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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

EM PAUTA - CAOS

 

Entrevista com Rodrigo Naves

 

 

Dora Tognolli*; Francisca Vieitas Vergueiro**

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Rodrigo Naves, nascido em 1955, é crítico, historiador da arte e professor, com doutoramento em estética pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Publicou ensaios e artigos em diversas revistas, jornais e catálogos brasileiros e do exterior, analisando obras de artistas modernos e contemporâneos. Foi editor do suplemento Folhetim da Folha de S. Paulo, da revista Novos Estudos do Cebrap, dirigiu a coleção Espaços da Arte Brasileira (Cosac & Naify) e participou das publicações A Parte do Fogo e Beijo. Há mais de 20 anos realiza um curso livre de história da arte. Tem editados os seguintes livros: El Greco - um Mundo Turvo (Brasiliense, 1985), Amilcar de Castro (Tangente, 1991), A Forma Difícil - Ensaios sobre Arte Brasileira (Companhia das Letras, 2011, 3a ed.), Nelson Felix (Cosac & Naify, 1998), Goeldi (Cosac & Naify, 1999), Cassio Michalany (Cosac & Naify, 2001) e O Vento e o Moinho - ensaios sobre arte moderna e contemporânea (Companhia das Letras, 2007). Prefaciou ainda a edição brasileira de Arte Moderna, de Giulio Carlo Argan (Companhia das Letras, 1992), e de Arte e Cultura, de Clement Greenberg (Ática, 1996). Em 1998, publicou o livro de ficção O Filantropo (Companhia das Letras), traduzido em 2009 na Argentina.

 

Trajetória

Rodrigo Naves – Sou quase totalmente autodidata. Fiz jornalismo na USP, trabalhei como jornalista e editei coisas muito diversas por um bom tempo. Desde a época da faculdade eu tinha interesse em artes visuais. Eu sou do interior e antes de vir para cá não mexia com nada disso. Comecei a escrever sobre arte em 1977, quando estava saindo da faculdade. Em 1985, comecei a dar aulas de História da Arte. No início era uma atividade muito caseira, com uns poucos alunos. Aí a procura aumentou, eu fui fazendo mais aulas, tentando melhorá-las, e num certo momento criei coragem, pedi demissão do meu emprego, pois percebi que dava para viver das aulas. Nesse meio tempo escrevi bastante, sobretudo crítica de arte. Posteriormente, por volta da segunda metade da década de 1990, um pouco em função da pressão de amigos, acabei fazendo doutoramento na Filosofia da USP, que resultou no livro A forma difícil. Então a minha formação se deu muito por mim mesmo, embora a conversa com pessoas do meio da arte – e tive a sorte de encontrar um meio muito rico – e de outras áreas também tenha sido de grande importância para mim. Infelizmente nunca tive um professor propriamente, e isso é duro porque às vezes para ir daqui até a esquina é preciso dar uma volta por toda a cidade. Quando você não tem uma orientação, você lê muita bobagem, você bate muito a cabeça. Na década de 1980, morei um tempo na Alemanha, onde frequentei diversos cursos, o que foi muito útil para mim, sobretudo o acompanhamento de conferências de um professor chamado Robert Kudielka, de quem depois publicamos muitos textos no Brasil, além de participar de vários colóquios.

IDE – Mas já com essa cabeça você morou na Alemanha, voltado para artes. Houve alguma razão para escolher a Alemanha?

RN – Eu era muito mais jovem, tinha 26 anos, e queria aprender alemão para ler alguns poetas e filósofos. Uma intenção meio romântica.

IDE – Coisa de autodidata mesmo.

RN – Pois é... Ao voltar da Alemanha, fiquei meio sem norte, um pouco desanimado, um pouco deprimido. E foi essa situação que me levou a escrever meu primeiro livro1, um trabalho maior que me tirasse do atoleiro. Ele nasce de uma constatação mais ou menos simples: até El Greco, a pincelada praticamente nunca se mostrava, o ideal da grande arte renascentista era ocultar a arte com a própria arte e para isso era necessário pôr de lado tudo que remetesse à realização dos quadros. Esse foi o primeiro trabalho mais sistemático que fiz, com todas as dificuldades de um jovem no começo da carreira, com pouco dinheiro e pouca orientação. O projeto nasceu de algumas inquietações nascidas da possibilidade, na viagem à Europa, de conviver mais de perto com grandes trabalhos de arte nos museus de lá.

