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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

EM PAUTA - CAOS

 

Caos e psicanálise em cinco atos

 

Chaos and psychoanalysis in five acts

 

 

Gustavo Gil Alarcão*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP
Sociedade Brasileira de Psicopatologia Fenômeno-Estrutural (SBPFE)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda as significações do caos mediadas pela clínica analítica contemporânea a partir de um ponto de vista que privilegia a noção de um movimento contínuo de divisão desorganizado. O texto caminha em duas vertentes: microscopicamente, pensando a ação analítica como possível organizadora do caos em uma sessão clínica, e macroscopicamente, refletindo sobre a psicanálise como campo de pensamento organizador do caos.

Palavras-chave: Caos, Psicanálise, Movimento, Contemporaneidade.


ABSTRACT

The article discusses the meanings of chaos mediated by the contemporary analytical clinic from a perspective that privileges the notion of a continuous movement of disorganized division. The text moves on two fronts: microscopically, thinking about the analytical action as a possible manager of the chaos in an analytical session, and macroscopically, thinking about psychoanalysis as a field of knowledge that could also help in organizing the chaos.

Keywords: Chaos, Psychoanalysis, Movement, Contemporary.


 

 

O que é pensar a respeito de um assunto senão indicar os caminhos pelos quais construímos nossas ideias? O que, como, onde, por que e para que são nossas balizas nessa tarefa. A proposta de refletir sobre o caos e a clínica psicanalítica é desafiadora. Tema milenar, tema atualíssimo. A palavra caos admite, segundo nosso dicionário, três grupos de significados (Houaiss, 2007): dois deles são derivados da tradição grega: é um dos deuses originais cujo epíteto1 é "potência de criar por cissiparidade" (Hesíodo/Torrano, 2011); é um estado geral de desordem e indiferenciação de elementos que antecede à intervenção do demiurgo2 que instaurará a ordem (Platão citado por Bergson, 2000/2005). O outro grupo de significado está na física e diz respeito à teoria do caos, que pretende compreender sistemas complexos e dinâmicos através de leis deterministas condicionadas pela situação inicial da experiência, ao mesmo tempo em que postula que mudanças nessa situação inicial provocarão estados posteriores muito diferentes e imprevisíveis.

Uma mescla hesiódico-platônica constrói o significado e uso cotidiano da palavra caos. Dizemos que a vida está um caos, que as coisas estão caóticas e logo pensamos em bagunça, desordem, movimento com características de excesso e desalinho. Apreensão esta que nos incita uma sensação angustiante, que pressiona, que põe em movimento, e que ao mesmo tempo demanda organização, coordenação. Nesta demanda vemos operar o epíteto de Caos, uma vez que a sensação angustiante associada ao termo sugere fortemente que sem organização o movimento caótico continuará indefinidamente levando a um provável esfacelamento.

O termo partilha de significados associados a cada um desses pilares conceituais originários e também, como proposta de reflexão deste texto, de uma essência comum de gamas de significado, que é uma ideia de movimento sem limite, seja por divisões sucessivas (Hesíodo), desorganização (Platão) ou probabilidade de previsões (Teoria do Caos). Este texto pretende penetrar nessa trama de significados e refletir acerca de aspectos conceituais, clínicos e metodológicos da proposta caos-psicanálise.

 

Primeiro ato, A potência de Caos e a Pulsão de Morte

"Sim, bem primeiro nasceu Caos..."
(Hesíodo, séc. VIII a.C./2011, p. 1)

Caos, um dos quatro deuses fundantes em Teogonia, é força que gera por divisão, por cissiparidade. É o movimento inicial de criação, mas uma criação do "escuro", do não-ser. Uma geração que acontece pela separação, "o bico que se abre" (Torrano, 2011, p. 42). O belo trabalho de Torrano sobre a obra de Hesíodo oferece-nos elementos para pensarmos a respeito desse tema. Caos gera Érebos (do reino de tudo que é morto) e Noite. A união de Érebos e Noite gera Dia e Éter (únicos luminosos e positivos). Após essa união, Noite gera por cissiparidade toda uma linha de descendentes: forças de debilitação, penúria, dor, esquecimento, enfraquecimento, aniquilação, desordem, tormento, engano, depreciação e morte (Torrano, 2011, p. 43). A linhagem de Caos é aquela na qual o surgimento é dado por divisão ao que se contrapõe a linhagem de Eros, na qual o surgimento é dado por união.

