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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo ene. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

Ser e sofrer, hoje

 

To be and to suffer, today

 

 

Marion Minerbo*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto aborda a relação entre a pós-modernidade, entendida como crise generalizada das instituições, e as formas de sofrimento psíquico que lhe são consubstanciais. O psiquismo depende das significações oferecidas pelas instituições para poder atribuir algum sentido à realidade e simbolizar as experiências emocionais. Em sua falta – condição aqui denominada depleção simbólica –, o psiquismo é obrigado a recorrer a mecanismos defensivos específicos, dentre os quais destacamos: a) o transbordamento pulsional "para fora" na forma de atuações violentas, e "para dentro" na forma de somatizações; b) o desinvestimento pulsional dos objetos, produzindo sentimentos de vazio, tédio e apatia; c) o recurso aditivo a estímulos sensoriais autocalmantes e a comportamentos compulsivos que visam produzir próteses identitárias.

Palavras-chave: Pós-modernidade, Sofrimento psíquico, Depleção simbólica, Excesso pulsional, Psicopatologia contemporânea.


ABSTRACT

This paper proposes a relationship between post-modernity, understood as a generalized institutional crisis, and a psychic suffering related to it. The psyche depends on meaning offered by institutions to be able to attribute any sense to reality and to symbolize emotional experiences. In its failure – condition which I call symbolic depletion – it is obliged to use specific defense mechanisms, such as: a) violent acting-outs or somatizations when overwhelmed by instinctual drives; b) disinvestment leading to feeling of emptiness, boredom and apathy; c) addiction to self-calming down sensorial stimuli, and compulsive behavior that aim to create a kind of identity prosthesis.

Keywords: Post-modernity, Psychic suffering, Symbolic depletion, Instinctual drive excess, Contemporary psychopathology.


 

 

1. Introdução: modernidade e pós-modernidade

Modernidade

Presenciei uma cena significativa num almoço de domingo em um restaurante em Higienópolis. Havia ali várias mesas com famílias, casais e uma com quatro amigas sexagenárias, com suas pérolas e laquê no cabelo. Levou um tempo para que eu visse o casal de gays. Não porque estivessem escondidos. Ao contrário, era uma mesa em evidência. Dois rapazes bonitos, musculosos, tatuados. E um carrinho de bebê. Um dos rapazes ficou o tempo todo cuidando do filho. Na hora de ir embora exibiu com orgulho o bebê para um casal de outra mesa. Já na calçada o casal foi efusivamente cumprimentado por um amigo que chegava. Essas cenas seriam inconcebíveis algum tempo atrás, quando uma instituição, a família patriarcal, determinava com exclusividade como as pessoas podiam e deviam viver. Não vi o casal de gays porque demorei a perceber que naquele espaço conviviam tranquilamente referências modernas e pós-modernas (Minerbo, 2011).

Abordei em Neurose e não neurose (2009) a relação entre sofrimento neurótico e modernidade, e entre sofrimento não neurótico (expressão de André Green; ou sofrimento narcísico-identitário, termo de René Roussillon) e pós-modernidade. A modernidade é um momento da civilização ocidental que se caracteriza pela solidez das grandes instituições – refiro-me a família, educação, política, religião –, as quais têm o poder de determinar, com exclusividade, a maneira possível e desejável de pensar, sentir e agir. Há o certo e o errado, o bom e o mau. O sistema simbólico vigente "solda" um significante a um significado que então parece único e natural. Por exemplo: família = casal heterossexual, de preferência com filhos.

Na modernidade, o laço simbólico que une significante a significado é rígido e os valores instituídos são considerados absolutos e universais. Por isso, essa cultura produz uma forma de subjetividade que se esforça para caber dentro do que é considerado legítimo. A vantagem de haver instituições fortes é que as referências identitárias a partir das quais nos constituímos estão dadas, e são vividas como sólidas e confiáveis. A desvantagem é que há poucas opções de vida consideradas legítimas. Nesse contexto cultural, quem não cabe no modelo único sofre e se culpa por se sentir – e por ser, efetivamente – diferente e desviante da norma.

Do ponto de vista psicopatológico, a modernidade produz uma forma de sofrer típica que chamamos neurose. O sofrimento neurótico é produzido pela obrigatoriedade de se adequar a uns poucos modos de ser. Por exemplo, a vida libidinal da mulher burguesa no século XIX tinha de caber nos papéis de boa filha, esposa dedicada e mãe prestimosa. Nesse plano sócio-cultural, o sofrimento histérico expressava o mal-estar ligado à estreiteza das possibilidades sublimatórias que a modernidade oferecia à mulher (Kehl, 2008).

