... Puxa,
grandessíssimos safados,
me saíram bem melhor
que as encomendas. De resto,
filho de peixe... Calavas,
com agudo sobrecenho
interrogavas em ti
uma lembrança saudosa
e não de toda remota
e rindo por dentro e vendo
que lançaras uma ponte
dos passos loucos do avô
à incontinência dos netos,
sabendo que toda carne
aspira à degradação,
mas numa via de fogo
e sob um arco sexual,
tossias. Hem, bem, meninos,
não sejam bobos. Meninos?
Uns marmanjos cinquentões,
calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto,
essa fuga para o mato,
essa gula defendida
e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada...
Ai, grande jantar mineiro
que seria esse... Comíamos,
e comer abria fome,
e comida era pretexto.
E nem mesmo precisávamos
ter apetite, que as coisas
deixavam-se espostejar,
e amanhã é que eram elas.
Nunca desdenhe o tutu.
Vá lá mais um torresminho.

Como se trabalhasse com uma lançadeira de tear que vai e volta, o Poeta vai tramando o tecido entre passado e presente, inserindo aqui e ali, paulatinamente, elementos dêiticos de presentificação. Podemos observar, por exemplo, como as formas verbais do presente passam a conviver com as do imperfeito e do futuro do pretérito, as quais, por sua vez, impregnadas do sentido do presente, passam a funcionar só como imperfectivos, conotando ações e estados que, não acabados, amoldam-se ao eixo ou "corredor isotópico"; (Blikstein, 2009) da presentidade:

 

 

 

Essa deslocação para o presente vai sendo precipitada por diferentes recursos dêiticos, que atuam como verdadeiros embreantes ou catalisadores espaçotemporais, como, por exemplo:

a) Sintagmas nominais, em que a combinação de determinados e determinantes produz um efeito de "presente"; em espaços, tempos, objetos, estados físicos e psicológicos, aspectos cinésicos e proxêmicos etc.:

• mesa larga
• tristes dietas
• farra honesta
• teus noventa
• a nédia galinha
• o vinho português de boa pinta
• teu olho cansado
• grandessíssimos safados
• marmanjos cinquentões
• alma frouxa, rasgada

b) Reiteração da conjunção copulativa e, de advérbios, interjeições e vocativos, interrogações etc., os quais, ao assinalarem a coloquialidade e a oralidade, reforçam a estrutura "dialógica"; e a concomitância da fala entre filho e pai:

E teus filhos
e o que gosta
e fartamente poria
e via
e... fitava
e... amaldiçoava
e... perdoava
e rindo... e vendo
• Ai, velho
• E daí
• Já logo
• Pois sim
• Puxa
• Hem, hem

c) Pausas, comentários e pretensas reprimendas, indicadores da coloquialidade entre pai e filho:

• "perdoar é rito de pais,
quando não seja de amantes";

• "... Puxa,
grandessíssemos safados,
me saíram bem melhor
que as encomendas. De resto,
filho de peixe...";

• "... Hem, hem, meninos?
não sejam bobos...";

• "... Meninos?
Uns marmanjos cinquentões
calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto...";

Governada pelo eixo da presentidade, a deslocação para o aqui e o agora faz-se como num passe de mágica, pois, quase que sub-repticiamente, o tempo presente se instaura:

 

 

A partir dessa transição para o presente, o Poeta nos faz crer que o jantar mineiro está sendo, e não seria. Tempo/espaço, ausência/presença/real/irreal se fundem numa só dimensão. Começa, então, o traveling da ubiquidade. Todos estão.

Com expressões dêiticas, de valor demonstrativo, o Poeta vai focalizando e descrevendo, perante o pai, os membros da família, desenhando-lhes os aspectos proxêmicos e cinésicos em que se evidenciam a postura esquiva, o gesto contido, o afastamento, o silêncio, o envelhecimento, a frustração e, sobretudo, a comunicação e o afeto represados. Vemos:

• a irmã já falecida:

E nem falta a irmã que foi
mais cedo que os outros e era
rosa de nome e nascera
em dia tal como o de hoje
para enfeitar tua data.
Seu nome sabe a camélia,
e sendo uma rosa-amélia,
flor muito mais delicada
que qualquer das rosas-rosa,
viveu bem mais do que o nome,
porém no íntimo claustrava
a rosa esparsa. A teu lado,
vê: recobrou-se-lhe o viço.