Precisava, naquele momento, me envolver com algum trabalho mais sistemático e isso me pareceu a coisa mais viável. Até então, já tinha escrito bastante, fazia textos para catálogos e jornais, trabalhos menores. Naquela época, talvez não conseguisse escrever algo mais longo sobre um artista contemporâneo. E também havia algo de desafio. Eu me formei vendo arte contemporânea e arte moderna. Acho que vi no El Greco uma possibilidade nova. Nem acho que ele seja um dos maiores artistas da sua época. Há muita irregularidade na sua produção. Mas o fato de ele fazer da pincelada aparente um elemento estruturador da sua pintura possibilitava discutir questões a meu ver centrais do Renascimento, sobretudo um ideal de transparência que punha de lado qualquer traço de trabalho nas pinturas.

 

Arte – Artistas

IDE – Já que entramos neste tema, você poderia dizer o que é arte para você? O que você acha que faz um artista, o que move o artista?

RN – Eu acho que há um lado cada vez mais desprezado, mas a meu ver decisivo, que é o talento. Ele é desprezado porque há uma tendência crescente, até por causa das universidades, de só se considerar arte aquilo que pode ser justificado logicamente, por ideias ou por uma inserção na história da arte. Mas a pessoa pode ter uma formação muito boa, pode ter convivido com um meio muito rico e não ser bom artista. E pode, inclusive, querer se expressar e não conseguir. Querer se expressar é uma coisa. Outra coisa é precisar dominar os meios que dão realidade a essa tentativa de expressão, pela música, pelas palavras, pelo corpo.

Por outro lado, a arte é um tipo de trabalho como os outros. É preciso experimentar, fazer, expor, ouvir o que os outros falam. Penso também que é uma atividade que envolve muita coragem, sobretudo a coragem de ficar sozinho. Eu conheci muita gente que ficou sozinha por muito tempo – não se esqueça que nosso meio de arte sempre foi frágil – até ser reconhecida, o que não é muito simples. A arte é distinta da medicina, da economia ou da engenharia; a efetividade ou a pertinência de um trabalho de arte é distinta de uma coisa de que se tem um conceito claro. Numa cirurgia no cérebro ou no coração a prova dos nove é mais simples. Por certo, todas essas atividades também envolvem o talento; ninguém é um grande médico só porque quer ser um grande médico. Não acho que os artistas sejam melhores que ninguém. Mas acredito que a insegurança de um artista é muito maior que a insegurança em outros campos, pois ele não trabalha com um conceito minimamente forte. O que determina a grandeza de uma obra de arte? Um certo consenso, ou seja, uma coisa teoricamente muito frágil.

IDE – Se alguém chega ao consultório de um psicanalista e fala "eu sou artista", você assume que aquela pessoa é artista. Agora, você, como crítico, olha para um objeto e pode falar: não, isso não é arte. Seu critério talvez seja outro.

RN – Eu não acho que arte é uma coisa de especialista. Talvez haja pessoas mais preparadas para discutir, para avaliar, mas eu acho que a vocação do trabalho de arte é ser mais universal mesmo, de modo que todos possam opinar. E podem, e devem. É da natureza do trabalho de arte suscitar essa discussão justamente por não ter um conceito forte.

 

Arte e Caos

IDE – Será que a arte não é justamente o contrário do caos, ou seja, uma ordenação da experiência?

RN – Eu acho que em princípio é: há uma tradição em se pensar o trabalho de arte assim. Eu penso que todos os grandes trabalhos de arte são uma formalização, são uma ordenação do mundo, da experiência, do sensível, mas que permitem outras interrogações. Não se trata de uma ordenação que suspende as interrogações. Se eu der uma ordem para o meu filho, acabou. Isso também é uma forma de ordenar: você tem que chegar à meia-noite e ponto-final. Trabalho de arte não é bem assim. A possibilidade de você continuar admirando um trabalho do século XV é a medida de que ele está pulsando ainda, levantando novas indagações. A Monalisa não é qualquer coisa, é possível ter com ela uma relação ainda muito inteligente. Ela não é somente um objeto erudito, embora, como tudo, possa se tornar também um fetiche.

IDE – Quer dizer, o trabalho de arte é algo vivo, que diz respeito a muitas pessoas?

