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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

EM PAUTA - CAOS

 

As palavras, as coisas, o caos: função do mito nas narrativas clínicas1

 

The words, the things, the chaos: the function of myth on clinical narratives

 

 

Dora Tognolli*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho focaliza os conceitos de caos, ordem e razão. Para lidar com o caos, é possível construir histórias que, como os mitos, podem oferecer saídas criativas. A Psicanálise faz uso dessas histórias, em forma de narrativas clínicas. O texto é ilustrado por vinhetas clínicas e relatos de mitos.

Palavras-chave: Caos, Ordem, Razão, Mito, Narrativas clínicas, Psicanálise.


ABSTRACT

The paper works through the concept of chaos, order and rationality. To deal with chaos, is possible to built histories that like the myths, offer a creative way. Psychoanalysis represents a field to trial these ways. The text shows examples that were originated from the mythical histories and clinical practice.

Keywords: Chaos, Order, Rationality, Clinical narratives, Psychoanalysis.


 

 

Há muito mais continuidade entre a
vida intra-uterina e a primeira infância
do que a impressionante cesura do ato
do nascimento nos teria feito acreditar
.

Freud (1926/1989d)

No princípio era o caos...

A ideia grega de Caos é o ponto de partida das reflexões aqui esboçadas: se Caos, dentro da mitologia grega, é tomado como um momento inaugural, primevo, associado aos mitos de origem, ultrapassado a partir da introdução de outras entidades e das categorias de tempo e espaço, na vida real tudo indica que esse momento inaugural não fica na noite dos tempos. Está sempre a espreitar, a dar sinais. O tema coloca algumas interrogações: como incorporamos o Caos nas nossas vidas? E na prática clínica?

A partir das questões que o conceito introduz, dentro da prática da psicanálise, o texto rastreia trabalhos de alguns autores que podem oferecer ferramentas para lidar com o Caos, deixá-lo em suspensão, não resolvido, presente e ausente.

 

A linguagem e a razão

A Psicanálise trabalha com o discurso, com a linguagem. Antes de receber o nome de Psicanálise, cabe mencionar que a prática freudiana havia sido chamada talking cure (cura pela fala). Resta-nos uma tarefa complexa: de que discurso se trata, já que o corpo a partir de Freud não é mero corpo biológico, embora se apoie na biologia; o discurso pode ou não ser verdadeiro, embora os pacientes não necessariamente mintam; a razão pode ser desrazão; as percepções são coloridas pelo mundo interno e seu caráter objetivo muitas vezes é muito fugaz. A partir de Freud, torna-se muito arriscado falar em saúde-doença; bom-mau; dentro-fora; eu-outro; sujeito-objeto. E este parágrafo que se pretendia explicativo, já se torna Caos, abismo. O que não se confunde com pessimismo nem niilismo: meramente falta, incompletude, acaso, incerteza.

Em 1885, quando Freud vai a Paris e conhece o trabalho de Charcot junto às histéricas da Salpêtrière, na companhia do velho mestre, dirige seu olhar para o desvio, para o que não tem lugar nem explicação. As histéricas de Charcot eram fundo e não figura, amontoadas em locais sinistros do hospital, desacreditadas, e Charcot mais parecia um bruxo do que um médico, dando lugar a uma forma de vida estranha, que reagia à hipnose e sugestão. Freud olhou esse desvio: mais uma inflexão em sua carreira médica e de pesquisador. Os psicanalistas conhecem de perto essa história, e quando algum paciente leigo quer saber quais suas crenças, se curam, se medicam, se diagnosticam, abre-se o caos: quase nos equiparamos a charlatões, pré-históricos, nem médicos, nem psicólogos. Os pacientes leigos que atendemos, distantes das teorias psicanalíticas, nos provocam com esse tipo de questão, de difícil e quase impossível resposta.

