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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre a escrita psicanalítica

 

Considerations on the psychoanalytic writing

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Traçando um paralelo entre o narrador das "Mil e uma noites"; e o narrador Freud, o autor faz considerações a respeito da complexidade existente na escrita de textos psicanalíticos. Nesse sentido, contrapõe aquilo que chama de textos fundantes e criativos a textos estereotipados e sem vida própria, que servem apenas a reassegurar a identidade de seu produtor.

Palavras-chave: Scherazade, Freud, A palavra nascente, A palavra agonizante, A voz do ausente.


ABSTRACT

Drawing a parallel between the narrator of the "One Thousand and One Nights"; and Freud as a narrator, the author brings some considerations on the complexity existing in the psychoanalytic texts. In this sense, he opposes what he names founding and creative texts to stereotyped texts and those with no life of their own, which just safeguard the identity of their producer.

Keywords: Scherazade, Freud, The rising word, The agonizing word, The voice of the absent.


 

 

Linha reta e arabesco, intenção e expressão, rijeza da vontade,
e sinuosidade do verbo, unidade do alvo, variedade dos meios,
amálgama todo-poderoso e indivisível do gênio, que analista
terá a detestável coragem de o dividir e separar?

(Baudelaire, "O Tirso";)

 

Recentemente o New York Times publicou um artigo da escritora A. S. Byatt no qual ela escolhia As mil e uma noites como a melhor narrativa deste último milênio. Justificando sua escolha, ela dizia que nenhuma outra obra teria influenciado tanto a literatura quanto o conjunto das aventuras contadas por Scherazade, noite após noite, ao sultão da Pérsia, deixando seus traços nas obras de Dickens, Proust, Borges e Italo Calvino, entre outros. Texto apócrifo, editado pela primeira vez no século XIV, em árabe, a partir de narrativas orais da Pérsia e da Índia que circulavam desde o século X, Mil e uma noites recebeu, a partir do século XVII, inúmeras traduções para as línguas ocidentais, cada uma delas objeto de crítica do tradutor posterior e de inúmeros experts. Alguns deles chegaram mesmo a adicionar novas histórias ao conjunto original, argumentando que esse seria o espírito inerente à obra... Cada novo narrador entrando na história a partir de uma narrativa própria – uma outra noite no meio dessas mil mais uma – que se articulavam todas em torno de uma narrativa básica, uma narrativa moldura (Wajnberg, 1997) – a da mulher que contava uma história a cada noite para se manter viva.

Se inicio estas breves considerações a respeito da Escrita em Psicanálise com essa referência a Scherazade é porque nela encontro os elementos básicos que estão sempre em jogo quando se trata de pensar essa problemática questão: como colocar em linguagem escrita aquilo que cada um de nós ouve como escutadores profissionais da fala de um outro e como participantes ativos dessa mesma fala sem que nos sintamos traídos por nossa própria incompetência como tradutores, decapitando a cabeça de nosso analisando ou oferecendo a nossa própria para ser cortada? Esse é o problema maior que se nos apresenta a cada vez que pensamos em colocar no papel a nossa experiência clínica. E também porque são inúmeros e óbvios os paralelos que podem ser traçados entre aquela obra da literatura oriental e a obra freudiana, texto originário e também moldura de todos os outros textos psicanalíticos. Não discutimos até hoje as suas inúmeras traduções? Não foi ele acrescido de muitas notas, seja pelo próprio Freud, seja pelos seus tradutores? Não continua ele sendo objeto de constantes novas leituras?

Onde começa a obra freudiana se nos seus trabalhos chamados de pré-psicanalíticos, se em A interpretação dos sonhos ou se nos textos como neurologista, ou, ainda, se em sua correspondência amorosa ou com Fliess esse "início"; será sempre questionável dependendo do ponto de vista utilizado? Pois

[...] é impossível ler um trabalho de Freud sem se referir aos anteriores e aos posteriores. Do mesmo modo, não há porta de entrada para sua obra, pois cada texto é, ao mesmo tempo, uma entrada ao novo texto e parte de todo o edifício. Da mesma forma, não há saída. (Giovannetti, 1997, p. 97)

Não chamou ele seu último texto de "Esboço de psicanálise?";. Narrador insciente – e não onisciente ou informativo –, Freud é o tipo de narrador que vai se constituindo enquanto narra, um narrador que "não está interessado em transmitir o puro em si da coisa narrada como uma informação ou um relatório, mas que mergulha essa coisa em sua própria vida, para em seguida retirá-la de si mesmo"; (Benjamin, 1985, p. 205).

