SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.35 número54Entrevista com Rodrigo NavesA ética, o caos e a felicidade índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

EM PAUTA - CAOS

 

A noção mítica de Kháos na Teogonia de Hesíodo

 

The mythical notion of Khaos in Hesiod’s Theogony

 

 

Jaa Torrano*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Sobre a noção mítica de Caos se formulam e se analisam três questões, a saber, 1) em que e 2) por que 3) o que se lê no livro O universo, os deuses, os homens de Jean-Pierre Vernant se distingue e difere do que se pode ler no texto da Teogonia de Hesíodo?

Palavras-chave: Pensamento mítico, A noção mítica de Caos, Teogonia, Hesíodo, Hiroshima, Nagasaki, Guerra Fria.


ABSTRACT

On the mythical notion of Khaos, we can ask three questions: 1) in which and 2) why 3) what can be read in the book L’univers, les dieux, les hommes by Jean-Pierre Vernant is distinct and different from what can be read in Hesiod’s Theogony?

Keywords: Mythical thought, The mythical notion of Khaos, Theogony, Hesiod, Hiroshima, Nagasaki, Cold war.


 

 

O universo, os deuses, os homens (2003) e as memórias intituladas Mito e política são os últimos livros publicados por Jean-Pierre Vernant, e têm o traço comum, que os distingue dos outros livros anteriores do mesmo autor, de apresentar de certo modo programaticamente uma autointerpretação.

Em O universo, os deuses, os homens o autor se apresenta como um contador de mitos gregos, primeiro para o neto Julien e depois para um seleto grupo de amigos isolados numa certa ilha, como se contar e ouvir mitos gregos ainda pudessem fascinar como um entretenimento repetido e repetitível. Esse traço de contador de mitos e esse pressuposto de que estes possam ser um entretenimento repetido e repetitível são, a nosso ver, essenciais à compreensão do que este livro é e se propõe, a saber, reatualizar os mitos gregos.

A persona do contador de mitos gregos confere ao escritor desse livro algo do inefável poder característico dos antigos contadores de mito – o poder de mostrar mediante a narrativa (propriamente dita "mito") como o mundo se estrutura e se explica em seus aspectos fundamentais. O avô contador de mitos não está apenas contando histórias para o neto antes de dormir, mas transmitindo à geração seguinte o conhecimento do mundo. Assim, ainda que por profissão fosse eminente helenista, o avô transmitia ao seu neto não só o conhecimento dos mitos contados, mas o conhecimento do mundo em tempos vividos pelo avô.

Nesse sentido, O universo, os deuses, os homens reflete, a nosso ver, a imagem do mundo nos tempos vividos por Jean-Pierre Vernant. Parece-nos que poderíamos distinguir, na imagem do mundo descrita pela narrativa vernantiana do mito, o que pertence aos tempos vividos por Jipé (como o neto Julien o chamava) e o que pertence ao pensamento mítico documentado na Teogonia de Hesíodo.

Para o propósito dessa distinção, retomemos a descrição da noção mítica de Caos na narrativa vernantiana e o que podemos ler e colher da noção mítica de Caos no texto da Teogonia (2006) de Hesíodo, tentando comparar e distinguir o que há a mais e a menos por um lado nessa narrativa e, por outro, nesse texto.

Jean-Pierre Vernant aceita de Paul Mazon a tradução de Kháos por "Abismo" e entende "Abismo" no mesmo sentido que Tártaro, com o que se compromete a compreensão da relação entre Kháos e Gaîa, cuja tradução por "Terra" não nos parece tão questionável quanto a de Kháos por "Abismo". Parece-nos que esse compromisso na compreensão da relação entre Kháos e Gaîa se deve antes aos tempos vividos por Jipé do que ao pensamento hesiódico documentado na Teogonia. Trocando em miúdos, examinemos as razões de nossa suspeita de que o "Abismo" vernantiano possa não ser o Kháos hesiódico.