Poderíamos pensar que o processo de geração de Caos, por prescindir da união, como ocorre com Eros, é em si angustiante: pedágio inerente a esta forma de gerar? Angustiante por conduzir necessariamente ao não-ser e consistir em um processo que é necessariamente redutor (divisões sucessivas de um levariam a partes cada vez menores)? Sendo um movimento dependente e restrito ao território do ser que origina as divisões, quais seriam os limites para esse processo? Nesse sentido, a potência criadora do Caos carregaria junto de si o preço dessa mesma autonomia geradora: ausência de freios. Esta forma de criação carrearia inseparavelmente a herança do originário como imposição maciça em sua forma de ser, afinal, originar-se sem mistura implica necessariamente em herdar e transmitir tal potência ao descendente.

Na poesia de Hesíodo o não-ser precede o ser. Abre-se uma fenda da qual se tem o escuro, o tenebroso. Caos é um dos deuses originários. Dele originam-se outros deuses, e sua definição-função (epíteto) de originar por divisão produzindo descendentes "tenebrosos" é o que nos interessa nesse trabalho. A pulsão de morte é descendente direta de Caos! A ideia de uma potência intrínseca que conduz a caminhos tenebrosos é, pelo menos historicamente, tributária direta dessa noção. O alargamento das ideias freudianas é mostra disso. Freud, a partir da imposição do real sobre seu trabalho, modificou a teoria das pulsões, abrindo caminho para o tenebroso, ou para o negativo, segundo ideias de Green (2010)3.

Mudança esta que não foi pequena, dado que levou a uma nova conformação do aparelho psíquico e alcances clínicos consideráveis, sobretudo, se nos damos conta de nossa clínica atual. Assim como Hesíodo, Freud propõe que "o instinto de morte seja constitutivo da vida e esteja fundido aos instintos de vida em todas as partículas de substâncias vivas" (Freud, 1923/2006, p. 58). O instinto de morte exerceria suas funções destrutivas quando estivesse separado, "desfusionado" dos instintos de vida. Em Hesíodo, toda potência de Caos é considerada como intrínseca a ele e seus descendentes positivos são somente aqueles gerados por união. Se até 1920 Freud considerava a vida como resultado de si mesma, e as pulsões sexuais e de autopreservação encontravam-se em conflito com a realidade, após essa data é entre vida e morte que se dará o conflito.

Por onde andava Caos na obra freudiana? Provavelmente fundido e fusionado com Eros, obscurecendo sua própria existência, forçando e pedindo passagem, quiçá mesclado com algum otimismo de Freud em seus primeiros anos de trabalho e pesquisa científica. Otimismo nada ingênuo. Em uma carta a Lou Andreas-Salomé de 1914, Freud escreve comentando sobre os horrores da guerra: "E o mais triste de tudo é que se trata exatamente do modo pelo qual deveríamos ter esperado que as pessoas se comportassem, a partir do nosso conhecimento da psicanálise" (Freud, 1966/1975, p. 35). Não parece provável que Freud não enxergasse o caos antes de organizá-lo teórica e conceitualmente através do conceito de pulsão de morte, o que é justamente explicitado por esse trecho da correspondência. Com seu aprofundamento metapsicológico e ampliação da clínica para situações mais complexas, a abertura necessária para que o tenebroso ganhasse status de constituinte psíquico está criada. Os sentimentos de Freud acerca do mundo e daquilo que já suspeitara acerca da natureza humana ganham espaço para conceituação e escrita científica. Caos saltou aos olhos e foi sentido, enxergado, apreendido e postulado.

Uma vez ocupando seu lugar, promove um remodelamento teórico ou acompanha este remodelamento no qual o inconsciente tópico (do primeiro modelo do psiquismo) passa a ser dinâmico e entremeado em todas as instâncias da vida psíquica. O Não-ser (Caos) inicial localizado espacialmente está agora colado a todas as instâncias do ser: id, eu e supereu possuem em si o tenebroso como elemento-qualidade de composição.