Num constante se refazer, a produção escrita de Freud colocava em evidência o movimento constante, não em direção ao conceito final e definitivo, mas em direção ao abandono, à despedida, ao exílio do conceito recém-encontrado, ressaltando a impossibilidade de conquista e de posse do território descoberto – o território do estrangeiro, do estranho, do Unheimlich, exílio do familiar e do estabelecido. E, por isso mesmo, por não ser linear, ele mimetiza como nenhum outro a complexidade da natureza humana e, paradoxalmente, sua finitude. Não é a questão da finitude humana o que alimenta a narrativa criativa das Mil e uma noites? Não é justamente por apontar sempre para o inacabado, para o movimento, para o trânsito que o texto freudiano mostra, em sua totalidade, que sexualidade e mortalidade são as duas faces da mesma moeda?

E aí reside a sua extrema capacidade de poder transformar a palavra falada em escrita: somente a profunda apreensão da transitoriedade da vida, ainda que seja apenas em nível inconsciente, é que torna possível a existência da simbolização e sua radicalização, a escritura. Em o "Mal estar na cultura";, Freud assinala que a escrita é, em sua origem, a voz da pessoa ausente, dando, assim, uma conceituação simples e ao mesmo tempo seminal para o ato que nos aterroriza tanto como psicanalistas e seres humanos, pois escrever é atestar a própria mortalidade.

Scherazade não escrevia suas histórias, apenas as contava, e por isso podia se perpetuar. Freud, ao contrário, passava suas noites escrevendo as próprias e a de seus pacientes, dando mostras de que não se acreditava imortal. A "talking cure";, a cura pela palavra se impregnava já em sua origem, da ideia da transitoriedade da vida, o que só vem enfatizar a ideia de que a Psicanálise só poderia ter sido criada por um grande escritor. Se tão vasto é o mundo e tão breve cada vida, como dar testemunho da própria experiência vivida se não passando as noites a escrever? – parece ele nos dizer com todos os seus escritos. Se Scherazade usava suas noites para contar suas histórias, Freud usava as dele para escrever as histórias que ouvira durante o dia e aquelas que também vivera durante a outra parte da noite, em seus sonhos. Se Scherazade dá testemunho da importância do imaginário para a manutenção da vida, Freud, ao instaurar o lugar simbólico do analista, testemunha a importância dos sonhos para nosso psiquismo, reafirmando, assim, a importância das noites para o conhecimento da vastidão do mundo.

Dentre os escritos psicanalíticos, o texto freudiano é o paradigma da voz do ausente à medida que, em constante reformulação conceitual, visa à busca não da palavra exata, mas, sim, do nome próprio, "aquele que tem a possibilidade de nomear e não de prender o estranho";, como escreveu Blanchot (1969, p. 143), denotando sua profunda e íntima vinculação com a experiência vivida e com a natureza animada de seu criador. A escrita freudiana é, ao mesmo tempo, nascente e agonizante. Viva e sexual porque, paradoxalmente, atesta a mortalidade de e as transformações de seu criador. E, por isso, ela é "libertadora de significações"; e não "fixadora de sentidos"; (Blanchot, 1969, p. 168). Por se permitir morrer, ao apontar sempre para a falta, para a ausência, é possibilitadora de um constante se refazer, situando- -nos no terreno da castração, não do fetiche.

Assim, a escrita freudiana, mais do que cumprir a função de promover desenvolvimentos teóricos e expansões conceituais, era produzida também com a intenção de esclarecer e interpretar a transferência cristalizada e enrijecida do investigador com o conceito anterior. Pois o enrijecimento transferencial e a repetição obstinada são sempre os maiores obstáculos a qualquer processo de investigação. Funcionando também como agente interpretante da transferência de seu leitor, a escrita freudiana cumpria a função de promover a atitude psicanalítica em sua natureza mais pura, naquilo que ela tem de mais subversivo e revolucionário: a manutenção do movimento transitivo em oposição às crenças, às repetições estereotipadas e à paralisia intransitiva, aguçando com seu constante se refazer as inevitáveis ansiedades inerentes ao caminhar despossuído de conhecimentos apriorísticos. Em oposição à posse de um território conhecido, ela estimula a um êxodo sem um Deus e sem uma terra prometida.

