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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

EM PAUTA - CAOS

 

Entrevista com Marcelo Gleiser

Corpo editorial da ide

 

 

IDE – Você poderia nos contar brevemente seu percurso pessoal dentro da física?

Marcelo Gleiser – Na verdade, comecei a universidade cursando engenharia química, e só transferi para a física no terceiro ano. Isto porque tive certa resistência familiar quanto à ideia de virar físico. Me lembro que, aos 19 anos, tive uma entrevista com o Hélio Pelegrino, pois queria fazer análise com ele. Depois de contar todos os meus dramas pessoais (perdi minha mãe de forma trágica quando tinha 6 anos), contei também sobre minha paixão pelo estudo do universo, dos mistérios da natureza. Na hora da decisão, perguntei ao Hélio se poderia ser meu analista. "Marcelo, pra mim análise é uma 'pró-cura'; é você, através da sua busca, se autocurar. E me parece que você já encontrou o seu caminho, a sua cura." Quando contei isso pros meus amigos que faziam análise, ficaram pasmos. "Pô, o cara te deu alta na entrevista!"

Mas acho que o Hélio tinha razão. Vejo minha vida profundamente identificada com essa minha busca por significado. A Física é meu passaporte para essa relação, um veículo de transcendência pessoal. Nunca tive qualquer dúvida com relação à minha escolha. E se deixo de fazer pesquisa ou escrever sobre ciência por um tempo, sinto uma ansiedade crescente.

IDE – Você poderia nos explicar o que é a teoria do caos, a existência de um "caos determinista" e a hipersensibilidade às condições iniciais de tais sistemas?

MG – Sistemas caóticos são aqueles que têm uma grande sensibilidade às condições iniciais: em geral, na física clássica, falamos de um determinismo absoluto: se soubermos as posições e velocidades das entidades que constituem um "sistema" (por exemplo, o Sol e os planetas do sistema solar, as bolas numa mesa de bilhar) poderíamos, em princípio, prever as suas posições futuras. Laplace, no início do século XIX, propôs que se uma supermente soubesse a posição e todas as partículas, poderia prever o futuro do universo: não haveria mais livre-arbítrio. Claro, esta é uma idealização que, na prática, é impossível. Como medir as posições e velocidades de todas as entidades que existem? Com a teoria do caos a coisa complicou ainda mais, pois aprendemos que mesmo sistemas determinísticos podem ter "futuros" completamente diferentes. Para tal, basta que hajam pequenas modificações nas condições iniciais, nas posições e velocidades de suas entidades. Ora, como em física toda a medida tem uma precisão finita, é impossível termos esses valores com precisão perfeita. Portanto, em sistemas caóticos, mesmo que as entidades sigam as equações de movimento segundo o determinismo, pequenas variações nas condições iniciais podem levar a enormes variações de comportamento: são vários os caminhos possíveis.

IDE – Nesses sistemas existiria um determinismo imprevisível? Qual seria nessa teoria a relação entre determinismo e aleatório?

MG – Nos sistemas caóticos o comportamento continua sendo previsível, no sentido comum do determinismo. Aleatório seria o caso dos sistemas quânticos, onde não existe um determinismo clássico: no mundo dos átomos, não é possível usar as equações que descrevem o seu comportamento para fazer previsões exatas. Não se trata de uma imprecisão nas condições iniciais (se bem que estas continuam existindo), mas de uma incerteza inerente aos sistemas muito pequenos, retratada no princípio de incerteza de Heisenberg. Sistemas caóticos são sistemas clássicos. A existência de caos em sistemas quânticos continua sendo debatida.

IDE – Poderia explicar o que é um atrator estranho?

MG – Um modo de se descrever um sistema físico é examinando a posição e velocidade de seus componentes e como variam no tempo. Por exemplo, um pêndulo oscila entre duas posições e sua velocidade é nula no ponto de amplitude máxima, e máxima bem entre as duas posições extremas. O estudo da posição e velocidade se dá no "espaço de fase", onde marcamos a posição e velocidade em momentos diferentes do tempo. Em princípio, o pêndulo pode estar em qualquer lugar do espaço de fase. Mas na prática, fica sempre numa mesma órbita, que tem forma de elipse. Agora, se adicionarmos fricção, sabemos que o pêndulo, depois de um tempo, vai parar no ponto mínimo com velocidade zero. Este ponto é um atrator do sistema pêndulo + fricção: qualquer que seja a amplitude inicial e velocidade do pêndulo, este parará sempre no mesmo ponto.

Pois bem, em sistemas caóticos, existem certos atratores chamados de atratores estranhos. Eles são atratores no sentido que o sistema tende a ir até eles para certos valores das condições iniciais. A diferença é que atratores estranhos são regiões do espaço de fase onde o sistema exibe comportamento caótico.

IDE – Com os mais recentes avanços das ciências, sobretudo da Cosmologia, a nossa visão do universo mudou bastante. Diante disso, qual "cosmogonia" ou mito das origens poderíamos imaginar que leve em conta essas últimas descobertas?

MG – Acho que fica complicado fazer uma comparação direta entre mitos de criação pré-científicos e modelos matemáticos do universo baseados em dados empíricos. Conforme explico no meu livro A Dança do Universo, mitos de criação caem em 5 possibilidades de explanação da "origem de tudo". Dessas, três supõem um momento inicial e duas supõem um universo eterno, ou eternamente criado e destruído. Segundo o big bang, o universo teve uma origem há 13,7 bilhões de anos. Portanto, se forçarmos a barra, podemos dizer que mitos que supõem um momento inicial têm uma narrativa metaforicamente semelhante. Mas as semelhanças terminam por aí, dado que os modelos físicos do cosmo são altamente sofisticados, combinando formalismo e observação através de instrumentos altamente complexos, como o telescópio espacial Hubble. Fora isso, a diferença essencial é que mitos assumem uma realidade absoluta, a entidade criadora, que está além das leis da natureza. A ciência não pode se dar a esse luxo... e por isso tem uma narrativa bem mais amarrada e, portanto, limitada. A ciência só funciona dentro de sua estrutura conceitual.

IDE – Poderia falar um pouco sobre as noções de "multiverso" ou universos paralelos?

MG – Multiverso seria um meta-universo, uma entidade atemporal de onde todos os possíveis universos emergem, inclusive o nosso. Sua existência é especulada em algumas teorias que tentam explicar a infância cósmica. Não sabemos se o multiverso é uma realidade ou não; pior, talvez seja impossível determinar isso, dado que esses outros universos não se comunicam com o nosso. Como sabemos, para ser confirmada, uma hipótese tem que ser empiricamente validável. Mas, quem sabe, em algum momento alguém poderá ter uma ideia nova e mudar isso?

IDE – Como você vê hoje as relações entre Física e Metafísica?

MG – Se entendemos por metafísica o estudo do ser, da substância, do espaço e do tempo, vemos uma relação cada vez maior entre a física e a metafísica. Questões que tratam da origem das coisas, do espaço e do tempo, da matéria, da vida, são necessariamente fronteiriças a questões metafísicas. A grande divisão, ao menos historicamente, é que a física trata da descoberta das leis da natureza mas não da origem dessas leis, isto é, por que essas leis e não outras. Porém, esta divisão anda caindo de moda, especialmente quando vemos que no multiverso universos diferentes podem ter leis físicas diferentes. Portanto, se o multiverso é integrado à física, é possível imaginarmos uma nova física onde o estudo não é apenas das leis da Natureza, mas sobre suas origens. Se isso for possível, a divisão entre metafísica e física deixará de ser tão rígida.