Hesíodo foi um poeta que cantou a origem do Universo. Sua clarividência em anunciar Caos de chofre, na primeira frase do poema, choca por sua atualidade e perspicácia. Freud, cientista obstinado, pesquisou a constituição da natureza humana e sua obra abriu lugar para Caos, que lá estava pedindo para nascer. Freud fez nascer Caos na clínica psicanalítica. Caos "fez nascer" a clínica psicanalítica descolando-a definitivamente de qualquer outro campo do conhecimento e prática. O movimento que abre lugar para Caos e seus descendentes em psicanálise está longe de ser destrutivo: narcisismo, sadismo, mecanismos de defesa primitivos, agressividade, perturbações de caráter, reações terapêuticas negativas são filhos desse processo.

 

Segundo ato, A desordem do Caos e o desinvestimento

Pedimos um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. (Deleuze & Guattari, 1991/2004, p. 259)

Esta potência criadora parece estar indissociavelmente ligada a um movimento de constante divisão e separação. É nesse sentido que dizemos de movimentos caóticos, sem a mínima organização. Esta desordem gera um movimento excessivo, que por ser desarticulado não consegue se orientar. A tendência natural desse movimento é a dispersão, uma vez que nada possui uma tensão de ligação suficiente. Na física, por exemplo, observamos que os gases contidos em um recipiente estão em movimentação caótica. Uma vez retirado o limite desse recipiente dispersam-se e diluem-se na atmosfera.

Experimentamos na contemporaneidade justamente esse movimento excessivo estagnado. Não acredito que seja mero acaso o "sucesso" dos diagnósticos psiquiátricos, dos quais destacaria o transtorno bipolar, hiperatividade e as várias dependências. Situações de um excesso desnutrido. A velocidade incrível das comunicações e com ela uma falsa sensação de aquisição de experiência e de conhecimento. O excesso presentificado que desarticula a temporalidade, que faz do passado e do futuro não tempos distantes, mas tempos inexistentes: it’s now or never. Um excesso que não sacia, donde o movimento é a única escapatória4.

Por que se desorganiza? Imaginar que um passo não se segue a outro, que uma descontinuidade permanentemente ameaçadora nos acompanha, é dizer acerca da desorganização premente e iminente. Aqui encontramos os maiores riscos, tanto aqueles que dizem respeito à desorganização quanto aqueles que se apresentam como organizadores e que via de regra elegem a força e a moral como bastiões da vida mental. "Faltam limites", dizem hoje em dia, e vemos estupefatos o incremento das terapias comportamentais e das crenças fundamentalistas, que erram por não perceberem justamente o vazio dos comportamentos. Vazio que promove encontros vazios, destituídos de Eros, nos quais as propostas terapêuticas baseiam-se em programas educacionais e pragmáticos magros e míopes. Tais propostas estão entorpecidas pelo excesso de movimento não conseguindo penetrar na essência caótica dessas condições. O caos vence pela sedução.

Voltemos a Green, quando afirma que o objetivo da pulsão de morte é realizar uma função "desobjetalizante" através de um desligamento que se manifesta pelo desinvestimento. Este mesmo desinvestimento que aparece com o caos e confina o indivíduo ao seu próprio inferno caótico, angustiado e improdutivo. Para onde caminham estes pensamentos e sentimentos que escapam? O que impulsiona este escape? Recorro a uma paciente que me repete persistentemente: "estou morta, aposentada da vida, é uma sensação estranha, ao mesmo tempo uma grande vontade de falar e um medo terrível de me perder, não saio do lugar, meus pensamentos estão a um milhão por hora"5.

