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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

EM PAUTA - CAOS

 

Solidão e pós-modernidade

 

Solitude and postmodernity

 

 

Deodato Curvo de Azambuja*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor investiga diferentes facetas da solidão na pós-modernidade, tal como expostas em cartoons, redes sociais de relacionamento, filmes e na literatura, e articula essas manifestações com achados da clínica. Discute o conceito do "sentimento de solidão" de M. Klein, centrado em torno do objeto primário materno, justapondo-o a uma interpretação pessoal da figura paterna como o determinante primário de todo o desamparo e sentimento de solidão.

Palavras-chave: Solidão, Desamparo, Pós-modernidade, Individualismo/Narcisismo, Figura paterna.


ABSTRACT

The author investigates multiple faces of solitude in the postmodernity, such as exposed in cartoons, social network, films and literature, and try to articulate these manifestations with clinical developments. He discusses the concept of "feeling of solitude" in M. Klein, centered in the maternal object, and points to a personal interpretation of the parental image as the primary determinant of all helplessness and feeling of solitude.

Keywords: Solitude, Helplessness, Postmodernity, Individualism/Narcisism, Paternal image.


 

 

Um cartoon de Peter Mueller na New Yorker, reproduzido no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo em 11/03/12, ilumina como um emblema o crescente individualismo, e provavelmente a solidão de nossa época, ao mostrar uma jovem mulher convidando amigos para um encontro em sua casa, para todos juntos "mexerem nos seus celulares". O tema é fascinante, pois coloca em questão o quanto a solidão, em nossos dias, parece ser normativa a ponto de "virar programa". Isto traz à lembrança a fala de um paciente que diz apreciar a última sessão de cinema aos domingos, onde há uma espécie de solidão compartilhada com a maioria da plateia sendo composta de indivíduos solitários que preferem essas sessões menos lotadas, onde evitam ficar próximos dos demais. Seria a solidão, em nossos dias, diversa do que há séculos já cantaram os poetas e escritores, e, mais recentemente, já analisaram os psicanalistas?

Ou a solidão de que fala o sargento Welsch, interpretado por Sean Penn no filme de Terrence Malick, The Thin Red Line, sobre a batalha de Guadalcanal na Segunda Guerra Mundial, é inevitável ao ser humano e nos acode sempre que estamos em conflito na interação com outras pessoas, apartados do mais íntimo de nós mesmos? Um soldado de seu batalhão pergunta a Welsch se ele se sentia só e ele responde: "Só quando cercado pelas pessoas".

Sobre o status da solidão em nossos dias, a internet é fonte pródiga de informações. Comentando um post sobre o grande número de pessoas que atualmente moram sozinhas (sem esclarecer se por opção ou por necessidade/contingência) nos Estados Unidos – 30% dos americanos ou 33 milhões de pessoas – alguém escreveu: "A ideia de que quem mora sozinho é um solitário talvez seja um pouco equivocada. Estou muito bem acompanhado comigo. Acredito que outras pessoas solitárias também estejam. Num mundo onde qualidade é coisa rara, estar acompanhado de si mesmo é uma delícia".

No comentário acima, de defesa de uma "solidão consentida", ou de um "isolamento opcional", o que impressiona em primeiro lugar é a associação de "solidão" a "qualidade", qualidade de vida – um valor contemporâneo. Em segundo lugar, o que impressiona é a defesa da solidão, do estar consigo mesmo, como "uma delícia". O que inevitavelmente, como notou outra pessoa na sequência do post, faz lembrar os versos de Caetano Veloso em Dom de Iludir: "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". Ou seja, solidão e individualismo parecem hoje andar de mãos dadas. Um jeito de ser que pode tanto refletir um estado de introspecção criativa como restar imperturbado pela fala de um outro.

