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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

CARTA-CONVITE

 

 

Compreendes, por acaso, que necessitamos de um pequeno
excesso para existir?
(Shakespeare, O Rei Lear)

A frase de Shakespeare introduz simultaneamente a ideia da ligação entre excesso e vida e a necessidade de que esse excesso não ultrapasse um certo limiar a partir do qual ele não estaria trabalhando no sentido da vida.

No campo da metapsicologia freudiana o excesso nos faz pensar no ponto de vista econômico. A partir da virada dos anos 1920, introduzida com sua obra Além do princípio do prazer, Freud vai refletir sobre a noção de compulsão à repetição e cria a segunda teoria das pulsões, com a introdução da pulsão de morte. Até que ponto o excesso não estaria ligado à questão da compulsão de repetição e à pulsão de morte? A noção de "gozo", introduzida pela releitura de Lacan da obra de Freud, parece-me fértil para pensarmos essas relações.

Será que poderíamos colocar em relação esse excesso que a compulsão de repetição engendra com o consumismo das sociedades atuais, consumismo este que não se dirige somente às mercadorias, mas também à informação, aos jogos, ao trabalho, à busca de satisfação imediata etc.? Podemos dizer que o excesso é um sintoma de nossa época? Por outro lado, nos indagamos se o excesso no mundo contemporâneo não estaria a serviço de poupar ao sujeito a dor do desamparo, da solidão, da falta.

Qual o papel que desempenharia o Superego na relação com o excesso de excitação? Melanie Klein, por exemplo, descreve um Superego arcaico que é cruel e voraz em excesso.

No mundo de hoje, o excesso parece predominar em vários setores da vida cotidiana. Nosso convite para este número da ide propõe interrogantes sobre o tema do excesso, que encontram ecos no mundo interno e no mundo externo.

Em seu livro A Sociedade de Consumo, Baudrillard afirma que no mundo do consumo excessivo os objetos deixam de estar em conexão com qualquer função ou necessidade definida. O autor considera então que os objetos desse mundo do consumo excessivo respondem às lógicas social e do desejo, as quais servem de campo móvel e inconsciente de significação. Baudrillard aponta um crescimento do pensamento mágico e onipotente na sociedade de consumo atual. Podemos dizer que esse excesso nos faz viver longe da linguagem e das palavras e na recusa da realidade?

Outro autor, Žižek, em Bem-vindo ao deserto do Real, refere-se à realidade virtual, dando o exemplo de produtos desprovidos de suas qualidades malignas, por exemplo, café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo virtual (sem sexo). Ele afirma ainda que a realidade virtual generaliza o processo de oferecer um produto "esvaziado da sua substância".

O mundo virtual ofereceria, então, a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e resistente do Real. A realidade virtual seria sentida como a realidade sem o ser. Será que estaríamos combatendo nossas próprias tendências aos excessos com a realidade virtual?

Num de seus textos, nossa colega Marion Minerbo fala dos "crimes contemporâneos", que parecem guardar estreita relação com nosso tema. A autora relaciona violência excessiva com uma ideia de desnaturação de certos sistemas simbólicos.

Estão aí algumas questões, provenientes de um trabalho inicial de pesquisa de nosso Corpo editorial, a fim de estimular vocês, nossos leitores, a escreverem para nosso próximo número.

 

 

José Martins Canelas Neto
Editor

 

Referências

Baudrillard, J. (1995). A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Žižek, S. (2003). Bem-vindo ao deserto do Real! cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial.         [ Links ]

Minerbo, M. (2007). Crimes Contemporâneos: Uma Interpretação. Ou, o Inumano. Percurso, 38, Ano XX.         [ Links ]