• o irmão mais velho:

Aqui sentou-se o mais velho.
Tipo do manso, do sonso,
não servia para padre,
amava casos bandalhos;
depois o tempo fez dele
o que faz de qualquer um;
e à medida que envelhece,
vai estranhamente sendo
retrato teu sem ser tu,
de sorte que se o diviso
de repente, sem anúncio
és tu que me reapareces
noutro velho de sessenta.

• o doutor da família:

Este outro aqui é o doutor,
o bacharel da família,
mas suas letras mais doutas
são as escritas no sangue,
ou sobre a casca das árvores.
Sabe o nome da florzinha
e não esquece o da fruta
mais rara que se prepara
num casamento genético.
Mora nele a nostalgia,
citadino, do ar agreste,
e, camponês, do letrado.
Então vira patriarca.

• o próprio poeta que, proxemicamente, indica o afastamento em relação ao pai, ao se colocar no canto da mesa:

[...] Por exemplo:
ali ao canto da mesa
não por humilde, talvez
por ser o rei dos vaidosos
e se pelar por incômodas
posições de tipo gauche,
ali me vês tu. Que tal?
Fica tranquilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
ficou apenas: a vida
(e nem era assim tão boa
e nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. Repara:
tenho todos os defeitos
que não farejei em ti,
e nem os tenho que tinhas,
quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
com ser uma negativa
maneira de afirmar.
Lá que brigamos, brigamos
ôpa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só amor sabe trilhá-los.
Tão ralo prazer te dei,
nenhum, talvez... ou senão
esperança de prazer,
é, pode ser que te desse
a neutra satisfação
de alguém sentir que seu filho,
de tão inútil, seria
sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.
Esse é meu mal. Não herdei
de ti essa balda. Bem,
não me olhes tão longo tempo,
que há muitos a ver ainda.

• o estoico rebelde:

Mais adiante vês aquele
que de ti herdou a dura
vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
reproduzir sobre a terra
o que a terra engolirá.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.
Feroz a um breve contato,
à segunda vista, seco,
à terceira vista, lhano,
dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.
Dir-se-ia que ele tem raiva,
mas que mel transcende a raiva,
e que sábios, ardilosos
recursos de se enganar
quando a si mesmo: exercita
uma força que não sabe
chamar-se, apenas, bondade.

• a irmã silenciosa:

Esta calou-se. Não quis
manter com palavras novas
o colóquio subterrâneo
que num sussurro percorre
a gente mais desatada.
Calou-se, não te aborreças.
Se tanto assim a querias,
algo nela ainda te quer,
à maneira atravessada
que é próprio de nosso jeito.
(Não ser feliz tudo explica.)

• os natimortos:

Há oito. E todos minúsculos,
Todos frustrados. Que flora
mais triste fomos achar
para ornamento de mesa!
Qual nada. De tão remotos,
de tão puros e esquecidos
no chão que suga e transforma,
são anjos. Que luminosos!

Se analisarmos bem a sequência, percebemos uma possível contradição: enquanto, de um lado, a presentificação parecia apontar para a euforia ("grande jantar mineiro";), o giro do traveling revela um ambiente disfórico: ausência, frustração, velhice, silêncio, morte. Se assim é, vale justamente indagar: o que busca o Poeta nessa reunião em volta da mesa?

 

2. O percurso do afeto

A conversa com o pai, a presentificação da família, a realização do jantar mineiro são, na verdade, tributárias de um objeto dêitico, a mesa, que é o grande embreante espaçotemporal no poema. É em torno da mesa que, com a anulação das fronteiras do espaço e do tempo, do passado e do presente, do real e do irreal, a família toda, ubiquamente, se reúne.

E por que tudo acontece em torno da mesa?

A – Aqui é preciso pensar na mesa mineira, enorme, aglutinadora de todos os membros da família. Ela é o espaço onipresente e ubíquo, lugar de bebida e comida, continente e confessionário. Tais conotações podem ser claramente detectadas na primeira ocorrência da palavra mesa:

 

 

B – A mesa larga é assim a grande sustentação do eixo da presentidade e da ubiquidade: continente e confessionário, ela é o espaço da satisfação oral, da confidência e da possibilidade de afeto. A partir da mesa larga abre-se, então, o corredor isotópico do prazer oral e da expansão eufórica dos sentimentos. A exposição abundante de alimentos excita e provoca a comunicação:

 

 

A relação entre mesa larga satisfação oral euforia comunicativa é reiterada pelo próprio Poeta, que, num crescendo, vai estreitando a tal ponto a relação entre o prazer oral e a expressão do afeto que a mesa passa a ser o espaço do êxtase:

[...] Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?
Beber é pois tão sagrado
que só bebido meu mano
me desata seu queixume,
abrindo-me sua palma?
Sorver, papar: que comida
mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe,
e que a bebida mais santa
que a todos nos une em um
tal centímano glutão,
parlapatão e bonzão!