"Abismo", por via do latim abyssus, vem do grego ábyssos, que significa literalmente "sem fundo", formado do prefixo negativo "a-" e de bússos, "fundo (do mar)". Isso corresponde à descrição do Tártaro na Teogonia, mas, a nosso ver, não necessariamente à de Kháos.

Pressupomos uma distinção de Kháos e Tártaro, porque são dois nomes distintos, com conotações e evocações distintas, ainda que sejam associados.

Há na Teogonia quatro ocorrências do nome Kháos, em cada ocorrência uma nova associação confere um valor novo a essa noção.

1) O poema começa com a invocação às Deusas Musas, que se desdobra num hino descritivo da natureza e atribuições dessas Deusas e que conclui com a súplica às Musas de que cantem a origem dos Deuses e digam "quem dentre eles primeiro nasceu" (T. 115). A primeira ocorrência do nome Kháos é justamente a resposta à questão "quem dentre eles primeiro nasceu", a saber:

Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
(T. 116-122)

Faz-se necessário considerar esses sete versos como um conjunto, porque do ponto de vista da sintaxe é constituído por um único período cujo verbo principal génet’, "nasceu", tem o sujeito composto de quatro nomes, a saber: Kháos, nesta citação não traduzido mas vernaculizado "Caos", Gaîa, traduzido por "Terra", Tártara, vernaculizado "Tártaro", e Éros, vernaculizado "Eros".

Observe-se que o nome Caos responde à questão "quem dentre eles primeiro nasceu" com a substituição do grau normal do advérbio próton, "primeiro", pela forma superlativa do advérbio prótista "bem primeiro" (ou mais literalmente, "primeiríssimo") sobrecarregada por três partículas de ênfase que reforçam asseverações é toi mèn ("Sim").

Essa ênfase superlativa na prioridade de Caos o distingue e contrapõe aos outros três sujeitos do mesmo verbo. O que significa essa enfática prioridade atribuída a Caos? Se devemos buscar a resposta a essa pergunta na perspectiva do pensamento mítico hesiódico, devemos então recusar todas as formulações que recorrem a noções próprias do pensamento abstrato posterior e estranhas ao pensamento mítico hesiódico, notadamente as que apelam às categorias abstratas de espaço e de tempo. Não se trata, pois, nem de uma anterioridade cronológica nem de uma relação de primazia espacial.

A natureza dessa prioridade atribuída a Caos a nosso ver se revela nessa relação em que se encontram os quatro nomes que compõem o sujeito do verbo génet’, "nasceu". Para compreender-se a dinâmica dessa relação, é necessário compreender o que significa cada um dos quatro nomes, cujas noções estão implicadas nessa relação.

Em contraste com o Deus Caos, que nestes versos inaugurais da Teogonia se descreve unicamente pelo nome e pela ênfase na prioridade, o nome da Deusa Terra se desdobra em um epíteto (eurýsternos, "de amplo seio"), um aposto ("de todos sede irresvalável sempre"), e uma oração adjetiva ("dos imortais que têm a cabeça do Olimpo"). Esse desdobramento em que se explicita a natureza da Deusa Terra como fundamento inconcusso de tudo e de todos os Deuses Olímpios por sua vez se desdobra em seu contrário com a nomeação do terceiro nome, Tártaro.

A seção da Teogonia que se pode intitular "descrição do Tártaro" (T. 722-819) descreve Tártaro como khásma még’, "vasto abismo" (T. 740) e como lugar da queda sem direção e sem fim (T. 740-743). O desdobramento em que se explicita a natureza da Deusa Terra, pois, conclui com a paradoxal inclusão de sua contra-natureza, a saber, a privação de fundamento, o lugar da queda cega e sem fim.