Em contraponto ao Caos, temos várias ordens. Duas delas interessam muito à Psicanálise: a linguagem e a razão. Michel Foucault e Sergio Paulo Rouanet, não psicanalistas, problematizam a temática, desnaturalizando-a a partir da incorporação do inconsciente freudiano, ancorado nas pulsões.

No prefácio do livro As Palavras e as Coisas (2002), Foucault refere-se à inquietação provocada pelo conto de Borges O Idioma analítico de John Wilkins. O conto é ilustrado por uma classificação de animais, "de uma certa enciclopédia chinesa", que provoca mal-estar e subverte toda lógica classificatória. Citamos um pequeno trecho:

Os animais dividem-se em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães soltos, h) incluídos nesta lista, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, l) etc., m) que acabam de partir o jarrão, n) que de longe parecem moscas. (Borges citado por Foucault, 2002, pp. IX-X)

Foucault destaca, em Borges, heterotopias, exemplificadas por esta enciclopédia chinesa, onde cada menção parece não ter nada a ver com a outra, e apenas a classificação a), b), c) etc., mantém uma união suspeita, uma localização anormal, que inquieta, provoca rupturas e põe o leitor numa espécie de queda livre. Segundo Foucault, se as utopias consolam, as heterotopias inquietam: deslocam e propõem uma ordem não regular, que beira o caos. Borges é mestre em provocar inquietações: o personagem Funes (Funes, o memorioso, 1989), por exemplo, traz à tona uma faceta da memória que também é desagregadora, já que impede a vida, pois é isolada de seu par antitético esquecer-lembrar. É interessante mencionar que um dos primeiros trabalhos que Freud publica versa exatamente sobre as afasias, um distúrbio da linguagem, que muitas vezes resulta em dificuldades de classificação, ou ordenação. Nesse momento inaugural da obra escrita de Freud, pré-psicanalítico, já é questionada a importância causal do corpo biológico, na etiologia dos sintomas observados.

A poética de Borges, tão bem captada por Foucault exatamente no trabalho em que ele vai tecer o lugar das ciências humanas e da palavra, demonstra a desordem intensa que existe rastreando a insistente ordem aparente.

Rouanet, ao tratar da razão no seu livro A razão cativa (1985), razão essa usualmente localizada no estrato superior do humano, em oposição às paixões, também desmistifica a ordem que a razão enganosamente engendra. Na introdução de seu livro, faz uso da literatura. Destaca que no conto de Edgard Allan Poe, A carta furtada (2001), apenas o astuto detetive Dupin é capaz de resolver o enigma: o ocultamento da carta devia-se à sua total visibilidade. Uma espécie de deslocamento opera a razão, a ponto daquilo que é muito iluminado perder a visibilidade. É desta razão que se trata: cativa, desrazão. E que pode desembocar na ideologia: um autoengano que enreda o sujeito no esquema da repetição sob a égide do princípio do prazer, desligado da realidade.

Rouanet também faz uso dos chistes, para desmistificar a razão, retomando a anedota dos judeus, analisada por Freud:

Dois judeus encontram-se num vagão de trem em uma estação na Galícia. "Onde vai?", perguntou um. "À Cracóvia", foi a resposta. "Como você é mentiroso!", não se conteve o outro. "Se você dissesse que ia à Cracóvia, você estaria querendo fazer-me acreditar que estava indo a Lemberg. Mas sei que, de fato, você vai à Cracóvia. Portanto, por que você está mentindo para mim?" (Freud, 1905/1989b, p. 113)

Tal classe de chiste, classificado por Freud como da ordem do absurdo, e que ilustra o prefácio de Rouanet, coloca o paradoxo de mentir exatamente dizendo a verdade. Bom exemplo para pensarmos as categorias da linguagem e da razão, e das diversas cenas que operam na construção dos discursos que ordenam o caos pulsional a que estamos submetidos. Lidamos com falsas consciências? Onde está a verdade? E a ordem? Os personagens Dupin, o judeu que desconfia da verdade mentirosa e Freud, quando passa a considerar duas cenas, turbinadas pelo caos pulsional, incluindo a figura do desejo inconsciente, incorpora o caos na aparente ordem, e nos orienta a olhar o detalhe, a anomalia, os interstícios: uma espécie de corda bamba.