RN – Eu acho que sim. Embora nem sempre se pense assim. Não acredito que, idealmente, no horizonte, a arte seja uma coisa para especialistas, até porque eu não fui formado nessa direção. Fui estudar essas coisas porque gostava delas. Não acredito que a vocação da arte diga respeito apenas a professores universitários, embora muitas vezes eles ajudem a compreendê-la. Balzac não escreveu para professores universitários, nem Flaubert, nem Machado de Assis. Agora, isso não significa dizer que à obra de arte caiba um envolvimento ou sedução do observador.

IDE – Algo imediato talvez?

RN – Eu acho até que a ação de um trabalho de arte pode ser imediata, mas é muito fácil também essa "imediatez" conduzir a algo regressivo. Vocês sabem disso muito mais do que eu. Nós temos essa dimensão e eu acho que há uma série de manifestações pseudoartistísticas que apoiam ou afirmam essa dimensão regressiva nossa muito mais do que uma dimensão emancipatória. E a meu ver, ser emancipatória é uma condição da arte. Algo que te afirme no que você tem de mais infantil, mais piegas, pode envolver, ter uma certa eficácia, mas você não ganha nada com isso. Agora, é a tal história, onde a lâmina corta? Aí é preciso ver caso a caso, porque também tem muita coisa na indústria cultural que é poderosa. Você pode dizer que o Fred Astaire não é um artista? No entanto, é o cinema de massa na sua expressão máxima.

Tudo isso depende do que a pessoa quer: querer ser reconhecido como artista é uma coisa, querer fazer arte é um pouco diferente. O Zola dizia que fracassar a vida inteira conduz ao esmorecimento. Se você achar que a concordância de muita gente faz com que o seu trabalho seja arte, eu suspeito que você tenha um critério ruim. Eu conheço muita gente, a Mira Schendel, por exemplo, que com 60 anos ainda era pouco reconhecida. E teve a coragem de fazer muita coisa em que acreditava. Hoje em dia ela está no alto, até internacionalmente, mas quem segurou o tranco foi ela. E não é simples ficar sozinho, qualquer um de nós sabe, em qualquer situação, afetiva, profissional, política, só que eu acho que o voo de um artista é um voo mais cego, porque você pode estar errado, você pode fazer um monte de coisas e não ser reconhecido e ser ruim mesmo. Em geral é isso mesmo que acontece. A arte opera com a experiência em duas pontas: o artista tem experiências do mundo e seu trabalho também possibilitará uma experiência, porém de uma ordem diversa, pois é uma experiência que de alguma forma recoloca o mundo como possibilidade. Nem todas as experiências têm essa dimensão. A gente passa o dia tendo experiências que em geral são simples repetições. Por certo, a aventura da arte tem no início algo de caótico, justamente por se dispor a enfrentar a realidade de maneira mais permeável e generosa. Mas não acredito que a manutenção do caos seja a sua aposta.

As relações que determinam um trabalho de arte têm a possibilidade de manter sempre aberta a interrogação acerca de uma obra. Pense num trabalho do Matisse, daqueles bem decorativos; por exemplo, uma odalisca com um monte de padronagens por trás. Aquilo seria uma maneira de, pela multiplicidade das padronagens, romper uma unidade dada e remontá-la. Eu acho que esse raciocínio, mesmo que um pouco esquemático, dá uma medida de como eu penso o trabalho de arte. Evidentemente, ele supõe uma relação com o mundo, supõe experiências, mas essa relação com o mundo não é necessariamente uma relação com o caos, porque o mundo já é muito formalizado também. O que o trabalho de arte vai fazer é, de relações muito mais rígidas, unívocas e impositivas, retirar relações que sejam mais emancipatórias, que mantenham a possibilidade de interrogação, que sejam mais reflexivas, e supõe, inclusive, uma maneira de organizar o mundo que não seja violenta.

Nesse sentido, o trabalho de arte visual tem uma singularidade em relação às demais artes. Porque, por ser o mais material – compare-o à musica ou à literatura ou mesmo ao cinema –, ele também pode ser em alguma medida um modelo de uma relação não violenta com o mundo. Porque o artista trabalha com couro, pedra, cores, madeira, tintas. São coisas que têm uma materialidade que a palavra, por exemplo, não tem. Um artista visual mantém um certo arcaísmo na relação com o mundo, um vínculo mais primário, embora isso seja algo que vem diminuindo, ou seja, poucos de nós têm uma relação com o mundo que seja dessa ordem mais transformadora, mais materialmente transformadora, nós operamos num nível simbólico muito alto e numa relação muito decisiva com imagens do mundo, mais do que com ele mesmo. De todo modo, a arte propõe uma relação com o mundo que seria de uma ordem distinta de uma relação instrumental, quando se pega minério de ferro, se faz ferro, do ferro se fazem para-lamas etc.

