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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011

 

RESENHAS

 

Arte, dor: o caminho do desassossego rumo à generosidade e gratidão

 

Art, pain: the path of unquietness towards generosity and gratitude

 

 

Renato Tardivo*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Endereço para correspondência

 

 

Frayze-Pereira, João A. Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise (2a ed., rev. e ampl.). São Paulo: Ateliê, 2010. 448 p.

 

João Frayze é psicanalista (SBPSP), livre-docente pela USP e crítico de arte. Arte, dor reúne uma série de trabalhos que fazem do autor um dos nomes mais importantes – talvez o maior deles – em Psicologia da Arte no Brasil.

Os capítulos, embora independentes entre si, compõem uma tese; tese esta que se desenvolve pelo negativo, isto é, pela incansável desconstrução da realidade ingênua, de conceitos cristalizados, em suma, por aquilo que o fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty, um dos autores mais apreciados por Frayze-Pereira, denominava "questionamento da fé-perceptiva";. Não por acaso, o capítulo final intitula-se "Inconclusão: psicanálise e crítica de arte"; (grifo meu).

Mas de que trata o livro?

"Situada entre a Estética e a História da Arte";, a Psicologia da Arte "requer a presença da psicanálise";, uma vez que "a abertura do psicólogo social para a arte dependerá principalmente de sua disposição, como espectador da arte, para introduzir-se nesse campo abissal [...] correndo o risco da vertigem e o da perda de pontos fixos";. Assim, o intérprete, "ao se abrir para o campo das obras";, terá de se haver com "questões de ordem transferencial"; e, "consequentemente, comprometer-se";. Daí, segundo Frayze-Pereira, a psicanálise se impor como uma perspectiva necessária dentro desse "jogo interdisciplinar"; (pp. 66-67).

Portanto, como já diz o próprio subtítulo, o livro irá abordar "inquietudes entre Estética e Psicanálise";. Cabe esclarecer, contudo, que muitas são as possibilidades de se inclinar a essa relação. A postura assumida por Frayze-Pereira, tal qual explicitada pelo próprio autor na "Introdução"; do livro, é a seguinte:

Diante do novo, diante de uma obra em processo ou em exposição, isto é, sempre em vias de se fazer e um enigma a nos interrogar, não são a "escuta clandestina"; e o "olhar oblíquo"; os meios privilegiados para referenciar nas margens ou no bastidor, nas lacunas ou no silêncio, a "potência do irrepresentável";? (os termos entre aspas são de Murielle Gagnebin). (p. 39)

Continua o autor:

É o não-dito (ou o não-visível) que é capaz de revelar criativamente uma história ou uma sucessão de acontecimentos no decorrer da análise de uma obra. E nesse processo de instauração de uma leitura é o ponto de vista do espectador que paulatinamente se infiltra no campo da criação, uma vez que a obra também se faz tributária do olhar que a interroga. (p. 40)

Para trabalhar com essa implicação entre psicanálise e arte, o autor recorre inicialmente ao já citado Merleau-Ponty e a Michel Foucault. É a partir – e por meio – desses dois autores que Frayze-Pereira nos apresenta uma leitura densa e crítica da psicanálise, que é atravessada o tempo todo pelo paradoxo implicado na relação arte-dor, inquietação primeira e última desse belo trabalho.

Além da "Introdução"; e da "Inconclusão";, o livro é divido nas seções "Problemáticas";, "Fundamentos"; e "Análises";. Além disso, a publicação conta com o prefácio de Jacques Leenhardt – "Inquetantes inquietudes"; –, o prefácio à segunda edição de Camila Salles Gonçalves – ótima porta de entrada às reflexões que se seguem – e, ao final, há o posfácio de Maria Helena Souza Patto, que também assina a orelha do livro, texto que mapeia historicamente a trajetória de João Frayze, dando luz à poesia inerente ao percurso trilhado pelo autor: "Uma poética do desassossego";.

Nas "Problemáticas";, Frayze-Pereira delimita o campo a partir do qual irá abordar a complexa relação entre arte e psicanálise. O autor trabalha conceitos-chave – psicanálise implicada, experiência estética, entre outros – sempre comprometido com a História da Arte e com a entrada desta no campo das investigações psicológicas (e vice-versa): "A aproximação entre a Arte e a Psicologia não é um movimento recente. Muito anterior ao próprio advento da Psicologia como disciplina científica, na verdade, foi a própria Estética que se abriu à Psicologia que estava por vir"; (p. 45).

A seção "Fundamentos"; reúne reflexões teóricas – problemas de pesquisa – que decorrem das problemáticas desenvolvidas anteriormente. Cabe destacar, aqui, o capítulo que fecha os "Fundamentos";: "O corpo como obra de arte: a unidade do múltiplo";. A temática da correspondência das artes e da unidade dos sentidos, do meu ponto de vista, é das mais relevantes nas discussões e análises empreendidas por Frayze-Pereira, presente tanto nas poéticas mais espinhentas – a análise sobre Van Gogh ou sobre a banalização do mal na arte contemporânea, por exemplo – quanto na "generosidade e gratidão"; da artista Amélia Toledo, ensaio que encerra a seção "Análises";.

Vale dizer que foram incluídas duas análises na segunda edição do livro: "Arte e inveja na Era do Vazio";, questão extremamente atual na clínica psicanalítica e no ambiente das artes, e "Arte-crítica: Louise Bourgeois";, artista que mantém estreito vínculo com a psicanálise mas que, nem por isso, revela o enigma contido em suas produções, mas, em direção oposta, "Bourgeois figura entre tais artistas que assimilam a função da crítica em suas propostas plásticas"; (p. 367). Ao "subverter o instituído";, Louise Bourgeois aproxima-se de

[...] certa tendência da psicanálise contemporânea para a qual o fazer psicanalítico não é uma operação de descoberta de conteúdos psíquicos ocultos sob a conduta manifesta dos indivíduos, mas o processo interpretativo que Fabio Herrmann define como ruptura de campo. Trata-se de um processo, aparentado à arte, que interroga a lógica que inconscientemente fixa os modos do indivíduo ser no mundo, desconstruindo aquilo que se apresenta banalizado e consolidado na sua existência (p. 368).

Quanto às inconclusões, cada qual que extraia as suas. Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise é um compêndio sobre esse tema, certamente útil a artistas e psicanalistas, mas também a leitores interessados. É que, em que se pese a densidade dos ensaios, a linguagem é fluida, límpida, e evita, com sucesso, certos academicismos que mais se prestam a afastar o leitor do texto. Arte, dor, ao contrário, captura o leitor e, sendo suficientemente bom, permite que ele se perca em suas (entre)linhas, para – quem sabe? – poder crescer em meio ao desassossego do doloroso caminho rumo à generosidade e gratidão.

 

 

Endereço para correspondência
Renato Tardivo
Rua Gabrielle D'Annunzio, 500
04619-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 5561-0671
E-mail: rctardivo@uol.com.br

Recebido: 16/10/2011
Aceito: 28/10/2011

 

 

* Membro filiado da SBPSP.