C – O êxtase, contudo, é truncado pela disforia familiar. Por paradoxal que seja, a tão desejada festa, ao tornar-se real no presente, traz, em torno da mesa, os conteúdos disfóricos revelados pelo traveling: morte, silêncio, tristeza, inibição, afetos contidos. O Poeta procura, em torno da mesa, ou na própria mesa, a chave para o impasse: como desatar "os gestos acumulados de efusão fraterna?";. Ele reconhece que as barreiras são quase intransponíveis, ao remeter, anaforicamente, ao pressuposto de que era difícil a comunicação entre pais e filhos:

Bem sei como são penosos
esses lances de família,
e discutir neste instante
seria matar a festa,
matando-te [...]

D – Mas, pela ação da mesa farta, continente de comida e de gente, a disforia cederá lugar à euforia. É que a exuberância da mesa vai anulando morte, tristeza, silêncio, substituindo-os por vida, alegria, comunicação. Bem ou mal, a mesa vai-se enchendo de comida, de filhos, que se prolongam nos netos, e a ponte de passagem para a euforia é o movimento dêitico em direção à filha do Poeta:

Conta: quatorze na mesa.
Ou trinta? serão cinquenta,
que sei? Se chegam mais outros,
uma carne cada dia
multiplicada, cruzada
a outras carnes de amor.
São cinquenta pecadores,
se pecado é ter nascido
e provar, entre pecados,
os que nos foram legados.
A procissão de teus netos,
alongando-se em bisnetos,
veio pedir tua benção
e comer de teu jantar.
Repara um pouquinho nesta,
no queixo, no olhar, no gesto,
e na consciência profunda
e na graça manineira,
e dize, depois de tudo,
se não é, entre meus erros,
uma imprevista verdade.
Esta é minha explicação,
meu verso melhor ou único,
meu tudo enchendo meu nada.

Restabelecida a euforia, a mesa, com a sua exuberância materna, desafia as proporções do espaço:

Agora a mesa repleta
está maior do que a casa.

E – Estamos próximos de um dos possíveis deciframentos do poema. Anáfora e dêixis cruzem-se numa fronteira ambígua, pois a mesa larga e repleta incita a euforia comunicativa dos filhos, levando-os à explosão alucinatória, apesar de que "as fina-meigas palavras/... ditas naquele tempo/teriam mudado a vida";.

Ao provocar o delírio comunicativo, a mesa se torna justamente o espaço ubíquo do presente/passado, do real/irreal, do prazer oral e da efusão afetuosa, uma vez que as palavras, os gestos, a alegria transformam-se num jorro de comida que se derrama pela mesa toda. Há, por assim dizer, uma condensação do universo disfórico do passado e do universo eufórico do presente. Com a "mesa repleta maior do que a casa";:

Falamos de boca cheia,
xingamo-nos mutuamente,
rimos, ai, de arrebentar,
esquecemos o respeito
terrível, inibidor,
e toda a alegria nossa,
ressecada em tantos negros
bródios comemorativos
(não convém lembrar agora)
os gestos acumulados
de efusão fraterna, atados
(não convém lembrar agora),
as fina-e-meigas palavras
que ditas naquele tempo
teriam mudado a vida
(não convém mudar agora),
vem tudo à mesa e se espalha
qual inédita vitualha.

E a mesa passa a ser também o espaço onde se fundem o prazer espiritual da explosão afetuosa ao prazer físico da satisfação oral:

Oh que ceia mais celeste
e que gozo mais do chão!

F – O que será, enfim, essa mesa mágica, continente, espaço exuberante da festa para a família toda? Não é difícil responder, pois a explicação do poema está na pergunta que faz o Poeta: "Quem preparou?";. Com efeito, quem preparou o "jantar mineiro?";.

A mesa, na verdade, é a própria mãe, figura-chave do poema, que já se insinua, meio incógnita, logo no início, indicada pelo advérbio fartamente, conotador da ideia de exuberância:

[...] e mais o que alguém faria
de mil coisas naturais
e fartamente poria
em mil terrinas da China [...]

Exuberante, pródiga e mágica, a mãe é capaz de fazer prodígios de "mil coisas naturais"; e pô-las "em mil terrinas da China";.