IDE – Mas aí se fazem milhares de para-lamas, milhares de carros...

RN – Claro, e repito, não tenho nada contra isso, respeito muito todos que fazem isso. Porém esse tipo de atividade, no seu conjunto, supõe uma relação de dominação com a natureza, que não sei se é a experiência mais interessante possível. Há uma série de questões contemporâneas relativas à ecologia, por exemplo, que derivam um pouco da crise desse modelo. Enfim, eu não acho que a arte seja uma alternativa, não tenho nenhuma fantasia em relação à utopia de uma sociedade de artistas, nem acho que todos são artistas. Mas penso que o que emociona num trabalho de arte, pelo menos numa certa medida, é você ter contato com alguma coisa que foi feita, que portanto nesse sentido não é tão distinta de uma parede, e que mantém uma interrogação, o contato com um mundo menos unívoco. Quer dizer, uma atividade que não se serve das coisas, da cor ou da pedra para obtenção de algo. Se um pintor maltratar uma cor, ela vai maltratá-lo muito mais. Eu estou entendendo por maltratar, você querer usá-la. Se você não tiver com os seus meios de expressão uma relação generosa, dificilmente irá obter alguma coisa boa. Isso serve para as palavras, para o corpo, para a dança, para qualquer coisa.

Pouca gente tratou o vermelho com maior generosidade que o Matisse, por exemplo. É necessário ter uma disponibilidade para ver o que é possível com o vermelho, em vez de lidar com ele a tapa. Quer dizer, eu acho que se você não tiver uma disponibilidade para os seus meios de expressão, sons, palavras, cores, materiais, formas, você vai repetir no trabalho de arte a mesma maneira de fazer o para-choque. Eu acho que essa singularidade é muito particular do trabalho de arte.

IDE – Fazendo uma relação com o que você falou, que o que te levou para o El Greco foi uma situação pessoal difícil, será que não daria para incorporar a ideia de caos também nesse contato que se tem com uma coisa que você desconhece em você?

RN – Olha, vamos chamar essa "coisa" de intuição, só para começar a conversar. No geral, ela é algo que você não domina, quer dizer, eu acho que as melhores ideias que tive, que as melhores intuições não são da ordem da vontade, são alguma coisa que você não controla – por isso mesmo talvez sejam o melhor, porque não são da ordem do controle...

IDE – Da razão...

RN – Do domínio. O Joseph Conrad dizia que uma intuição é como uma ilha vista de longe. Você vai chegando perto, as coisas começam a se desenhar, animal, árvore, pedra... A intuição tem realmente algo disso, em qualquer campo, pode ser até uma ideia matemática, mas é algo que você vislumbra mais ou menos e depois vai tentando...

IDE – Realizar.

RN – Pôr aquilo diante de você. No caminho aquilo vai para um lado, vai para outro, eu acho que é uma aventura, sim. Mas você precisa ter controle dos seus meios, sejam eles equações ou cores. Eu conheço muita gente que parece não estar à altura das suas intuições, e não me excluo desse grupo.

 

Arte Contemporânea

IDE – No seu livro O Vento e o Moinho, você usa a expressão "crise de inimigos", para se referir à sua compreensão da arte atual: uma dificuldade de articulação, organização e definição dos movimentos sociais e políticos atuais em dar sentido à fugacidade dos nossos tempos.

RN – Isso é uma coisa que me obceca há muito tempo. Eu fiz política estudantil nos anos 70, aquela época pesada, e todos nós trabalhávamos com esquemas de oposição: burguesia versus proletariado, capitalismo versus socialismo, revolução ou nada. Aos poucos me foi ficando claro que esse esquema não corresponde à situação contemporânea, ainda que desigualdades, crises e miséria persistam no mundo. Acredito que vivemos um momento muito rico, muito novo, mas não acho que haja muita coisa à altura desse momento. O prefácio daquele livro tenta sublinhar essa situação, uma situação difícil para o mundo todo. Pode ser que essa maneira de operar por oposições muito claras tenha acabado, e você tem que partir para algo novo. Essa foi uma tradição do pensamento e todas as tradições têm começo, meio e fim.

IDE – Quer dizer, o mundo só caminha se houver movimento. No tempo do nascimento da psicanálise, tínhamos um determinado contexto social, político, cultural. Hoje, o mundo está diferente e a psicanálise também precisa estruturar uma resposta a isso.