Mas se o falar continuado pode tentar dar conta das angústias relacionadas à falta e à falha – o sujeito está sempre presente e imortal – a escrita, ao acentuar essa mesma falta e essa mesma falha, pode exacerbar essas mesmas angústias e possibilitar que o texto seja usado para encobrir, para vestir a nudez perturbadora do corpo erógeno e mortal. E aí ela vai ser usada como fetiche, pervertendo-se sua própria natureza. Se a natureza do texto implica um testemunho da ausência e da transitoriedade, se a natureza do texto implica um dialogar com outros textos, uma intertextualidade possibilitadora da coexistência de pessoas de gerações muito distantes uma da outra, a perversão de sua natureza vai dar origem a textos estereotipados, não dialógicos, categóricos e assertivos ou apenas pálidas sombras da experiência a que se referem. Já escreveu Roland Barthes (1973, p. 86) que a "a estereotipia nada mais é do que a nauseabunda impossibilidade de morrer";, preciosa e precisa definição para o uso fetichizante da escrita, acrescentando que "a escrita deve ser um ato incômodo e indomável, pois, caso contrário, a problemática humana é entregue sem cor e o escritor fica sendo não mais do que um homem bem comportado";. (Barthes, 1973, p. 86)

Não é tão difícil separar em nossa bibliografia psicanalítica os textos fundantes e criadores, portanto, aqueles que se inserem no contexto da sexualidade como propagadora da espécie daqueles escritos estereotipados e sem vida própria, pois, repetidores de uma palavra que não a própria, transitam apenas no espaço de reasseguramento da identidade psicanalítica de seu produtor. Infelizmente, não são poucos esses escritos que, escamoteando o nome próprio de seu autor – preso que está nas malhas de uma transferência interminável – desembocam na alienação do estereótipo.

Outro fato se impõe quando consideramos a situação do analista durante a sessão de análise e no momento de escrever seu trabalho: no primeiro há a existência de um outro corpo erógeno, a palavra vem encarnada, emitida em seu estado nascente, com um "excesso"; que precisa ser depurado para que seja escutada, em toda sua polissemia e polifonia. No ato da escrita, ato solitário por excelência, a palavra se encontra em seu estado agonizante, é letra quase morta, por assim dizer, e seu poder comunicativo precisa ser resgatado. Na sessão, a palavra necessita de um tratamento "via di levare"; e na escrita, "via di porre";. Na sessão, para que a escuta possa ser realizada, é necessária a tolerância à presença excessiva do outro. Na escrita, é a ausência do outro que deve ser tolerada.

Para Scherazade, a existência do outro é que tinha de ser atenuada. Para a escrita psicanalítica, tomando Freud como paradigma, é a perda do outro que necessita ser atenuada: o luto deve ser feito ou a escrita se torna melancólica, repetitiva, sombreada. Não foi o fracasso com o tratamento de Irma que o levou a sonhar com aquela garganta que deu início ao dizer psicanalítico? Não foi o luto por seu pai que o possibilitou introduzir o olhar psicanalítico, para melhor se enxergar a mente humana, conforme nos conta no célebre sonho "Pede-se fechar um olho ou pede-se fechar os olhos?";. Não foi o luto de um pai pelo filho morto que escolheu para dar início ao célebre capítulo VII de seu A interpretação dos sonhos, conceituação princeps de sua metapsicologia?

Para terminar essas considerações e darmos lugar aos debates: a escrita psicanalítica, para merecer esse nome, deverá atestar em sua própria tessitura que seu produtor está cônscio de que ninguém, em tempo ou lugar algum, terá a última palavra sobre a Psicanálise.

 

Referências

Barthes, R. (1973) O prazer do texto. Lisboa: Edições 70. (Coleção Signos).         [ Links ]

Benjamin, W. (1985). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. InW. Benjamin. Magia e técnica, arte e política (pp. 197- 232). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Blanchot, M. (1969). L'entretien infini. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Giovannetti, M. de F. (1997). The scene and its reverse. In On Freud's A child is being beaten (pp. 95-111). New Haven/London: Yale University Press.         [ Links ]

Wajnberg, D. (1997). Jardim de arabescos. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marcio de Freitas Giovannetti
Rua Itacolomi, 601/33
01239-020 – São Paulo – SP
tel.: 11 3159-8604
E-mail: nnetti@uol.com.br

Recebido: 14/10/2011
Aceito: 21/10/2011

 

 

* Analista didata e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).