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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

ARTIGOS

 

Duras, o deslumbramento da língua1 2

 

Duras, the ravishing of the words

 

Laurent Mauvignier*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto foi publicado no suplemento literário Livres do jornal francês Le Monde em 21 de Outubro de 2011 como uma homenagem aos quinze anos da morte da escritora Marguerite Duras. Naquela época, a editora Gallimard lançava as obras completas da autora na coleção francesa Bibliothèque de la Pléiade.

Palavras-chave: Marguerite Duras, Duras, Literatura francesa.


ABSTRACT

This text was published in the literary supplement Livres of the french newspaper Le Monde on Oct 21 2011 as a tribute to fifteen years of death of the writer Marguerite Duras. At that time, the publisher Gallimard was releasing the complete works of the writer in the french collection Bibliothèque de la Pléiade.

Keywords: Marguerite Duras, Duras, French literature.


 

 

Com sua entrada na Pléiade3, a obra de Marguerite Duras consegue se tornar a própria literatura. Duras sempre atribuiu sua marca às palavras que utilizava. Basta ouvi-la enunciar uma canção de Hervé Vilard para que seu tom particular a transforme – milagre da transfiguração – em um texto durassiano. Há um som, um tom, um encantamento da linguagem. Duras roubou as palavras do dicionário, ela as fez suas a ponto de, jogadas no papel, darem a impressão de serem durassianas. A autora de O Amante quis se apropriar do mundo e das coisas e, dentre estes, em primeiro lugar, das palavras. Ela tomou-as como objetos comuns e fez delas ready-mades: ela fazia com as palavras o que Marcel Duchamp fez com um mictório. Basta imaginar frases simples, banais, sem estilo literário por assim dizer, para que estas se agreguem imediatamente ao universo durassiano. O que é chocante é que, na grande tribo das palavras, Marguerite Duras escolheu os deserdados, os necessitados, os idiotas e tentou elevá-los à poesia pura. Ela quis transformar o comum da língua em uma literatura – a sua – à qual todas as palavras podem se agregar.

Podemos talvez censurá-la, nossa Duras monumental, por muitas coisas. Sua mitologia transbordante – o álcool, Deus, Mitterrand, suas posturas, seu egocentrismo. E se a estátua do escritor faz por vezes eclipsá-lo, não é a ponto de nos fazer esquecer que são raros aqueles que deixaram atrás de si um adjetivo, o durassiano, que faz com que muitos escritores corram o risco de tentar imita-lá em vão.

Pois são muitos os autores que se veem privados da música das palavras ou que têm sua visão ofuscada por essa voz tão potente e devastadora. Eles esperavam ter encontrado uma linguagem que lhes faltava, acreditavam no "fazer moderno", profundo, sério, com frases curtas, efeitos "à la Duras". Ademais, quando se diz, vendo o número de seus seguidores, que a mãe de O Deslumbramento de Lol V. Stein causou inúmeros danos entre os escritores, penso que é o contrário, é ela quem é a vítima da mediocridade, que sempre sabe recolher as migalhas daquilo que não lhe pertence. A grandeza é proporcional aos pequenos feitos que ela suscita. Não é reconhecendo a autoria de uma obra que prestamos homenagem a um escritor.

A homenagem consistiria, antes, em temer o efeito do julgamento dos autores sobre nossos próprios livros, efeito do qual nós mesmos nos alimentamos. Temer fazer mal a quem nos fez tanto bem é o mínimo que devemos a eles. Não, Duras não fez mal à literatura francesa. Entretanto, a mediocridade, esta persegue a autora de Moderato Cantabile como também o talento em geral, sobretudo quando ele é pouco espetacular, fácil de parodiar.

Mas é verdade que é muito difícil inventar uma língua. É provavelmente mesmo impossível. Podemos passar toda uma vida (fadada ao fracasso, o que é a forma mais honesta de glória). Duras "envenenou" a língua francesa com sua singularidade tão partilhável, tão facilmente contagiosa, porque ela queria se tornar ela mesma a língua francesa e por isso ela a atacou até a raiz. Não há ambição maior para a literatura que a de querer não somente usar a língua, mas se tornar a própria língua.

Não há desafio maior para um escritor que o de tentar subverter a linguagem até que ele se identifique com aquilo que está fazendo. No século XX, Proust, Céline, Artaud e, sem dúvida, Claude Simon, Pièrre Guyotat e Valère Novarina tiveram esta audácia, e mais alguns outros, muito raros. Em seguida há Duras, com um olhar mais desconfiatdo, trabalhando para manter, por meio de sua pessoa, a afirmação de ser ela mesma a literatura encarnada; servindo-se das palavras de Pierre Michon, de um modo falsamente menor, falsamente diminuído. De uma humildade extraordinária, até à glória e ao excesso, por vezes.