O termo com que se descreve o Deus Tártaro, khásma, "abismo" (T. 740), tem a mesma raiz do nome Kháos, "Caos", e do verbo khaíno, que significa "abrir-se; entreabrir-se; fender-se". A palavra khásma é formada dessa raiz verbal e do sufixo -ma designativo de objeto ou resultado da ação. A simetria entre Caos, o primeiro dos quatro termos que compõem o sujeito do verbo génet’, "nasceu", e Eros, o quarto termo desse sujeito composto, permite-nos entender Kháos como o nome da ação de entreabrir-se e fender-se, e assim entender Tártaro, dito khásma, como o resultado dessa ação de entreabrir-se e fender-se. A simetria entre Caos e Eros como nomes de ação permite-nos pensar que descrevem as duas formas de procriação pelas quais se desdobram as genealogias divinas da Teogonia, Caos nomeando a procriação por cissiparidade, e Eros nomeando a procriação por união amorosa.

Essa simetria entre Caos e Eros e os versos 740-743 da Teogonia descritivos do Deus Tártaro nos permitem compreender a relação entre Caos e Tártaro mediada por Terra nos versos 116-119 como uma relação entre kháos – entendido como a ação de entreabrir-se e fender-se – e khásma – entendido como o resultado dessa ação – compreendendo-se assim o nascimento do Deus Tártaro como uma procriação da Deusa Terra presidida por Caos, o que se diz por cissiparidade. Nessa presidência da procriação e do nascimento por cissiparidade reside a prioridade ontogenética – não espacial nem temporal – de Caos.

O verso 119 localiza o Deus Tártaro, dito eeróenta, "nevoento" (i.e. invisível), "no fundo do chão de amplas vias", como se o lugar da queda cega e sem fim constituísse um último e abscôndito aspecto da sede sempre irresvalável de tudo e de todos, a saber, o aspecto da privação.

O par antitético constituído por Terra e Tártaro – o ser do fundamento inconcusso universal e, como o último termo da sua primeira explicitação, a total negação e privação de todo fundamento – preenche por sua vez a condição necessária da possibilidade de nascer o Deus Eros, o Deus que preside a procriação por união amorosa, e cujo ser, portanto, tem por condição necessária a preexistência do par amoroso, o qual, por sua vez, pressupõe a dúplice preexistência da mãe primordial e da ação cujo nome é Caos. Visto que a mãe primordial somente vem a ser mãe primordial mediante essa ação de Caos, assim se explica a enfatizada prioridade de Caos sobre os primeiros nomeados.

Os versos 120-122 descrevem o Deus Eros, o quarto nome do sujeito composto do verbo génet’, "nasceu", também com um superlativo, kállistos, "o mais belo (entre os Deuses)", e ainda com dois traços aparentemente contraditórios, a languidez (lysimelés, "solta-membros") e o poder universal sobre mortais e imortais.

Os quatro nomes do sujeito composto do verbo génet’, "nasceu", constituem, pois, uma unidade complexa cujo centro na figura da Deusa Terra, mãe universal, integra os outros três como aspectos necessários do próprio ser-fundamento universal: as duas formas de procriação descritas na Teogonia – cissiparidade e união amorosa, domínios opostos e complementares de Caos e Eros – e o aspecto sombrio da negação e da ausência de todo fundamento, descrito na figura nevoenta (i.e. invisível) de Tártaro.

Esse conjunto dos sete versos inaugurais da Teogonia (T. 116-122), recortados pela simplicidade do período sintático que reúne os quatro primeiros nomeados como o sujeito quádruplo de um único verbo principal – génet’, "nasceu", o verbo por excelência genealógico e teogônico – é emblemático da configuração própria da percepção peculiar ao pensamento mítico: uma percepção sinótica, concreta e imediata, que contrasta com a percepção característica do pensamento abstrato, abstrata e analítica.

2) Na sua segunda ocorrência na Teogonia, o nome Caos, declinado no genitivo-ablativo (Kháeos, T. 123), se associa à sua descendência imediata, com o que se explicita a sua natureza:

Do Caos Êrebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Êrebos em amor.
(T. 123-125)

O nome Érebos, vernaculizado "Êrebos", tem a mesma raiz que o verbo erépho, "cobrir", e designa as trevas subterrâneas. Nascidos de Caos, necessariamente por cissiparidade, Êrebos e Noite negra, unidos em amor, geram Éter e Dia.

