SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.35 número54Entrevista com Marcelo Gleiser índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

CARTA-CONVITE

 

 

Caros colegas

Mais uma vez convidamos vocês a enviarem artigos para o próximo número da revista ide, que terá como tema: Caos. Esse tema emergiu de maneira abrupta quando, numa discussão do Corpo Editorial, falávamos da vida quotidiana corrida das grandes cidades como São Paulo, das enormes mudanças nos relacionamentos e da necessidade de reestruturar as instituições em geral na sociedade contemporânea. Atravessamos um momento de crise de valores e de crise das instituições, momento de desestruturação, momento de caos. Por outro lado, a ideia de ruptura criando o Caos, permite que novo surja. Essas questões também nos aproximam do tema do próximo Congresso da FEPAL – Invenção e tradição.

O Kháos vem do verbo grego khaíno ("abrir-se, entreabrir-se, abrir a boca ou o bico"). É considerado, na mitologia grega, como um dos deuses que está na origem do mundo. No Dicionário de mitologia grega e romana, de Pierre Grimal, assim é definido Kháos: "a personificação do Vazio primordial, anterior à criação, no tempo em que a Ordem ainda não tinha sido imposta aos elementos do mundo"(Grimal, 1986, p. 88).

Na Teogonia, de Hesíodo, primeiro poema que provém das tradições orais da Grécia arcaica, Caos é o primeiro deus a nascer (uma tradução direta do grego para o português foi realizada por um Professor de Língua e Literatura Grega da USP, Jaa Torrano, que faz um estudo muito interessante sobre esse texto e o Sagrado na Grécia arcaica):

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
(Hesíodo, 2011, p. 111)

Caos, o primeiro dos deuses, é a força que preside à separação; ao fender-se por cissiparidade ele origina Noite e Érebos (escuridão). Nesse sentido ele se opõe ao deus Eros que é a força que preside à união amorosa. JaaTorrano, Professor de Língua e Literatura Grega da USP, tradutor da Teogonia diretamente do grego para o português, afirma: "Tudo o que provém de Caos pertence à esfera do não-ser; todos os seus filhos, netos e bisnetos (exceto Éter e Dia) são potências tenebrosas, são forças de negação da vida e da ordem"(Torrano, 2011 p. 43).

O texto grego, nos informa Torrano, apresenta Noite e Dia (descendentes de Caos) não como períodos cronológicos, mas como princípios ontológicos que exprimem em imagens a esfera do Ser e do Não-ser. Nesse momento inicial da origem do mundo, são as forças de separação, não sexuadas, que atuam: "A imagem evocada pelo nome Kháos é a de um bico de ave que se abre, fendendo-se em dois o que era um só. Éros é a potência que preside à procriação por união amorosa, Kháos é a potência que preside a procriação por cissiparidade"(Torrano, 2011, p. 42).

Caos e Eros seriam então princípios ativos e energéticos. É interessante notar que Eros, princípio da união, é estéril, não produzindo nenhum descendente, enquanto Caos, princípio de divisão e separação é prolífico, tendo vários descendentes através de sua filha Noite.

Ao lado dessa vertente mitológica, temos a metáfora que vem da Ciência. Mais precisamente, de uma teoria matemática, a Teoria do Caos, que apresenta inúmeras aplicações nos mais diversos campos do conhecimento. Trata-se de um estudo sobre sistemas dinâmicos não lineares, nos quais as condições iniciais terão uma influência determinista no que ocorrerá posteriormente, sendo que o sistema poderá evoluir de maneira totalmente diferente se houver mudanças nas condições iniciais. Trata-se do Caos determinista. Por outro lado, apesar de determinista, a teoria do Caos mostra que é totalmente imprevisível a evolução do sistema se partirmos de condições iniciais diferentes. O exemplo mais conhecido é o do efeito borboleta, descrito pelo matemático E. Lorenz, em 1972, no qual ele afirma que o batimento das asas de uma borboleta no Brasil poderia causar um tornado no Texas. O curioso é que há um determinismo dentro dessa aparente irregularidade, mas não podemos prever o que acontecerá. Aparece aqui a questão do limite da ciência e do conhecimento; resta o imprevisível. Também podemos nos perguntar se não seria possível fazer uma analogia entre esse caos determinista e o processo psicanalítico.

Dentro do campo psicanalítico, podemos relacionar Caos ao conceito freudiano de pulsão de (ou da) morte, tomando como ponto de partida as noções de ligação e desligamento em Freud no sentido de separação e divisão do conceito Caos.

A pulsão de morte, considerada como destrutividade, ou potência destrutiva inerente ao ser humano, parece ter prevalecido para Freud sobretudo em textos como Mal-estar na cultura ou Reflexões sobre a guerra e a morte. Lacan focalizará a noção de pulsão de morte em três níveis diferentes: o do sistema material inanimado – a entropia, o dos sistemas vivos, o retorno ao inanimado e como vontade de destruição (não tendência ao inanimado). Lacan defende a ideia de que é como vontade de destruição que a pulsão de morte se definiria melhor e não como tendência ao inanimado, mas sim como vontade de destruição, de recomeçar com novos parâmetros, vontade de Outra-coisa. Nessa concepção aparece o aspecto criador da pulsão de morte, pois ao colocar tudo em questão ela aponta para a necessidade de inovação. Esse raciocínio nos aproxima da potência criativa do Caos.

Será que poderíamos fazer uma correlação entre Caos e a clínica dos pacientes não-neuróticos (as chamadas patologias do vazio, borderlines, estados narcísicos, psicoses etc) e Eros e a clínica da neurose? Haveria uma usina pulsional, caótica, que nem sempre o imaginário e o simbólico dariam conta de transformar?

Enfim, caros colegas, espero que essa carta sirva como estímulo instigante para encorajá-los a adentrar esse terreno incerto ou instável e transformador do caos.

Por fim, gostaria de lembrar aos colegas da SBPSP que trabalhos a serem apresentados no congresso da FEPAL poderão ser publicados pela ide, uma vez que esse número sairá no início de agosto de 2012.

Lembramos também a todos que os artigos não podem exceder os 35.000 caracteres com espaços (incluindo os resumos e a bibliografia).

Boas inspirações,

 

 

José Canelas
Editor da ide

 

Referências

Grimal, P. (1986). Dictionnaire de La mythologie grecque et romaine. Paris: P.U.F.         [ Links ]

Hesíodo (2011). Teogonia – a origem dos deuses. (Jaa Torrano, trad.) São Paulo: Iluminuras.