 

A Arte como Modelo

Talvez os psicanalistas precisem recorrer a muitas musas: entidades apaixonadas, que mantêm a vitalidade e a criatividade. E precisem também rondar o caos, uma vez que certas ordens aparentes são empobrecedoras e enganosas. Vale mencionar, por exemplo, a ordem obsessiva, que repete, empobrece, achata, mata; ou a ordem da melancolia, que propõe a parada do tempo e do espaço; ou a ordem da compulsão, que se recusa a reconhecer a falta e a dor.

Há inúmeros exemplos de rupturas dentro da Arte, expressas por artistas que inauguraram momentos significativos que se desdobraram ao longo do tempo. O crítico Rodrigo Naves escreveu um livro sobre o pintor El Greco (1985), que contém elementos interessantes para pensarmos a dialética ordem-caos. O autor aproxima El Greco de Cervantes: ambos responsáveis por rupturas significativas, na pintura e na literatura. De Cervantes, menciona O licenciado Vidriera das Novelas exemplares (1970). Nessa novela, Cervantes trata de forma irônica o ideal neoplatônico da transparência: o personagem da novela, vítima de um sortilégio, transforma-se num homem de vidro, de matéria tênue, que enlouquece por temer o contato humano com seu corpo frágil. Sua estranha loucura consistia em imaginar que era todo de vidro, o que o fazia imaginar que se partiria diante de qualquer contato. As pessoas não poderiam se aproximar dele, já que era um homem de vidro e não de carne, mantendo apenas sua alma operante.

Rodrigo Naves vê na pintura de El Greco a ideia de um homem oposto ao da novela de Cervantes: feito de matéria pesada, irregular, incompleta. El Greco ficou esquecido por quase 300 anos, circunscrito à cidade de Toledo e tendo seus trabalhos rejeitados pela nobreza espanhola. Seu estilo rompe com o ideal de transparência e perfeição do antecessor Leonardo: depois de Leonardo, que atinge a perfeição, qual o rumo? Em Leonardo, o divino converge com o humano – extrema harmonia e ordem. A arte esconde a própria arte.

El Greco distancia-se da verossimilhança, da reprodução fiel da realidade: deixa à mostra suas pinceladas, rastros da existência de um pintor, um homem; não faz uso da perspectiva que ajuda a construção do belo renascentista. Como Cervantes, introduz ruídos, caos: as palavras e as imagens mostram-se fugidias, esquivas, ambíguas. Há dúvidas, não mais certezas.

Segundo Rodrigo Naves, a transparência e a profundidade implicam numa espécie de recalque dos elementos constituintes da pintura e do quadro, que ficam invisíveis. El Greco parece preparar o humano fragmentado, antecipando de certa forma Velázquez e o próprio impressionismo. Nas pinturas de El Greco, destacam-se a materialidade, a corporeidade: estamos distantes da Monalisa, harmônica e integrada na moldura que nos traz o mundo e a natureza. De certo modo, tem início a representação do homem fragmentado, imperfeito, instável, inquietante. Os volumes perspectivados no Renascimento passam a ser descontínuos, instáveis.

Os historiadores e críticos de arte, como Rodrigo Naves e Carlo Ginzburg, tendo como objeto de estudo as obras de arte, explicitam um método interessante. Carlo Ginzburg (2010), estudioso de Piero della Francesca, enfatiza a importância de olharmos as anomalias: o contrário da norma. É a partir das anomalias, segundo seu processo de trabalho, que é possível termos acesso ao novo, ao que rompe. Entradas possíveis para um aprofundamento que ele chama de microscópico. Também recomenda o ritmo lento, mas não chato: o exercício paciente e cuidadoso da leitura, aliado à microscopia da visão, que não guarda relação com o pequeno, mas sim com o profundo. Portanto, um método que prioriza o ritmo lento; o olhar para o desvio; a lente profunda do microscópio; e a escuta atenta às voltagens ou à tensão que reside em cada texto. Estratégia distante do rigor e da ordem, mas próxima à ordem que dá lugar ao caos.