Mas Duras nada mais é do que um estilo (entendo por "estilo" aquilo que dá a uma escrita sua singularidade, sua mudança do indiferenciado da coisa escrita para o que é escrito, e não o odioso bem escrito das academias e do conformismo. Entendo por "estilo" aquilo que se opõe, aquilo que procura, pela diferença, tocar um ponto universal). Duras são personagens habitados pelo vazio de um mundo sem deus. São seres devastados pelo tédio, pela solidão, pelo amor, pela morte. É a vida em todo seu não-sentido (non-sens) e em sua insensatez (insensé), é a necessidade do absoluto e do infinito em um mundo relativo e fechado.

É um grito, uma lágrima, de irresoluto e de inconsolável, sempre; é o outro, que é a única salvação possível e que é, entretanto, sempre recusado, impossível. É a doença da morte e do amor, uma doença incurável, indomável, como aqueles que a vivem e que dela morrem. Duras somos nós, nesse tremor que veio da adolescência, com os primeiros abalos e os primeiros mortos. É uma parte dessa expectativa que nos imobiliza na vida, uma glaciação que as pessoas "durassianas" (elas existem, nós às vezes as encontramos) tentam quebrar em vão, a golpes de pequenos copos de Campari e cigarros. É a elegância de um desespero obsoleto em que a morte vem dos subúrbios de Lahore, é o grito de um vice-cônsul para dizer que a dor de viver às vezes é pior do que a de morrer, e que o amor, se ele é uma doença que não cessa de nos consolar, é a única ferida que contém a esperança de que algo é possível. Marguerite Duras quer carregar o nome desta ferida. Ela é uma existencialista de tipo particular, do tipo dos escritores e não dos filósofos.

Em seu prefácio à edição da Pléiade, Gilles Philippe afirma que, pouco antes de morrer, Marguerite Duras mencionou "o livro que chama por sua morte" e cujo título, antes de se tornar Isso é tudo (C’est tout), era o tão blanchotteano Livro a desaparecer (Livre a disparaître). Podemos dizer que agora é que ele passa a existir, esse livro assassino, esse livro definitivo, esse livro em que, enfim, Marguerite pode desaparecer sob Duras.

A mulher pública respondendo ao contexto "necessariamente sublime" por aquilo que ele tem de atemporal, a militante se engajando em sua época, aquela que tanto falou de tudo e sobretudo do silêncio, é agora que ela poderá se calar, com esta edição da Pléiade, deixando que o desaparecimento tome o lugar dela e, assim, ela pode florescer nos livros que escreveu.

A obra de Duras será desenvolvida com o propósito paradoxal e constante de afirmar sua presença e sua voz evitando as classificações e a domesticação. Uma obra que foi se encontrar ao lado do teatro e do cinema para escapar a todo tipo de confiscação dos oficiais da crítica e da inteligência universitária, tamanha é a prontidão das definições para a decreptude. Duras foi antes romancista, mas esses romances, eles também tinham necessidade, como o engajamento político, de não ceder um dedo em relação à liberdade e à independência absolutas. Os artistas, quando eles têm esta envergadura, são pessoas irrecuperáveis.

A Pléiade não é senão um túmulo onde eles são expostos, uma gaiola póstuma onde nós não teríamos conseguido prendê-los se eles estivessem vivos. Hoje é justamente o lugar que convém à Marguerite Duras, porque lá sua obra encontra os grandes nomes que fizeram a história da nossa literatura.

 

 

Endereço para correspondência
Laurent Mauvignieri
6, rue Homère
31500 Toulouse – França
E-mail: l.mauvignier@gmail.com

Recebido: 16/04/2012
Aceito: 27/05/2012

 

 

* Escritor francês nascido em Tours, em 1967, possui vários livros publicados, tais como Loin d’eux (1999), Apprendre à finir (2000) e Des hommes (2009), todos pela editora francesa Les Editions de Minuit. Possui também artigos e traduções. Para outras informações, consultar o link <laurent-mauvignier.net>.
1 Este texto foi publicado no suplemento literário Livres do jornal francês Le Monde no dia 21/10/2011 como homenagem aos 15 anos da morte da escritora Marguerite Duras. Naquela ocasião, a editora Gallimard lançava as obras completas da escritora, dirigida por Gilles Philippe – diretor do Departamento de Literatura e Linguística Francesas e Latinas da Université Paris-III (Sorbonne Nouvelle).
2 Tradução: Patrícia Cabianca Gazire (Membro Associado da SBPSP), Gaëlle Obiegly (Escritora francesa) e Rafael Zapata (Doutorando de Linguística da Université Paris-Diderot/Paris VII).
3 Bibliothèque da la Pléiade, coleção francesa de obras de grandes escritores editada desde a década de 1930.