O individualismo tem sido associado ao "encapsulamento" do homem contemporâneo em um tempo e espaço virtual, generalizando-se a ideia de um novo homem que prefere se comunicar com o restante de seus pares sobretudo por meios eletrônicos (celulares, e-mails, redes sociais). Esse fenômeno está bem ilustrado no filme Medianeras, do argentino Gustavo Taretto, em que dois jovens vivem sozinhos na grande Buenos Aires em prédios fronteiriços, e cruzam-se nas ruas sem nunca se encontrar: Martin, que tem por única companhia um cachorro "herdado" da ex-namorada, e que até tenta marcar encontros pela internet, que nunca dão certo; e Mariana, decoradora de vitrines, que vive isolada desde que rompeu um relacionamento amoroso – imóvel, fria e silenciosa como os manequins que utiliza, como descreve a produção do filme. Em entrevista à Folha de São Paulo de 12/09/11, Taretto diz que "já estamos todos acostumados com esse tipo de solidão. É uma solidão que não é dramática, é uma solidão de todos os dias. Solidão urbana. A solidão que sentimos quando estamos rodeados de desconhecidos. A das cidades em que as pessoas se sentem mais seguras entre quatro paredes. A solidão do delivery, da mensagem de texto e do e-mail".

Por estar hoje tão "disfarçada" e, ao mesmo tempo, ser tão "habitual", talvez não estejamos sempre atentos à questão da solidão quando ela começa a assumir contornos mais dramáticos, para retomar a diferença comentada por Taretto. Recentemente, um grupo de supervisionandos optou por associar à competição com o sexo masculino a atitude da jovem paciente de um deles que, durante uma viagem e após ter "ficado" com um rapaz, optou por terminarem a noite separados, cada um em seu apartamento. Não lhes tinha ocorrido que, independente ou ao lado da competição, a jovem preferia agir assim, também, para defender sua solidão, a solidão de uma mulher dividida entre o próprio desejo e a vontade de atender ao desejo da família, que se opunha à sua relação com o rapaz.

A solidão que é diversa do simplesmente estar só ou desacompanhado por opção, e que machuca, dói, pode ser "vergastante" e humilhante, e está por exemplo refletida, em O Inventor da Solidão, o livro que Paul Auster escreveu logo após a morte de seu pai (edição original 1982), um homem que viveu a vida em perpétuo estado de solidão, conforme narra o escritor. Ao falar da solidão desse homem que se recolhera em si mesmo para fugir de conflitos externos, desenvolvendo uma couraça de distanciamento em relação aos mais próximos, Paul Auster estava implicitamente falando também de sua própria solidão com a perda sofrida, que projetava sua sombra de luto e melancolia, e ainda da solidão de uma criança, a ausência (a perda) do afeto parental por toda uma vida.

Philip Roth, em Patrimônio – uma história real (2012), narra uma situação bastante semelhante: após saber que o pai estava com um tumor cerebral talvez inoperável, e diante da tarefa de ter que lhe comunicar o seu estado, toma a autoestrada para a cidade onde o pai estava morando, mas erra a entrada e vai parar num caminho que ladeava, alguns quilômetros adiante, o cemitério onde sua mãe estava enterrada, o qual só tinha visitado duas vezes antes. Numa situação de total desamparo, com a perspectiva de perda do pai, para não ficar só ele procura abrigo e consolo na mãe – falecida 7 anos antes. Ou: numa situação de total desamparo, ele comete um lapso que o força a lembrar que, apesar de tudo, é só com o pai, o poder do pai, que ele conta agora.

Estamos próximos, aqui, da solidão de Édipo. Jogado no mundo em estado de desamparo, cegueira e incompreensão, em meio às instituições e baluartes do poder, o homem solitário permanece (como sugeriu Pasolini em seu Edipo Re, ambientado no passado e no presente) como um mito da contemporaneidade?