 

Tudo começa/termina com uma história

Era uma vez um homem estrangeiro, foragido de um país distante e de regime muito fechado, que numa viagem ao Brasil encantou-se com o clima local e para cá fugiu. No novo país, adquiriu uma identidade, trabalho, amigos e saiu em busca de uma mulher com quem pudesse construir uma família. Depois de três tentativas – duas com mulheres de sua nação original –, casou-se com uma moça local. Bem mais jovem, alegre, habitante de uma república de estudantes, mas sem profissão e sem dinheiro. Nosso personagem se encantou: ele, com estudos avançados, doutorado, uma empresa próspera, só precisava de uma mulher; ela, jovem, saudável, bonita, fértil, arrumava suas camisas por cor, tamanho, tempo de vida. Tiveram um varão. O nascimento do menino, tão esperado por ele, já um pouco idoso, foi uma catástrofe: pai e mãe começaram a se degladiar, enquanto o bebê chorava sem parar, diante de tantas brigas. A vida em família virou um inferno, mas nosso personagem tudo suportava, para manter a unidade familiar e não se separar do filho, sua maior conquista e único herdeiro da família no país estranho. Alertado por vizinhos, começa a suspeitar de um lado muito violento da mãe de seu filho: ela negava comida a ele, reservando apenas para si as guloseimas da casa; não respeitava seus horários de sono; e recusava-se a propiciar ao menino atividades grupais, mantendo-o em casa, só incentivando a ida à escola formal. O filho vai crescendo nesse ambiente, e quando completa 6 anos, o pai resolve se incumbir mais dele. Reduz sua jornada de trabalho fora de casa, para acompanhar o garoto: nos estudos, nas refeições, nas brincadeiras, na hora de dormir. A guerra entre os adultos da casa se intensifica: onde um está, o outro não está; os cômodos passam a ser trancados e o menino ou fica com o pai, ou com a mãe. Pai e filho adoecem: o menino, de anemia e doenças de baixa imunidade; o pai, com alergias e intoxicações constantes, a ponto de suspeitar que pode ser envenenado e morto pela mulher. Até que se lembra que sua mãe morreu muito cedo: quando ele tinha 6 anos, como seu rebento, mas que nunca foi descuidado nem maltratado. Criado por ir mãs mais velhas, acabou cedo percebendo que estava sozinho no mundo, e de novo isso parecia se repetir...

Era uma vez uma menina muito triste, feia e tímida, que passou sua infância isolada, sem amigas, só fazendo deveres e respeitando ordens da família: boazinha e tristonha, mas com uma enorme capacidade de observação e crítica. Não brincava: só olhava as colegas brincarem; não brigava com seus irmãos: apenas dividiam a mesma casa; não era amada pelos pais: apenas cuidada. Na escola, as boas notas indicavam que seu destino seria estudar e muito. De família com poucas posses, estudou em universidade pública e lá galgou todos os degraus; só não virou professora, porque preferia a pesquisa nos laboratórios ao contato cansativo com outros humanos. Conheceu um homem parecido com ela: esforçado, honesto, disposto a casar e construir um lar, mas de poucas palavras, um tanto sisudo e não tão estudioso e inteligente. Firmaram um compromisso de casamento e tiveram filhos – só depois que nossa personagem retornou de uma viagem ao exterior, sozinha, para aperfeiçoar seus estudos. Tudo ia bem, até que ela funda uma empresa com um grupo de colegas e começa a ter problemas de relacionamento: aponta todos os erros, controla tudo, e apesar de sua eficiência e produtividade, a empresa começa a rejeitá-la. Ela fica triste, desmotivada e quer saber o que se passa. Em suas noites, dorme enrolada em lençóis, como num casulo, e não deixa um espaço sequer livre. O que teme? O que pode atacá-la? Vem de dentro ou de fora? Do que se protege? Arredia, não gosta de falar de coisas muito emocionais: para quê? Afinal, somos o que somos, e o que importa é nosso bom caráter e honestidade...