 

Terceiro ato, A ordem no Caos e o plano psicanalítico

A arte, a ciência e a filosofia exigem mais: traçam planos sobre o caos. Essas três disciplinas não são como as religiões, que invocam dinastias de deuses, ou a epifania de um deus único, para pintar sobre o guarda-sol um firmamento. (Deleuze & Guattari, 1991/2004, p. 260)

A psicanálise também traça um plano sobre o caos, criando um campo próprio de pensamento-ação que ilumina a partir de seus preceitos um caminho de compreensão-ação sobre o humano. Deleuze e Guattari demonstrarão ao longo de seu texto como estes três campos que escolhem para contrapor à opinião lançam mão de mergulhos no caos, para dele emergirem com particularidades e apreensões específicas. O mergulho psicanalítico parte de alguns pressupostos e também necessita de uma passagem através do caos (tomado aqui no sentido platônico). É dessa penetração investida de coragem e paciência que advém o trabalho. A revolução clínica psicanalítica, rompendo com a tradição médico-científica, mergulhando na relação com um outro em sofrimento, foi capaz de produzir conhecimentos específicos, obtidos com e neste mergulho. Esta ordenação foi iniciada por Freud e continua desenvolvendo-se.

Estes campos somente produzem conhecimentos verdadeiros se antes de mais nada mergulharem no caos. É antes se despojando de pretensas opiniões que se inicia um movimento secante que retirará do caos seus elementos particulares. Cada campo tem um dreno específico pelo qual retira das profundezas aquilo que o nutre. Este processo permite alimentar um campo próprio que nasce com vigor e sustenta-se na medida em que aquilo que drena e produz é útil no caminhar do conhecimento.

Se Caos nos convida para um território escuro e tenebroso, nossos esforços de organização não podem nos colocar no oposto, a extrema clareza e certeza. Arte, filosofia e ciência são planos, segundo os filósofos citados, irredutíveis quanto aos seus elementos: plano de imanência da filosofia, plano de composição da arte e plano de referência da ciência (Deleuze & Guattari, 1991/2004, p. 269). Estes planos geram funções correlatas aos próprios campos. Organizam-se para organizar um pouco o caos, sem eliminá-lo porque é dele que se nutrem.

A psicanálise analogamente nutre-se e constitui-se, reivindicando e obtendo um lugar, um plano de mergulho e organização do caos. Mergulho único, realizado pelas condições metodológicas criadas pela revolução clínica que convidou o sujeito a falar o que lhe viesse à cabeça.

O encontro desses planos segundo o texto filosófico de Deleuze e Guattari dar-se-ia no cérebro, não este cérebro objeto da ciência, conjunto de neurônios e circuitos objetivados, mas o cérebro espírito em si, aquele mesmo mergulhado no caos. Esse mesmo cérebro indissociável do sujeito é interesse da psicanálise. Sobre este mesmo cérebro incidem as observações conceituais que promoveram um solavanco na clínica, antes restrita à descrição, à biologia e à anormalidade.

 

Quarto ato, O Encontro com A.

A. está muito angustiada. Sente-se completamente inadequada e despreparada para enfrentar a vida: "não tenho casa, não tenho trabalho, não tenho um relacionamento". Ao mesmo tempo em que: "tenho vários amigos, vários planos, saio com vários homens". Sua angústia é intensificada por sua pressa em resolver e solucionar sua vida: "não tenho mais tempo, preciso sair dessa situação, não sei se alguém pode me ajudar".

Nosso encontro é muito desconfortável, a fala rápida, intensa, telegráfica é entremeada por um choro real, compulsivo, convulsivo. Em alguns minutos ela tem a sensação de já ter me dito tudo o que queria, ao mesmo tempo em que tem a sensação de não ter dito nada. A profusão de ideias e de sua fala entorpece minha capacidade de compreender. Está angustiada, é tudo. Sua vida está um caos, penso. Ela vive um caos, penso e sinto. "Minha vida é um caos", ela diz. Nosso encontro não pode virar um caos, raciocino.

Voltemos ao texto de Deleuze e Guattari. Eles dizem que os campos do conhecimento que se atrevem a desafiar a opinião comum devem "rasgar o firmamento e mergulhar no caos" (Deleuze & Guattari, 1991/2004, p. 260). Justamente assim sinto-me diante dela. É necessário mergulhar no caos, em seu caos, para que ao submergir encontremos fôlego na superfície. Nosso mergulho não acontece em condições de igualdade, mas antes de equidade (a igualdade entre diferentes). Aliás, ele não pode acontecer. Um mergulho caótico poderia afogar ambos. Se por um lado é necessário que desconfiemos de nossas impressões e mantenhamos uma atitude de abertura para o novo que surge, por outro é necessário que estejamos equipados com nosso material de mergulho, aquele que suprirá o oxigênio quando imersos estivermos.