Pós-modernidade

Convencionou-se chamar de pós-modernidade ao momento da história da civilização em que as grandes instituições que serviram de base para a civilização ocidental entram em crise. A falência do modelo único pode ser vivida como libertação, mas também como falta de chão. O laço simbólico, que "soldava" um significante a um significado, tornou-se frágil e corrediço. Com isso, os sentidos se relativizaram, ou seja, já não acreditamos com certeza inabalável que família = casal heterossexual com filhos. A vantagem é que a fragilidade do símbolo pode ser aproveitada de forma criativa para que novos laços simbólicos sejam constituídos: as pessoas podem se reinventar. Há espaço para que novas formas de viver se tornem possíveis, contemplando a singularidade do desejo. O casal de gays do restaurante – e tantos outros – reinventou a família.

A desvantagem é que cada um tem que se reinventar a partir de si mesmo, já que não conta com o apoio simbolizante das instituições. Ser "diferente" se tornou, se não obrigatório, pelo menos desejável. É uma tarefa solitária, angustiante e exaustiva. A subjetividade tem de se constituir em meio a um estado de depleção simbólica – situação em que instituições frágeis não têm lastro, nem credibilidade, para produzir "significações operantes" (o termo é de Castoriadis).

Ora, o psiquismo depende das significações oferecidas pelas instituições para poder atribuir algum sentido à realidade e simbolizar as experiências emocionais. Na ausência de verdades absolutas, tudo é possível; há liberdade, mas também há a obrigação de encontrar seu próprio caminho. Quem não consegue, fica perdido, sem chão, sem rumo, sem projeto de vida. A insuficiência/fragilidade das instituições e do símbolo também produz as várias formas do mal-estar na pós-modernidade. Como vemos, instituições excessivamente fortes produzem um tipo de mal-estar na civilização, e instituições excessivamente frágeis produzem outro tipo de mal-estar.

Figueiredo retoma algumas ideias pioneiras de Elliot Jacques, que estudou as instituições do ponto de vista psicanalítico. Nas palavras de Figueiredo, elas "existem para nos aliviar de angústias e para conter nossa loucura, vale dizer, para conter o que, na mescla de Id e Supereu arcaico, jamais encontrará como destino possível a simbolização e a integração egoica" (Figueiredo, 2009, p. 207). Em outros termos, a parte mais primitiva de nosso psiquismo se deposita na instituição, que se encarrega de "contê-la". E vice-versa, a instituição forma o pano de fundo de nossa vida psíquica. Entende-se o efeito traumático, profundamente desorganizador, das crises institucionais no mundo contemporâneo: na impossibilidade de simbolizar e de integrar as experiências, a pulsionalidade permanece em estado de desligamento. Inundado pelo excesso de energia livre, o psiquismo pode ser levado a estratégias defensivas radicais, configurando, como veremos adiante, o campo da psicopatologia psicanalítica.

O mal-estar na pós-modernidade ligado à fragilidade do símbolo é um sofrimento existencial, consubstancial com a forma de subjetividade da época. É uma forma de ser. Porém, saindo do plano existencial e passando para o da psicopatologia, em um dos extremos encontramos o sofrimento ligado à experiência de vazio, de falta de sentido e de tédio existencial; no outro, atuações dos mais variados tipos, nas quais a violência pulsional permeia as relações intersubjetivas. São as formas de sofrer, necessariamente consubstanciais com a forma de ser. Antes de esboçar algumas ideias sobre as formas de ser e de sofrer, hoje, cabe desenvolver a mediação necessária entre a crise das instituições no nível social e o sofrimento psíquico individual. Essa mediação é feita pelo símbolo, ou melhor, por sua insuficiência.

 

2. Depleção simbólica e sofrimento psíquico

Tomo emprestado da medicina o termo "depleção", que significa redução de alguma substância no meio celular, com prejuízo de seu funcionamento. A depleção de ferro no organismo, por exemplo, produz anemia, acarretando extrema fraqueza e falta de ar. Pareceu-me (Minerbo, 2009) uma boa imagem para falar do que vem acontecendo com o aparelho psíquico e seu funcionamento no mundo contemporâneo: a insuficiência/fragilidade do símbolo vem produzindo uma espécie de "anemia psíquica". Diante disso, o sujeito luta para encontrar mecanismos compensatórios, o que nos introduzirá, como veremos, no campo da psicopatologia psicanalítica.