 

M21 Bororo: origem dos porcos-do-mato

"Todos os dias, os homens iam pescar e voltavam de mãos vazias. Chegavam à aldeia tristes, não só porque voltavam sem peixes, mas porque as mulheres faziam cara feia e os recebiam de modo grosseiro. Chegaram mesmo a desafiar os maridos. As mulheres anunciaram que iriam elas mesmas pescar. Mas, na verdade, elas apenas chamavam as ariranhas, que mergulhavam e pescavam para elas. As mulheres voltavam carregadas de peixes, e sempre que os homens tentavam uma desforra, não conseguiam nada.

Passado um certo tempo, os homens começaram a desconfiar. Mandaram um pássaro espionar as mulheres, e ele lhes contou tudo. No dia seguinte, os homens foram ao rio, chamaram as ariranhas e as estrangularam todas. Apenas uma escapou. Agora eram os homens que brigavam com as mulheres, que não pegavam mais nada. Por isso, elas resolveram se vingar. Ofereceram aos homens uma bebida feita de pequi, mas não haviam retirado os espinhos que envolvem o caroço. Os homens ficaram sufocados com os espinhos, que ficaram atravessados na garganta, e grunhiam 'u,u,u,u';, e se transformaram em porcos-do-mato, que grunhem desse modo."

 

Quem conta um conto, aumenta um ponto

Estamos aqui diante de três narrativas: as duas primeiras correspondem a relatos de pacientes fictícios ou reais, não importa, e a terceira, a um mito Bororo, eleito por Lévi-Strauss (2004); como o autor, quando recolhe alguns mitos de referência para com eles estabelecer pontes com outros mitos, concordamos com a ideia de que todo mito é por natureza uma tradução, já que exige o transporte de sentidos entre culturas e sujeitos da narração. Será que é possível configurar um texto de outra forma, sem alterar sua mensagem?

As falas que acontecem no território de uma análise são de difícil reprodução e causam estranhamento. É praticamente impossível relatar uma sessão de análise, se o vértice adotado for da fidedignidade e da cientificidade. O analista, por mais que se esforce, efetua uma transcrição ou uma tradução das falas escutadas. E paradoxalmente precisa falar ou escrever, muito provavelmente para sustentar os conteúdos dos quais se torna porta-voz.

O paciente também estranha o que fala, em especial o que fala de seus primórdios, como se desconhecesse a linguagem que sustenta essa fala. Num processo psicanalítico, ocorre uma investigação até certo ponto ficcional, sobre o período difuso que é nossa infância, na qual nos reconhecemos. Muitos personagens (pai, mãe, irmãos, avós, vizinhos, tios) e lugares (vizinhança, escola, casas, cidades) parecem agressivos e certas vezes perturbadores, retornando em vários momentos, e é a partir dessas recordações que emerge o sujeito, num tempo e espaço presentes.

As três narrativas que abrem o texto são provenientes de narrativas clínicas e relatos antropológicos. Uma diferença importante entre os dois tipos de produção é que no caso do mito relatado pela Antropologia existe um ponto-final, um desfecho; e no caso dos relatos recolhidos na clínica, algum interrogante entra na narrativa, alterando em parte sua estrutura e melodia. No primeiro relato, identificado com a clave de sol, a última frase, que aponta para um sujeito só no mundo, herói de uma história que se encontra em processo de construção, mostra uma abertura: ela é fruto de muitas sessões, embates e reflexões, e pode projetar, numa direção retroativa (do atual para o passado), uma outra compreensão sobre a história passada. No segundo relato, aqui identificado pela clave de fá, a frase final encerra algumas questões: por que sou assim? Afinal, só honestidade e bom caráter dão conta da vida? E o afeto, onde se encontra? O que me toca?