O caos de A. a conduz rumo à fragmentação e à dispersão. A contínua cissiparidade observada em seus pensamentos transpõe-se para sua vida como a sensação de imobilidade e estagnação. Ela também está se separando da vida, com poucos amigos, poucos sonhos e poucas experiências vivificantes. Ela pede ajuda desesperada para que esta "ação de Caos" seja interrompida, sente-se levada para uma noite tenebrosa.

Paralelamente há uma grande dificuldade em poder ter ajuda. Dificuldade que pode ser demonstrada pelo limite que impõe ou ao qual está submetida em comparecer às sessões, por uma perene sensação de pressa que a impede de falar. Cada fala é sucedida de um olhar curioso que pede e não pede ajuda, que está e não está ali comigo na sessão ("eu não escutei nada do que falou", é algo dito com frequência). "Preciso trazer uma agenda para anotar essas coisas, esqueço tudo quando saio daqui."

Esta confusão entre o ser e não-ser, estar e não-estar, parece-me perfeita tradução do vazio contemporâneo e do império de Caos e de seus descendentes, aqueles mesmos que sem união geraram por cissiparidade (e portanto por semelhança de si mesmos) as forças de debilitação, penúria, dor, desordem, aniquilação, tormento e morte. Dividindo-se sem se unir, A. encurrala-se em partes cada vez menores de si mesma. O narcisismo prepotente de sua dificuldade em pedir ajuda e em aceitar os termos que proponho: vir conversar em uma frequência maior daquela pensada por ela é tomado como algo sem propósito. A solução pedida é urgente, mágica e definitiva. Ela pede uma opinião, penso lhe oferecer um mergulho em si mesma.

Nossa sorte é que caminhamos por um ano mantendo em suspensão a magia, a solução e a definição. Aproximamo-nos lentamente: ela não falta mais às sessões. Arisca, pergunta sempre se estamos no caminho certo, se devemos continuar este "tratamento". Escuto-a e penso que a atenção flutuante flutua sem se esvaecer.

 

Quinto ato, A teoria do Caos

A teoria do Caos entra em nossa discussão na medida em que seus postulados essenciais estão de acordo com o que a clínica psicanalítica tem de mais revolucionário: o lugar de protagonismo do sujeito. Na física pretende-se o protagonismo da experiência em particular, ela e somente ela através de suas variáveis e condições intrínsecas poderá oferecer caminhos para a previsão do que se produzirá.

Embora tenhamos conceitos e balizas teóricas, conceituais e metodológicas, sabemos das necessidades de ajustes em cada encontro e com cada paciente. Qual o lugar ocupado pelo determinismo psíquico se temos que modificar e ajustar nosso dispositivo para cada paciente que chega? Ele está em cada paciente que chega! Este conceito não pode ser tomado apressadamente e associado aos demais conceitos psicanalíticos pretendendo oferecer soluções ou previsões. É antes de tudo uma baliza de infraestrutura na qual nosso pensamento pode se ancorar para caminhar na investigação daquele sujeito.

É possível prever o desenlace de determinada análise? É possível prever o desenlace de determinada experiência física? Ou, melhor e mais diretamente, é possível prever o futuro? Se e somente se tivéssemos em mãos todas as variáveis possíveis daquela experiência em particular, o que é impossível. O imponderável se põe com irrevogável peso para nós todos e assim limita nossa onipotente arrogância diante daquilo que conhecemos, nada mais, nada além; sem salvação.

O maior benefício dessas ideias é confirmar para nós que a singularidade de cada experiência impõe-se a qualquer generalidade. Mudando as condições iniciais dos experimentos, mudam-se as consequências, exatamente como pensamos no momento em que sai uma pessoa e entra outra em nosso consultório.

