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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.54 São Paulo jul. 2012

 

RESENHAS

 

"Psicanálise Compreensiva" – uma resenha em prosa poética

 

 

Peggy Carvalho*

Endereço para correspondência

 

 

Trinca, Walter. Psicanálise Compreensiva: uma concepção de conjunto. São Paulo: Vetor, 2011. 434 p.

 

Abro o e-mail e, estupefata, leio o convite de Walter Trinca para resenhar seu Psicanálise Compreensiva: uma concepção de conjunto.

Passados os primeiros momentos, a sensação de um enorme desafio apoderou-se de mim.

Não!

Demandaria muito tempo para elaborá-la, teria que ler e reler de modos diferentes, fazer do livro companhia diária, noturna, respirá-lo...

Respirá-lo!

E como, então, fazer a resenha de um livro que, a cada vez que lia, relia, olhava, tocava, pensava, lembrava – sim, o convite chegou-me após seu livro ocupar lugar de destaque em meu criado-mudo – vinha-me à mente o pensamento:

Eis Walter!

Eis toda uma condensação de vida, de trabalho, luta... Sabedoria!

Pedi ajuda aos deuses.

Como resenhar um livro de Walter, onde os conteúdos dos pensamentos clínicos dançam, fluxorefluxo, nataraja1?

Walter clínico?

Walter filósofo?

O ser interior, o self e as perturbações psíquicas; o ser interior, o self e a pulsão de morte; o self e a questão do contato; três primeiros capítulos que iniciam essa jornada, já nos fornecem a dimensão da complexidade e da simplicidade da obra.

Simplicidade no sentido de muita elaboração para atingir o essencial. Testemunhamos sua depuração nos capítulos em que Walter se inclina sobre o distanciamento de contato e as perturbações psíquicas; a fragilidade, a sensorialidade e as perturbações psíquicas; o enfraquecimento e o esvaziamento, capítulos 4, 5 e 6, respectivamente.

Nesta depuração, o autor vai nos revelando fragmentos clínicos de alguns... e de nós, mesmos: somos todos personagens de seu livro, alicerçando suas hipóteses.

Sim, porque Walter toma como ponto de partida o núcleo essencial da pessoa que a define, a distingue e a qualifica: o ser interior.

"Ser que se expressa como fonte de vida criadora, núcleo de coesão, centro organizador das experiências e estabilizador da vida psíquica."

Isto remeteu-me a Lou Andreas-Salomé em sua "Carta aberta a Freud" que, com a anuência de Freud, esclarecia-nos que o narcisismo primário não seria, apenas, o amor de si mesmo, mas a camada mais profunda e primitiva da mente humana.

E isto, ao meu ver, nos torna a todos, seres humanos, iguais.

Iguais e, ao mesmo tempo, diferentes quanto ao maior ou menor distanciamento de contato com essas "raízes existenciais verdadeiras e profundas".

Ao tomar como ponto de partida o ser interior, Walter examina suas relações com o self – "forma de suporte e de organização globalizante cujos precipitados e compostos são variáveis e móveis, tendo a ver, em suas origens e em seus processos, com a complexidade de manutenção concreta da existência da pessoa, incluindo-se a adaptação e a sobrevivência"– e observa como essas instâncias se compõem com o conjunto dos fatores importantes.

Considerando as perturbações psíquicas, "um dos principais fatores é o distanciamento de contato com o ser interior, que pode ou não ser precedido pela constelação do inimigo interno", representante da pulsão de morte.

Constata que "fatores importantes são, ainda, a sensorialidade e a fragilidade do self, cada qual com suas modalidades de manifestações, formando sistemas mentais determinantes. Há, também, a angústia de dissipação do self e a estruturação inconsciente, que são fatores especialmente relacionados à intensidade e à extensão das perturbações psíquicas.

A Psicanálise Compreensiva (ampla, abrangente) sublinha especialmente o papel dos fatores prioritários, que estabelecem relações entre si. Além disso, tenta esboçar um modelo geral de compreensão dos processos psíquicos mediante a inclusão do fator denominado expansão de consciência. Com isso, os elementos fundamentais tendem a se harmonizar em uma visão de conjunto".

O propósito de Walter é o de "generalizar o conhecimento, de modo a alcançar a consolidação do modelo geral" e nas apresentações clínicas, sua intenção é "enfatizar a presença dos fatores mencionados e sua inter-relação dentro de uma concepção de conjunto".