Em relação à terceira narrativa, identificada pela clave de dó, um dos mitos transcritos por Lévi-Strauss, estamos diante de uma verdade: como surgiram os porcos-do-mato e sua relação com os humanos. Um mito não se justifica, não se explica, mas se aceita: ou o indivíduo é parte da cultura onde o mito existe e o aceita, ou não é. No livro de Mircea Eliade (2002), o mito é definido como uma história sagrada, que relata um acontecimento ocorrido num tempo primordial – o tempo do "princípio". Consiste sempre na narrativa de uma criação: algo que foi produzido e começou a ser. Os mitos tratam de mudanças, de transformações, que tocam em perdas, que incluem o perder-se a si mesmo. Uma peculiaridade: os mitos não têm um autor; são transmitidos oralmente e nessa transmissão acontecem transformações. O uso do pensamento mítico exige que suas propriedades se mantenham ocultas, e se alguém se arrisca a desmontar um mito, acaba por destruí-lo, até porque não acredita nele.

Analogamente, podemos afirmar que o sujeito da fala, bem como o sujeito do mito, não se dá conta da estrutura que nele opera: ele é falado pela fala. Nós, homens modernos, somos tomados pela linguagem, assim como os homens primitivos são tomados pelos mitos, como nos mostra Lacan (1996)2.

Nos consultórios, comemoramos quando surge um mito: é um terreno narrativo, possível de ser trabalhado, se os dois sujeitos envolvidos, paciente e analista, assim pensarem. Sem histórias – ficcionais, exageradas, mentirosas, sombrias, o trabalho da Psicanálise torna-se árduo. Mesmo porque as histórias colocam em pauta uma outra cena, tema muito caro a Freud, explorado no livro A Interpretação dos Sonhos (1900/1989e). Cabe uma consideração: para os antropólogos, os mitos permitem o acesso ao sistema simbólico de outros povos, a eles estranhos, que, com sua criação, colocam ordem onde vigora o caos; tocam em temas complexos, como morte, sexualidade (diferença de gêneros, maturação biológica), diferenças entre os reinos humano e animal, separações – curiosamente, temas também que nos ocupam desde a infância. Nós, psicanalistas, pelo contrário, nutrimos, sim, expectativas de mudanças, mas que nunca tornarão familiar e resolvido o estranhamento que a vida propõe o tempo todo.

Nos grupos estudados pelos antropólogos, ganha espaço o ritual: não basta conhecer um mito; é preciso recitá-lo e ritualizá-lo. Ao "viver" os mitos, assiste-se a uma saída do tempo profano, cronológico, e acontece o ingresso num tempo qualitativamente diferente, "sagrado". Nossa sociedade guarda alguns rituais de iniciação ou de celebração de ocasiões marcantes, que têm um sentido simbólico fundamental, para os grupos e para seus integrantes.

Assim como nós, homens modernos, que atribuímos grande importância à História, o homem das sociedades arcaicas se percebe como resultado de diversos eventos míticos. A história narrada pelo mito constitui um conhecimento, em geral acompanhada de um poder mágico-religioso: conhecer a origem de um animal ou planta equivale a adquirir um poder mágico sobre esses objetos, ou seja, dominá-los. No estudo de diversas tribos, fica claro que apenas o que é historicizado passa a fazer parte do universo das relações daquele grupo. Uma planta medicinal, um objeto cultural, um adereço, sempre carrega atrás de si uma história. Podemos aqui falar da necessidade de conhecer, entender, que os homens têm dentro de si, como algo fundador das culturas e dos grupos.

 

Lembranças, memórias, histórias, mitos

No texto Lembranças encobridoras (1899/1989f), que muitos autores consideram uma das primeiras produções psicanalíticas (em oposição aos escritos pré-psicanalíticos, que datam desse mesmo período), Freud traz à tona a ideia de que determinadas lembranças, recolhidas de um tempo da memória – produto mais subjetivo que cronológico, independentemente de seu conteúdo – têm como papel central introduzir outra cena na narrativa. Mais do que lembranças de algo vivido de fato no passado, veiculam uma fantasia infantil – e é exatamente esse infantil que pode iluminar o atual, o presente.