Tendo que lidar com este limite, somos obrigados a criar dispositivos que auxiliem no mergulho que precisamos fazer ao lado de cada pessoa e assim estamos atentos às condições de nossa experiência: a sessão daquela pessoa. "Sem memória e sem desejo" (Bion, 1970/2007, p. 53), atentos às comunicações advindas do encontro, de cada encontro.

 

Conclusão

Hesíodo cantou uma potência original cujo vigor leva às profundezas tenebrosas pelo excesso de movimento que cria. A pulsão de morte está na linhagem de Caos e constitui o psiquismo desde que lhe foi concedido tal lugar. A desordem caótica angustia e incita uma necessidade de ordem. Em momentos de tensão, a moral é o principal agente ordenador e esta tem sido convocada persistentemente para cuidar do caos psíquico na atualidade. A psicanálise como campo que penetra no caos e dele se nutre para formular um campo destacado é, como outros campos do conhecimento, plano possível de coordenação do caos. A., paciente "caótica", segue em análise, beneficiando-se e beneficiando-me de uma convivência psicanalítica que mergulha no caos, tangencia a escuridão e pouco a pouco respira com mais fôlego. Ideias, sentimentos, pensamentos começam a seguir seu próprio caminho. Sua experiência é única e singular, não pode ser comparada, medida ou prevista.

 

Referências

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Bion, W. R. (2007). Atenção e interpretação. (P. C. Sandler, trad., 2ª ed.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970. Título original: Attention and interpretation: a scientific approach to insight in psycho-analysis and groups).         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (2004). O que é a filosofia? (B. Prado Jr. e A. Muñoz, trads.). Rio de Janeiro: Ed. 34. (Trabalho original publicado em 1991).         [ Links ]

Freud, S. (1975). Freud-Lou Andreas-Salomé: correspondência completa. (E. Pfeiffer, org.; D. Flacksman, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1966).         [ Links ]

Freud, S. (2006). O Ego e o Id e outros trabalhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Strachey, trad. Vol. XIX, pp. 53-60). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923).         [ Links ]

Green, A. (2010). O trabalho do negativo (F. Murad, trad.). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1993).         [ Links ]

Hesíodo (2011). Teogonia: a origem dos Deuses: Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras. (Trabalho original publicado no séc. VIII a.C.         [ Links ]).

Houaiss, A. (2007). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Gustavo Gil Alarcão
Rua Cristiano Viana, 441, cj. 66
05411-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3062-1887
E-mail: gustavogilalarcao@yahoo.com.br

Recebido: 16/04/2012
Aceito: 20/04/2012

 

 

* Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psiquiatra do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria HC-FMUSP. Membro da Sociedade Brasileira de Psicopatologia Fenômeno-Estrutural (SBPFE).
1 Epíteto é a palavra ou expressão que se liga a um nome para qualificá-lo. Todos os deuses presentes na Teogonia de Hesíodo são acompanhados de seus epítetos.
2 Demiurgo é na filosofia de Platão o artesão divino ou o princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente.
3 O trabalho do negativo é obra de André Green utilizada neste texto sinteticamente. Algumas de suas ideias, sobretudo no recorte que faz do negativo na obra de Freud, correspondem à ideia de correlacionar Caos e Psicanálise e por isso foram utilizadas.
4 O filme Shame do diretor Steve McQueen ilustra muito bem a impossibilidade de saciar-se aliada a uma busca frenética (do quê?) vivida pelo protagonista. Angustiado e encurralado por uma pressão que se impõe constantemente sobre ele, o personagem vive só: relações pontuais e virtuais parecem servir como forma de escoamento dessa pressão, sem, no entanto, trazer-lhe algum alento.
5 Trata-se de uma análise bastante complicada em uma paciente que se diz devastada pela vida. Traumas, perdas, frustrações subsequentes associadas às dificuldades próprias por muito tempo negadas a levaram ao completo caos. Sem esperança, vivia à custa de remédios e internações psiquiátricas. É inteligente, criativa e com grandes recursos psíquicos, que, no entanto, não podiam ser desenvolvidos, sem que antes lhe fosse oferecido um espaço de escuta.