RN – O último trabalho que escrevi foi um texto sobre um artista que surgiu das práticas da Dra. Nise da Silveira, um pintor chamado Emygdio de Barros. Ele tinha um diagnóstico de esquizofrenia, mas é seguramente um de nossos maiores artistas, e acabou ficando meio circunscrito a esse lugar de arte-loucura e não entrou para a nossa história da arte. Eu estive no Engenho de Dentro – onde ainda funciona um hospital psiquiátrico e onde está localizado o Museu de Imagens do Inconsciente, que guarda os trabalhos de Emygdio – várias vezes, para ver suas pinturas e para conversar com profissionais que conheceram o Emygdio. Um deles, um médico e artista chamado Lula Wanderley, uma pessoa particularmente interessante, comentou que cada época tem as suas doenças mais típicas. Na época do Freud era a histeria, há pouco tempo era a esquizofrenia, agora é anorexia, pânico, essas ansiedades sem fim. E penso que essa avalanche de ansiedade talvez também tenha a ver com essa crise de inimigos, com uma dificuldade de determinarmos nossa identidade.

IDE – Para Emygdio, seria como se a arte fosse um meio de organização de um caos interno?

RN – O caso desse senhor é incrível porque ele viveu 91 anos e só o Museu de Imagens do Inconsciente tem 3.300 trabalhos dele. No início, ele fazia coisas muito malucas, por exemplo, ele pintava uma tela, e depois pintava outra por cima. Aí um instrutor teve que ajudá-lo neste aspecto, mas foi só isso. E estou convencido que a possibilidade aberta pelo ateliê de pintura – criado por Nise da Silveira e pelo artista Almir Mavignier – foi decisiva para a razoável lucidez que o acompanhou até a morte.

IDE – Quando te convidamos para esta entrevista, a primeira coisa que te ocorreu foi citar o Pollock.

RN – Em 1950, um crítico chamado Bruno Alfieri publicou na Time uma análise sobre obras de Pollock em que essa questão do caos tinha importância. E então o artista escreveu uma carta à revista em que dizia: "No caos, damm it!" É como se a aparência dos trabalhos do Pollock tivesse algo de caótico, mas...

IDE – Tem uma ordem aquele caos.

RN – E a maneira como ele pensa seu modo de pintar é muito interessante. Existem registros filmados de alguns comentários que ele fazia enquanto pintava, e num deles, a certa altura, ele fala: "perdi o contato", como se ele houvesse desencadeado um movimento, um ritmo do qual perdeu o compasso. Portanto, não havia nada de caótico na sua busca. E eu já me perguntei muitas vezes quem não teve essa experiência um dia? O que é isso, eu não sei bem, mas não é porque eu não sei que não existe, não é? Mas há realmente muitas circunstâncias em que nosso comportamento abre brechas na realidade que não conseguimos acompanhar. Eu acho que o Pollock é justamente o cara que tentou achar uma maneira de oposição no próprio gesto, porque se aquilo fosse só uma maneira de jogar a tinta, o resultado seria só um papel de parede apocalíptico, como disse o crítico Harold Rosenberg. O que eu acho muito interessante no trabalho dele é justamente isso, você não tem mais uma forma tradicional de agir: pegar um instrumento, um pincel, molhar num outro material, a tinta, e proceder da mesma maneira como se procede para fazer um bloco de tijolo. No caso, é como se ele se recusasse a esse controle.

IDE – E a questão do uso do corpo como instrumento?

RN – Aí muda tudo. É um corpo que retira a finalidade do trabalho e que portanto se mostra de maneira muito mais ostensiva. Se você pegar um copo e me passá-lo para que eu o utilize, o corpo está em jogo, mas a finalidade estrita do gesto faz com ele quase desapareça. Quando você já não toca a tela, essa finalidade é retirada, você não está mais operando no sentido tradicional, o que dá àquela atividade uma singularidade muito interessante. E acredito que em parte a grandeza do Pollock está em produzir obras nas quais o corpo é, simultaneamente, a busca de sentido e uma oposição a ele (por sua presença excessiva). Acho que poucos artistas chegaram tão perto de vislumbrar uma nova forma de configuração, sem oposições clássicas, como ele.

 

 

* Psicanalista, membro associado da SBPSP.
** Psicanalista, membro filiado da SBPSP.
1 Naves, Rodrigo (1985). El Greco. São Paulo: Brasiliense.