O nome Aithér, vernaculizado "Éter", tem a mesma raiz que o verbo aítho, "acender", "queimar", "brilhar", e designa o fulgor diurno e noturno do céu.

Os nomes femininos Hemére, traduzido "Dia", e Nýx, traduzido "Noite", associados aos nomes masculinos Êrebos e Éter, compõem dois pares antitéticos, sendo o par tenebroso gerado por cissiparidade e o par luminoso gerado por união amorosa. Assim se explicita a natureza sombria de Caos e a sua confinidade e complementaridade com a natureza luminosa de Eros.

Os versos 126-133 da Teogonia, explicitando a natureza da Deusa Terra mediante o catálogo dos descendentes imediatos dela, nascidos por cissiparidade, ressaltam a presença de Caos – não nomeado senão pela litotes "sem o desejoso amor" (áter philótetos ephimérou, T. 133) – na procriação e nascimento dos Deuses presentes na paisagem do Mediterrâneo:

Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.
Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas.
E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas,
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos. (etc.)
(T. 126-133)

Nesses versos, a geração por cissiparidade dos Deuses Terra, Céu, altas Montanhas e Mar – os Deuses visíveis na paisagem do Mediterrâneo – aponta e delimita a confinidade e associação de Caos com os luminosos Deuses súperos.

A nomeação de "Céu" (Ouranón, T. 126) nesse catálogo dos primeiros gerados da Deusa Terra reitera a unidade e identidade dos Deuses Céu e Terra como "sede irresvalável sempre" (T. 117, 128). Considerando-se que Céu e Olimpo são equivalentes como domicílio dos Deuses súperos, essa unidade e identidade dos Deuses Céu-Olimpo e Terra já se mostra nos versos 117-118 da Teogonia, segundo os quais Terra é "sede irresvalável sempre / dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado".

3) Na sua terceira ocorrência na Teogonia, na descrição das consequências da Titanomaquia, o nome Caos, declinado no caso acusativo (Kháos, T. 700), marca o termo do movimento do "calor prodigioso" (Kaûma dè thespésion, T. 700) da conflagração universal resultante da luta de Zeus e seus aliados contra seu pai Crono e seus aliados, dita "titanomaquia" porque "Titãs" é o epíteto comum dado por Céu a Crono e seus irmãos (cf. T. 207-210).

4) Na sua quarta ocorrência, o nome Caos – declinado no caso genitivo-ablativo no regime da preposição péran "além de", "do outro lado de" – no sintagma "além do Caos sombrio" (péren Kháeos zopheroîo, T. 814) indica o Tártaro como lugar dos Titãs, determinado por Zeus, ao vencê-los na titanomaquia. Portanto, se Tártaro se situa "além do Caos sombrio", essa situação distingue o lugar de Tártaro do lugar de Caos, e Caos e Tártaro não são o mesmo lugar, nem estão no mesmo lugar.

Em ambas, as segunda e quarta ocorrências, o caso genitivo-ablativo confere ao nome Kháeos o valor de dupla referência: no sentido de Caos sombrio a seus luminosos descendentes Éter e Dia (Kháeos, T. 123), e no sentido da exclusão de toda participação nos Deuses súperos luminosos e na soberania de Zeus, "além de Caos sombrio" (péren Kháeos zopheroîo, T. 814).

As associações de Caos produzidas por essas quatro ocorrências do nome na Teogonia, portanto, incluem a titanomaquia e a vitória e a soberania de Zeus por um lado e, por outro, o confinamento dos inimigos vencidos de Zeus no Tártaro.