Essa capacidade mágica lhe permite socorrer os filhos, transformando a costura em consolo:

Uns marmanjos cinquentões,
Calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto,
essa fuga para o mato,
essa gula defendida
e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada...

Essa mágica transformadora altera esteticamente a própria composição dos pratos e alimentos, de modo a reparti-los entre os filhos:

... quem foi a mão invisível
que traçou este arabesco
de flor em torno ao pudim
como se traça uma auréola?
quem tem auréola? quem não
a tem, pois que sendo de ouro,
cuida logo em reparti-la
[...]
(Quem) retira a cor das laranjas,
anula o pó do café,
cassa o brilho aos serafins?

G – Mesa úlbere, a mãe, com a dupla função de "pôr a mesa"; e ter os filhos"; é a meta do percurso do Poeta. Aqui termina a procura: a mãe é o continente provedor de toda a comida e de todo o afeto. E, mais ainda, é o espaço onde tudo se condensa, mesmo os contrários: prazer/dor, presença/ausência, alegria/ tristeza, real/irreal, estar/não estar, fazer/não fazer, céu/chão. E, sendo o espaço das condensações, a mãe/mesa também funde unidade e dualidade:

Como pode nossa festa
ser de um só que não de dois?

Nesse percurso do afeto, o Poeta acaba por encontrar, na verdade, um "claro enigma";: a festa (o filho) é de um só (o pai) ou de dois (o pai e a mãe)? A dualidade na unidade é algo que o aflige; talvez, por isso, será difícil ver a mãe e, quando a vê, ela está "do lado esquerdo/assim curvada";. De qualquer modo, foi só ao resgatar a figura da mãe que o Poeta resgata, ao mesmo tempo, o afeto represado e perdido no tempo e no espaço. E, aí, vem a contradição final: se a volta em torno da mesa tinha por objeto a mãe-afeto, seria o momento, então, de desmontar o cenário e apagar o jantar mineiro. O fato é que a mesa em que se encontra o pai e a mãe é afeto e é dualidade, enigma arquetípico e indecifrável; tal mesa só pode estar, pois, "acima de nós";.

A chave do enigma não está, infelizmente, na mesa larga, de madeira, que, por hipótese, foi espaço da festa familiar. O percurso do afeto, contraditoriamente, vai levar, à solidão e ao vazio. O Poeta, então, com um recurso dêitico sui generis, desloca o determinante de mesa para um verso abaixo e o transforma em seu próprio determinado (adjetivo vazia = substantivo vazio):

Os dois ora estais reunidos
numa aliança bem maior
que o simples elo da terra.
Estais juntos nesta mesa
de madeira mais de lei
que qualquer lei da república.
Estais acima de nós,
acima deste jantar
para o qual vos convocamos
por muito – enfim – vos queremos
e, amando, nos iludirmos
junto da mesa
vazia.

Pelo exposto, Carlos Drummond de Andrade, a exemplo da mãe/mesa, é mágico e transformador: utiliza a língua, como se disse no início, na plenitude de suas funções; transforma e mistura categorias gramaticais; funde linha de significação ou isotopias, gera ambiguidade e ubiquidade, cruza o espaço e o tempo, cria e destrói universos ("... quem foi a mão invisível/que traçou este arabesco/de flor em torno ao pudim/como se traça uma auréola?";). Poeta, no sentido etimológico do termo, Carlos Drummond de Andrade "fabrica"; realidades. O seu fazer poético permite compreender a afirmação que E. Coseriu (1977, p. 203) faz em defesa da poesia:

[...] a poesia é o lugar do desdobramento, da plenitude
funcional da linguagem...
[...] a poesia não é, como amiúde se diz, um "desvio"; com
relação à linguagem "corrente"; (entendida como o "nomal";
da linguagem); a rigor, é mais exatamente a linguagem
"corrente"; que representa um desvio da totalidade da
linguagem como tal,
que coincide com a linguagem da poesia.

 

Referências

Bachelard, G. La poétique de l'espace. Paris: P.U.F., 1957.         [ Links ]

Benveniste, E. (1974). Problèmes de linguistique générale (Vol. 2). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Blikstein, I. (2009). KasparHauser ou A fabricação da realidade (11a ed.). São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Buyssens, E. Semiologia e Comunicação Linguística. São Paulo: Cultrix, 1972.         [ Links ]

Chandler, D. Semiotics: The Basics. New York: Routledge, 2002.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Izidoro Blikstein
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Recebido: 13/10/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Professor titular de Linguística e Semiótica na Universidade de São Paulo. Professor de Comunicação na Fundação Getulio Vargas de São Paulo.