A depleção simbólica pode ser considerada no nível "macro", o das grandes instituições sociais no seio das quais nos subjetivamos, como se viu na introdução. E também no nível "micro", envolvendo a relação do bebê com seus objetos significativos. Como sabemos, uma parte essencial da função materna é ler e traduzir o bebê para ele mesmo: "Isto é fome; isto é raiva". Mas ela também lê e traduz o mundo para ele: "isto é bom / mau; isto é perigoso / seguro; isto tem valor / é desprezível; isto é proibido / obrigatório". Ou seja, a função materna institui sentidos para o bebê, e por isso tomo a liberdade de entendê-la como uma microinstituição. Pelo simples fato de oferecer algum sentido – qualquer sentido –, esta microinstituição promove o "apaziguamento simbolizante" (o termo é de Roussillon). Inversamente, a ausência de sentido impede a ligação das pulsões, ou promove seu desligamento, o que é profundamente desorganizador para o psiquismo.

Ora, a crise das instituições no mundo contemporâneo inclui, como não podia deixar de ser, as duas microinstituições mais diretamente ligadas à constituição do sujeito psíquico: a psique materna e a família edipiana. Se antes a jovem mãe contava com as "certezas" dadas pelas instituições modernas – a família ampliada, a comunidade e os pediatras –, agora ela é obrigada a criar, a partir de si mesma, em meio a um relativismo absoluto de valores, o que é bom e o que é mau, o que é certo e o que é errado. Podemos imaginar a angústia que permeia a relação consigo mesma, e, inevitavelmente, com o bebê. Da mesma forma o pai tinha "certezas" sobre qual era o seu papel. A crise das instituições afeta diretamente sua maneira de perceber, tanto sua masculinidade, quanto sua paternidade. Mãe e pai se veem lançados na angústia do "desamparo identitário" (expressão de Muszkat, 2011). O casal gay do restaurante que reinventou a família terá, também, de reinventar, a partir de si mesmo, a forma de parentalidade que lhes convém – e que lhes é possível – para educar seu filho.

Aliás, é digno de nota que muitas mães, percebendo seu isolamento e desamparo, vêm criando comunidades virtuais no Facebook para compartilhar as dúvidas e as angústias de como criar os filhos. Uma dessas comunidades tem o nome sugestivo de "Salto alto e mamadeira", e parece que conta, no momento em que escrevo este artigo, com quase duas mil mães. Talvez o casal de gays também conte com uma comunidade virtual que funcione como uma rede de continência afetivo-simbolizante.

Não vou retomar aqui temas por demais conhecidos, como a insuficiência da função materna, especialmente em sua vertente simbolizante. Basta dizer que do ponto de vista psicopatológico, a subjetividade que se constitui em meio à depleção, ou, em muitos casos, em meio à miséria simbólica, está sujeita a experiências emocionais que excedem sua capacidade de elaboração. Como sabemos, isso afeta a constituição do eu e o obriga a lançar mão de defesas, que poderão ser extremamente custosas para o indivíduo e para a sociedade. Assim como a reposição de ferro melhora a anemia, o fortalecimento não enrijecido das instituições ("macro" e "micro") promove uma espécie de "reposição simbólica". A credibilidade e a confiança nas significações instituídas aliviam consideravelmente o sofrimento existencial e psicopatológico que caracteriza a subjetividade pós-moderna.

Sublinho o fato de que a miséria simbólica não tem relação necessária com a classe social. Famílias das classes A e B podem ser absolutamente miseráveis desse ponto de vista, como constatamos diariamente em nossos consultórios. Por outro lado, a inclusão cultural das classes desfavorecidas tem se mostrado como um fator terapêutico de alcance indiscutível. Noto também que a inclusão cultural é completamente diferente da assim chamada inclusão social, que costuma ser medida pelo aumento do poder de consumo da população.

 

3. Excesso pulsional e psicopatologia contemporânea

A crise das grandes instituições, tanto em nível "macro" como "micro", com a consequente depleção simbólica, é potencialmente traumática porque afeta a constituição do eu em suas duas vertentes: o ego e o self. Como veremos, a distinção entre ego e self é importante para compreender a psicopatologia contemporânea, e segue as duas teorias que Freud propôs ao longo de sua obra sobre a constituição do eu.

Resumidamente, o ego se origina de uma diferenciação do id em contato com a realidade; é uma instância que representa o indivíduo e desenvolve funções para zelar por sua sobrevivência física e psíquica. O modelo é o pão, cuja crosta resistente é feita da mesma massa macia do miolo, porém modificada pela ação do calor do forno (Freud, 1923/2011). Já o self é a parte do eu constituída como um precipitado de identificações (Freud, 1923/2011). Essa teoria tem início em Para introduzir o narcisismo (Freud, 1914/2010), quando Freud fala do Eu como primeiro objeto de amor unificado. Continua em Luto e melancolia (Freud, 1919/2010), quando ele formula o conceito de identificação, conceito que passa a ser entendido como estruturante e constituinte do eu em O ego e o id (Freud, 1923/2011).