Ao oferecer elementos para o pensamento clínico, visando uma ação terapêutica, temos o privilégio de acompanhar Walter em seu percurso dantesco desde o Inferno das perturbações psíquicas no estado oclusivo, ao Purgatório no estado inconsciente e aos Céus no estado consciente, guiado, ou fundamentado por Freud, Klein, Winnicott, Bion e Chuang-tse.

Eis meu olhar sobre Walter!

Nesta "linha de base abrangente dos três estados, cujo eixo está fundamentado na hipótese de continuidade dos graus de contato, segundo a qual, quanto mais a pessoa se distancia do contato, mais grave tende a ser a natureza da perturbação psíquica; e, quanto mais ela se aproxima do contato, mais integrada tende a se tornar e mais totalizadora tende a ser sua experiência...", "o eixo compreende variações dos graus de contato entre infinito negativo e infinito positivo, passando pelo ponto zero ou origem. Este ponto está situado na demarcação correspondente à experiência de inteireza. Cada pessoa poderia se situar em determinado ponto do contínuo, uma vez que cada ponto representa especificamente a natureza de certas condições psíquicas preponderantes. A determinação desse ponto é essencial para o conhecimento das formas pelas quais a pessoa experimenta, percebe, sente e pensa os fatos, tanto da realidade interna quanto da externa".

Eis Walter brincando, compondo, rearranjando e adaptando e sonhando para tornar o caminho menos difícil...

"Nihil novi sub sole", disse-me ele.

E então,

Está lá o moço, sentado, olhando pr’o chão!
...Ele crava os olhos no infinito...
ele via sua cegueira
ouvia sua surdez
andava em estrada certeira
reconhecia sua pequenez

...e depois

clama, implora, num grito mudo, por Ariadne
é necessário voltar, seguro, à luz do sol
é necessário voltar a ficar sentado, olhando pr’o chão!

E, ao reencontrá-la...
Quer, com mil punhos socá-la
De ódio, de amor, dilacerá-la
Tudo... e Nada... mudou, nesse chão, nesse sol

Agora, sentado, olhando pr’o chão,
ele não mais crava os olhos no infinito...
Sua cabeça apenas pende, submissa
à sua humana condição!

E, nessa expansão da consciência, Walter afirma "nossas vinculações ancestrais que nos remetem ao fundo remoto que temos em comum com os outros homens. Participamos dos assuntos imemoriais da espécie humana, sentimos que o planeta é nossa morada e compartilhamos os valores perenes de uma espiritualidade que é imanente ao mundo em que vivemos".

Eclipse, agora!
Embora não haja motivo
de temor,
ela estremece

Fogem-lhe seus ancestrais...
escondem-se:
escurece!

Em silêncio interior, liberta da sensorialidade e de impregnação pela fragilidade, em comunhão com as coisas e não-coisas, tempo cessado, espaço suspenso,

É quando
apagam-se as luzes
que as sombras
as mais nítidas imagens
produzem

sonho magia
despida deusa em
multicoloridos véus
nos cabelos... flores
ela flutua
dança

dança da liberdade
dança da lua
dança das cores

Liberdade para "acolhimento e abrigo para as transformações de um vir a ser inesgotável em que o fluxo permanente do desconhecido constitui um motivo para a construção de nossas vidas. Nossa ciência, nossa filosofia, nossa arte e nossa religião passam a ser aproximações ao grande mistério das brenhas do mundo, em cuja clareira nos postamos".

Não, não necessitamos excluir a mística, tornando a "Psicanálise (de fato) Compreensiva": podemos acolhê-la distinguindo-a da religião que nos fala, nos normatiza, em uma tentativa de dizer o indizível.

Podemos acolhê-la no sentido de que a "mística é uma experiência de ser que se perfaz no silêncio muito mais do que nas palavras" (Rezende, 1995).

Experiência de Ser, de estar de acordo com a Realidade Última, em direção a ela, "infinita, informe, inominável".

Mística é Ser.

Eis Walter!

 

Referências

Carvalho, P. Construções (livro inédito).         [ Links ]

Carvalho, P. Dança das cores (livro inédito).         [ Links ]

Rezende, A. M. de (1995). Wilfred R. Bion: uma psicanálise do pensamento. Campinas, SP: Papirus.         [ Links ]

Salomé, L. A. (s.d.). Carta aberta a Freud. São Paulo: Ed. Princípio.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Peggy Carvalho
Rua Mario Amaral, 299/45
04002 021 – São Paulo – SP
tel.: 11 9523-0124
E-mail: pegsses@gmail.com

Recebido em: 06/02/2012
Aceito em: 20/04/2012

 

 

* Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, autora de Dança das Estações (Massao Ohno Editor).
1 Nataraja pode significar bailarino cósmico.