O mito principal da Teogonia narra os combates pela soberania, primeiro entre Céu e Crono e depois entre Crono e Zeus; esses combates decidem a sucessão das soberanias de Céu, Crono e Zeus; a narrativa desses diversos combates e o contraste entre essas diversas soberanias explicitam a natureza de Zeus e de sua soberania. Para compreendermos, pois, o sentido dessa associação entre Caos e Zeus e da relação que se estabelece nessa associação entre Caos e Zeus, examinemos os mitologemas – como se dizem em grego as sequências narrativas – que compõem essa narrativa e o seu imaginário: 1) o mitologema do Céu e do combate entre Céu e Crono, 2) o mitologema de Crono e de sua soberania, 3) os quatro mitologemas dos combates de Zeus pela soberania, e 4) a aclamação de Zeus rei pelos Deuses aconselhados por Terra e a partilha presidida por Zeus das honras entre os Deuses (T. 881-885).

1) Terra primeiro por cissiparidade gerou igual a si mesma Céu constelado para cobri-la toda e para ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre (T. 126-127), e depois, unida em amor ao Céu (autàr épeita / Ouranôi eunetheîsa, T. 132-133) gerou os filhos que o pai Céu – ávido de cópulas – impedia de virem à luz; Terra concebe o plano doloso e o aço grisalho, põe Crono, o filho mais novo dela e do Céu, em emboscada; Crono castra o Céu; e dos salpicos sangrentos sobre a Terra nascem as Erínias punitivas, e os belicosos Gigantes, e as ninfas dos freixos, de que se fazem as lanças; e da espuma do pênis flutuando no Mar nasceu Afrodite, dita philommedéa, "amor-do-pênis", por trocadilho com philomeidéa, "amiga-do-sorriso"; castrado, Céu impreca os filhos com o epíteto de Titãs e a previsão de castigo por serem tão altivos (T. 126-210).

2) Crono, unido a sua irmã Reia, gerou as Deusas Héstia, Deméter e Hera e os Deuses Hades, Posídon e Zeus, mas sabendo de Terra e Céu constelado que lhe era destinado por desígnios do grande Zeus ser vencido por seu filho, ainda que poderoso, engolia os filhos tão logo nascidos; entretanto, quando Reia ia parir Zeus, suplicou aos pais dela, Terra e Céu constelado, que concebessem um ardil para que ela parisse às ocultas e Crono fosse punido pelas Erínias de seu pai e de seus filhos engolidos; eles a atenderam e através da Noite negra a levaram a Licto, em Creta, onde ela pariu Zeus, escondeu-o numa gruta e deu a Crono uma pedra envolta em cueiros em vez do filho, Zeus, que cresceu rápido e com violência o expulsou da honra e reina entre o imortais (T. 453-506).

3) Os quatro mitologemas dos combates de Zeus pela soberania:

3.1) O jogo de astúcia entre Prometeu e Zeus, com o qual se estabelece a condição mortal e sexuada dos homens, o sacrifício cruento como reunião dos Deuses e dos homens, o castigo imposto a Prometeu por sua tentativa de enganar Zeus, e a superioridade em astúcia de Zeus sobre Prometeu (T. 507-616).

3.2) A titanomaquia, na qual Zeus conta com os conselhos da Terra (T. 626), com a aliança dos Centímanos Briareu, Coto e Giges, filhos da Terra e do Céu (T. 147-153, 626-675, 713-717), com a aliança dos Deuses Olímpios, ditos "doadores de bens", filhos de Reia e Cronos (T. 633-634), e com o seu próprio furor (T. 687-711); em consequência da vitória de Zeus, os Titãs são excluídos de toda participação no ser-fundamento, lançados e encarcerados no Tártaro (T. 617-721).

3.3) A luta contra Tifeu: filho de Terra e Tártaro, com cem cabeças de serpente-vidente, com olhar flamejante e com vozes várias, Tifeu representa a astúcia infernal, mas Zeus o surpreende, fulmina em outra conflagração universal (outra que a da titanomaquia) e o atira ao Tártaro (T. 820-880).