Esse texto, anterior a 1900, coloca questões paradoxais: seria uma lembrança da infância usada como uma tela para encobrir um acontecimento presente? Ou um acontecimento anterior seria encoberto por uma lembrança mais atual? Essas questões trazem muitos problemas, inclusive o conceito de verdade, em contraposição ao conceito de realidade, e realidade psíquica. Mas deixam uma mensagem que até hoje se sustenta: que a matéria-prima da infância pode ser reutilizada, acionada pela situação atual e estabelecer pontes. As pontes de ligação – uma espécie de deslizar para as cenas infantis (ou se preferirmos, de transferir) – seriam movimentadas pelo dispositivo da transferência. Segundo Freud, os traços mnêmicos oferecem-se à fantasia, como sua expressão. Neste ponto, quase que nos autorizamos a entender lembranças encobridoras como fantasias inconscientes, conceito seminal para os psicanalistas, que diz respeito a um elemento constitutivo do mundo interno. Citamos um trecho de Freud, extraído dessa obra: "Ninguém contesta o fato de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços inerradicáveis nas profundezas de nossas mentes" (Freud, 1899/1989f, p. 287).

A partir do trabalho mencionado, somos levados a concluir que a forma original é desconhecida e inacessível, e, segundo as palavras de Freud, "a matéria-prima dos traços mnêmicos de que a lembrança foi forjada permanece desconhecida para nós em sua forma original" (Freud, 1899/1989f, p. 304).

Como os povos estudados por Lévi-Strauss e outros antropólogos, as narrativas recolhidas nas salas de análise trazem temas recorrentes – destaque especial para a morte e a sexualidade, temas esses sujeitos a recalque, que levam a esquecimentos, que por sua vez aparecem deslocados e transformados em narrativas aparentemente pouco relevantes. Na primeira narrativa, da clave de sol, o tema da morte da mãe (perda precoce de um ente querido), que se desenrola para a perda do país, da identidade, e da iminente perda do filho, pauta o relato do nosso sujeito. Na segunda narrativa, da clave de fá, talvez nos encontremos um pouco aquém: o sujeito da narrativa ainda não pode se apropriar de sua história, na medida em que não pode constituir um mundo interno. Talvez o caos pulsional, a instabilidade dos afetos tenha assustado precocemente a menina triste e frágil, que optou pelo mundo da ciência e da proatividade corporativa.

Num dos últimos textos escritos por Freud (1937/1989c) intitulado Construções em análise, o autor compara o trabalho analítico ao trabalho de um arqueólogo, que escava um terreno e nele encontra indícios, restos, objetos, que podem ser trazidos à tona, resgatados. Num primeiro momento, o psicanalista vai em busca desses restos, acreditando em sua existência.

Num certo momento, Freud passou a considerar que se esses restos não existirem ou forem muito precários, serão então construídos, e o paciente, a partir das tentativas de construção que o analista forjar, reagirá – ou seja, não será meramente passivo. E reagirá com novas recordações, novos restos, num movimento sem fim. Em outras palavras, será "tocado" por um novo discurso.

Diferentemente do relato mítico, que tende à repetição, a narrativa analítica promove aberturas, que evocam memórias, que em última instância conduziriam ao desejo inconsciente, favorecendo sua mobilidade e atualização. A abertura da fala à memória tem um efeito perturbador, na medida em que altera a estrutura do discurso: por exemplo, do Eu nasci assim(!), para Seria eu mesmo assim(?). É no confronto com o estranho (não familiar) que o analista introduz interrogantes que passam a fazer parte da cena.