Origens infantis não explicadas, uma vida particular guardada a sete chaves, um mundo blindado é também o que vemos em Shame, um filme de 2011 do inglês Steve McQueen, no qual Brandon, o protagonista, passa o tempo mergulhado em uma compulsão sexual que o afasta de qualquer relacionamento mais duradouro: "relacionamentos não são uma coisa realista" diz ele, que também recusa envolver-se com escolhas mais prosaicas como o tipo de vinho ou de prato que vai consumir em um restaurante. Sexualmente compulsivo – masturba-se várias vezes por dia, dedica-se obsessivamente ao consumo de pornografia na internet, revistas e filmes pornôs, tem relações rápidas com prostitutas ou mulheres que encontra no metrô, e falha sexualmente com a mulher com quem poderia vir a ter um relacionamento afetivo – Brandon se isola em seu corpo, fica encapsulado em seu corpo, e essa é a sua solidão.

A busca do isolamento no corpo, no caso de Brandon e também como observado na clínica, costuma ser alimentada pela beleza física. A beleza e o enamoramento do próprio corpo remetem sem dúvida ao narcisismo, sendo interessante pensar na força da beleza como determinante da prisão no desejo de ser único. O ser único diferencia o sujeito da massa anônima, indiferenciada, e a beleza o destaca como uma obra de arte de Deus criador, uma Vênus ou um Apolo. Freud (1914/1969) deteve-se no narcisismo feminino, mas a beleza não convencional do ator Michael Fassbender, em Shame, e as cenas de nu frontal que evidenciam o tamanho de seu pênis, têm causado comoção nos lugares onde o filme é exibido. À exceção dos filmes pornôs, o pênis raramente tem sido objeto de maior atenção no cinema; ao contrário, tem sido cercado de um certo sentimento de coisa sagrada, de respeito, entrando possivelmente na aura de respeito ao poder do pai. O respeito ao pai opõe-se ao consumo do pênis do pai. Já que nenhum pai pode ter certeza concreta da paternidade – a não ser mais recentemente com os testes de DNA –, o respeito simbólico pela figura paterna, sustentado ou não pela força, é o que lhe resta desde os tempos primevos. O pai tem valor simbólico, o que acaba criando a possibilidade das infinitas linguagens e redes que foram entretecendo a civilização e o inconsciente individual. Mas o excesso de valor simbólico, de linguagens e de redes desvinculam o sujeito, rompem seus laços afetivos com o corpo da mulher/mãe. Existe nesse conflito uma fuga da solidão e, ao mesmo tempo, uma busca da solidão, não apenas na atualidade – o que para nós talvez seja mais evidente –, mas possivelmente desde sempre. Atualmente, quem sabe, nos é dado observar melhor esse conflito.

Um outro exemplo nos vem da clínica. Discutindo o caso apresentado por uma colega, de uma analisanda sua que viveu uma sequência impressionante de perdas em um intervalo de tempo relativamente curto, ficamos com a primeira impressão de que a cada perda ela ia se tornando cada vez mais só. Uma das maneiras com que a paciente lidava com essas perdas traumáticas era relatá-las compulsivamente para a analista, sentando-se à sua frente e vendo-a chorar juntamente com ela. Existia uma certa passividade tanto da paciente quanto da analista, diante do destino catastrófico. Decorrido algum tempo, algo começou a se mover nesse quadro aparentemente estável, e a paciente parecia ameaçar a analista de abandonar a análise através de inúmeras faltas, atrasos e queixas de que a análise "não estava adiantando". A analista lhe pergunta se ela gostaria de "dar um tempo", mas a paciente diz que não, que queria continuar assim mesmo, "de seu jeito". Conversando sobre isso, e sobre o movimento da paciente de querer ficar sozinha, a analista acaba revelando seu próprio movimento de não querer que a paciente fosse embora, pois ela própria iria viver tal ruptura como um trauma. Parece, enfim, que a paciente estava tendo um certo êxito de não viver o seu sentimento de solidão, na medida em que o transferia ativamente para a analista.