3.4) As núpcias de Zeus e Astúcia (Mêtis): avisado por conselhos de Terra e Céu constelado que sua esposa Astúcia geraria primeiro uma filha igual ao pai no furor e na prudente vontade, e depois um filho que suplantaria o pai, Zeus a enganou com ardil e palavras sedutoras, e engoliu-a ventre abaixo para que Astúcia lhe indicasse o bem e o mal (assim se explica o epíteto de Zeus Metíeta, "Sapiente" ou "Astucioso", T. 886-900).

Essas sinopses nos permitem observar nos versos supracitados:

1) Terra concebe o plano vitorioso; a soberania de Céu, gerado para cobrir a Deusa Terra e ser sede irresvalável sempre de todos os imortais, é descrita por imagens de vida intrauterina e não manifesta.

2) A soberania de Crono reside na reiteração da vida intrauterina e não manifesta, na vigilância enganada em tentativa cega de evitar o inevitável (i.e. a luta contra os desígnios de Zeus), e no cumprimento da punição das Erínias do pai e dos filhos engolidos.

3) A soberania de Zeus se afirma na superioridade em astúcia sobre 3.1) Prometeu, cuja arte dolosa na tentativa de trapacear Zeus serve aos desígnios de Zeus, 3.2) Crono e seus aliados, suplantados pelas alianças mais poderosas de Zeus, 3.3) Tifeu, de cem cabeças de serpente-vidente, surpreendido por Zeus onividente, e 3.4) Astúcia mesma, a mais sábia que os Deuses e os homens mortais, surpreendida e subsumida por Zeus astucioso.

4) Em contraste com contraimagens de soberania de Céu e de Crono, a soberania de Zeus reside no mundo manifesto – segundo o plano doloso e os conselhos oraculares da Deusa Terra, mãe universal – e entre os Deuses imortais e homens mortais preside a partilha das honras e da participação no ser-fundamento.

Se diante dessas sinopses da Teogonia de Hesíodo retornamos à narrativa vernantiana do mito grego, ao depararmos com um "Abismo" no lugar de Caos, surpreende-nos como, no capítulo intitulado "A origem do universo", do livro O universo, os deuses, os homens, a imagem vernantiana do mundo reproduz e conserva o sentimento de insegurança e de instabilidade do mundo depois da bomba de Hiroshima e Nagasaki e durante a chamada Guerra Fria.

O retorno imediato dessas páginas de Jean-Pierre Vernant ao texto de Hesíodo nos permite constatar que o contador de mitos, que na segunda metade do século passado reatualizava os mitos gregos contando-os a seu neto e a seus amigos, transmite em sua narrativa algo mais inquietante e perturbador do que havia no texto hesiódico.

 

Referências

Bally, A. (2000). Dictionnaire grec français. Paris: Hachette.         [ Links ]

Denniston, J. D. (1991). The greek particles. London: Gerald Duckworth.         [ Links ]

Hesiod (1971). Theogony. Edited with prolegomena and commentary by M. L.West. Oxford: Clarendon Press.         [ Links ]

Hésiode (1972). Théogonie, les travaux et les jours, le bouclier. (P. Mazon, trad.). Paris: Les Belles Lettres.         [ Links ]

Hesíodo (2006). Teogonia, a origem dos Deuses. (J. Torrano, trad.). São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

Malhadas, D. et alii (2010). Dicionário grego-português. São Paulo: Ateliê Editorial.         [ Links ]

Vernant, J.-P. (2003). O universo, os deuses, os homens. (R. F. d’Aguiar, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.

 

 

Endereço para correspondência
Jaa Torrano
Rua Edgard Machado Santana, 290, apto. 33
05587 000 - São Paulo - SP
tel.: 11 3726- 6383
E-mail: jtorrano@usp.br.

Recebido: 01/04/2012
Aceito: 20/04/2012

 

 

* Professor titular de Língua e Literatura Grega da Universidade de São Paulo, tradutor de Hesíodo, Ésquilo e Eurípides, autor de A Esfera e os Dias: poemas (São Paulo: Annablume, 2009).