Se o desejo é convocado na fala analítica, ele ganha nova responsabilidade, e o "Era uma vez", que marca o início de todo relato mítico ou lenda, já não mais se sustenta – frase sem sujeito, sem tempo, sem espaço: tempo mítico.

Se, por outro lado, o analista passa por cima da linguagem do paciente ou não se implica nela, ela tende a virar linguagem de repetição. Em outras palavras, o mal-estar diante da linguagem cristalizada e alienada do sujeito deve ganhar lugar na análise.

Talvez por isso o analista sinta a necessidade de escrever seus casos, transcrevê-los, até para distorcê-los, transformá-los – mais do que descrever seus pacientes, sustentá-los.

Radicalizando, a narrativa analítica, além do conteúdo, deveria incorporar o movimento, ou a música da fala: qual é o tom? Quais as vozes? E os silêncios/pausas? E as dissonâncias? E a polifonia?

Assim como estranhamos o movimento sonhar-despertar, que nos desloca abruptamente de uma cena à outra, quando passamos das imagens à palavra, a fala analítica deve favorecer o dispositivo que descola o sujeito do registro passivo para o ativo. Mesmo assim, sabemos que sempre escapa algo ao relato, que quando é apresentado novamente, não é mais o mesmo: está em movimento, em construção.

Na epígrafe do presente trabalho, Freud trata da cesura (1926/1989d), cujos sentidos podemos ampliar, a partir dos próprios textos psicanalíticos: corte, desamparo, ferida narcísica, cicatriz, fissura, trauma, castração. Essas questões foram problematizadas por diversos autores que fazem parte de nosso repertório. Inscrevem-se nessa dimensão as relações objetais, as posições depressiva – esquizo-paranoide, a visão binocular, a identificação projetiva.

Como a pulsão, conceito limite entre o psíquico e o somático, também somos seres de travessia, cercados de enigmas e dúvidas, em busca de uma forma própria. No texto Análise terminável e interminável (1937/1989a), Freud considera que o homem pode evitar o perigo externo pela fuga ou pela transformação da realidade e até pode ser bem-sucedido nessa empreitada; mas é impossível evadir-se do perigo interno. A Psicanálise nos aproxima do desejo em sua face mais selvagem, acompanhado das funções psicológicas da atenção, memória, temporalidade, que se restauram e se desfazem ininterruptamente. Não se propõe a fornecer um conhecimento meramente racional e explicativo, mas representa um convite constante a visitar o Caos, onde as certezas se esmaecem.

A transferência – repetição sui generis, espaço virtual carregado e vazio, que nos joga próximo da morte e quase rompe as fronteiras do Ego, surge como uma possibilidade de buscar história, desfazendo-se ao mesmo tempo da história: até que ponto não há algo de mitológico nessa trajetória?

Para colocar um ponto-final, recorro a Italo Calvino:

Não devemos ser apressados com os mitos; é melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca sair de sua linguagem imagística. (Calvino, 2006, p. 16)


 

Referências

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Endereço para correspondência
Dora Tognolli
Rua João Moura, 647, cj. 51
05412-911 – São Paulo – SP
tel.: 11 3064-5165
E-mail: dora.tg@terra.com.br

Recebido: 16/04/2012
Aceito: 27/04/2012

 

 

* Psicanalista da SBPSP.
1 Este texto é uma versão ampliada do artigo de minha autoria Mitos e Narrativas Clínicas, publicado na Revista Ciência & Cultura: Ano 64, nº 1, Out/Nov/Dez. 2011 e Jan./Fev./Mar. 2012 Núcleo Temático: Psicanálise e Linguagem Mítica, sob a coordenação da psicanalista Jassanan Dias Pastore .
2 Podemos conjecturar que há uma forma (a instância da linguagem, e também a instância do inconsciente) que agencia nosso comportamento, inclusive linguístico, que não decorre meramente do consciente. A partir de Lacan, é possível uma leitura dos trabalhos de Freud sobre sonhos e chistes, em que a figurabilidade (imagem) e as palavras atropelam o plano consciente e visível das ações humanas.