O sentimento de solidão é diferente do de estar só. O sentimento de solidão, conforme Melanie Klein,

não se refere à situação objetiva de ver-se privado de companhia externa, mas sim à sensação interna de solidão, à sensação de restar só sejam quais forem as circunstâncias externas, de sentir-se só inclusive quando se está rodeado de amigos ou se recebe afeto. É um estado de solidão interna... produzido pelo anseio onipresente de um inalcançável estado interno perfeito. (Klein, 1968, p. 154)

Quando ou na medida em que a paciente transfere para a analista, por identificação projetiva, tal estado de solidão interna, ela busca fugir, e ao mesmo tempo comunicar, a sua impossibilidade de ter afetos internamente. Ela vive com a analista um estado de simbiose, no qual o sentimento de solidão não tem um continente interno que lhe sirva como abrigo. De qualquer modo, sua busca desse continente através da análise é uma mudança fundamental, na medida em que tende a tirá-la de uma situação de passividade diante de seu destino catastrófico. Parece uma tentativa de saída da passividade para a atividade, assumindo internamente, aos poucos, seu sentimento de solidão.

As ideias de Klein sobre o sentimento de solidão são muito ricas e multifacetadas, mas para a compreensão da importância da solidão na modernidade é importante reter que a solidão como sentimento, conforme Klein, centra-se muito em torno do objeto primário materno que é descrito como escorregadio: bom e mau, cindido, persecutório, idealizado no começo da vida e aos poucos introjetado e integrado, o que seria o mais primitivo e determinante de todo o resto. Creio, no entanto, que o mais primitivo e determinante está na figura paterna. O pai é a figura trágica que está por detrás de todo desamparo, e portanto de todo sentimento de solidão. O pai não tem certeza de nada, se o filho é dele mesmo ou não. O pai assume o bando por puro amor, desamparo e desejo de subverter o desamparo. E integra o bando e protege a mulher e os filhos que não sabe se têm a ver com ele ou não. Assume pela vontade de poder, apenas. E apenas por isso – por esse primitivismo, anterior certamente ao primitivo seio materno, bom ou mau, seio que ele na sua fúria trágica e guerreira pode amputar ou destruir sem culpa –, apenas por isso o pai é o determinante primevo da história. Ele certamente delega ou permite à mãe a criação da língua materna, da capacidade de rêverie, do cuidado dos bebês, das crianças e tudo o mais que possibilita o desenvolvimento do bando, das tribos e das nações, e ao mesmo tempo manda os filhos para morrer nas guerras, arrancando-os de suas mães.

Talvez a solidão pós-moderna tenha muito a ver com a impossibilidade de perceber e lidar com toda essa violência essencial que nos assusta e nos arrasta, apesar de toda a sofisticação e domínio dos atuais meios de comunicação – os vários seios que nos alimentam e nos envenenam ao mesmo tempo. Essa mistura nem sempre favorece a integração, como gostava de buscar Klein em suas análises e teorias, pois tal integração não depende primitivamente da mãe/seio primitivo: dominando a mãe primitiva está o pai primitivo, e este não tem vontade de integrar, e sim vontade de poder. Isso é mais primitivo e mais determinante ainda. Por isso vivemos na incerteza, e é o lidar com a incerteza e com a solidão, intrínseca e inenarrável, que nos atormenta.

 

Referências

Freud, S. (1969). Sobre o narcisismo: uma introdução. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 89-119). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Auster, P. (s.d.). O inventor da solidão. São Paulo: Ed. Best Seller.         [ Links ]

Roth, P. (2012). Patrimônio: uma história real. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Klein, M. (1968). El sentimiento de soledad y otros ensaios. Buenos Aires: Hormé         [ Links ].

 

 

Endereço para correspondência
Deodato Curvo de Azambuja
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E-mail: deodato.ca@uol.com.br

Recebido: 16/04/2012
Aceito: 16/05/2012

 

 

* Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.