Uma das funções do ego é a gestão da angústia por meio de uma contínua atividade simbolizante. A depleção simbólica torna a gestão da angústia bastante problemática e, como sabemos, seu excesso desorganiza o psiquismo – suas funções e suas fronteiras –, sendo vivido como angústia de morte. O self é o conjunto de autorrepresentações por meio das quais o eu se relaciona consigo mesmo. Corresponde ao que chamamos de identidade, a qual, embora ilusória, é necessária para o sentimento de ser e de existir como "eu mesmo" ao longo do tempo. A depleção simbólica produz uma identidade claudicante e mal integrada, o que pode ser vivido como ameaça de despersonalização ou ruptura da continuidade do ser. Sintetizando, o sofrimento psíquico nos distúrbios narcísico-identitários envolve tanto a dificuldade na gestão da angústia por parte do ego, quanto o sentimento de claudicação da identidade.

Para lidar com o sofrimento ligado à depleção simbólica, o eu lança mão de estratégias defensivas específicas, dentre as quais destaco três.

a) Quando a capacidade de gestão da angústia pelo ego é insuficiente há um transbordamento pulsional. Segundo Green (1988), estudioso dos estados-limite, os afetos ligados a experiências emocionais que o psiquismo não consegue conter/elaborar em seu "espaço" próprio são evacuados para fora de seus limites. Ele vê dois tipos de transbordamento: "para fora", no campo social, ou "para dentro", no soma: os dois espaços não psíquicos que fazem fronteira com o campo psíquico.

Segundo o autor, a função da "atuação-fora é precipitar o organismo para a ação a fim de evitar a realidade psíquica" (Green, 1988, p. 81). Tal transbordamento para fora se dá na forma de atuações, dentre as quais destaco a violência social, a violência nas relações entre cônjuges e entre pais e filhos.

Com relação a este último aspecto, sugeri (Minerbo, 2007) que alguns crimes familiares contemporâneos são diferentes daqueles descritos nas tragédias gregas. Nestas, um membro da família matava outro em função de conflitos insolúveis ligados aos lugares simbólicos claramente determinados pelas instituições (polis, família). A filha podia matar a mãe enquanto mãe. O pai sacrificava a filha enquanto filha. Hoje, tais crimes parecem ter motivações utilitárias, e, sobretudo, não parecem fazer qualquer referência ao sistema simbólico "família": elimina-se um corpo que é um estorvo para outro corpo, sendo que a relação entre eles é de mera procriação biológica, e não de parentesco.

Na mesma linha de pensamento, nas somatizações é o corpo biológico, e não o corpo erógeno (com valor simbólico), que recebe o excesso pulsional que o eu não tem como processar psiquicamente. "Enquanto os sintomas de conversão [na histeria] são construídos de uma forma simbólica e estão relacionados ao corpo libidinal, os sintomas psicossomáticos não são de natureza simbólica. São manifestações somáticas carregadas de uma agressividade refinada, pura." (Green, 1988, p. 83)

b) Quando o laço simbólico necessário para ligar a pulsão é excessivamente corrediço, o sentido – que poderia nutrir um projeto de vida ou o ideal do eu – não se fixa, e não pode ser sustentado pelo aparelho psíquico como desejo. Observa-se um desinvestimento pulsional generalizado, que produz quadros nos quais o paciente relata vivências de vazio, tédio e apatia, o que pode ser confundido com depressão. No entanto, ao contrário desta, em que o sujeito "des-espera" – ele perde as esperanças – de realizar o desejo, aqui não há desejo: nenhum objeto se destaca na paisagem e o sujeito não consegue investir em nada. Em lugar do sentimento de tristeza, ou da dor da perda na depressão, aqui encontramos uma "angústia branca", termo usado por Green para se referir às formas de sofrimento ligado ao negativo e ao vazio psíquico e com o uso maciço de defesas ligadas à desobjetalização. São quadros em que se encontra o "desinvestimento maciço, tanto radical como temporário, que deixa traços no inconsciente na forma de buracos psíquicos" (Green, 1988, p. 152).

c) O terceiro recurso defensivo que o sujeito contemporâneo encontra para lidar com o sofrimento narcísico-identitário ligado à depleção simbólica pode ser descrito como comportamental. Este recurso – que assume duas formas metapsicologicamente distintas – tende a ser mais aceito socialmente do que o transbordamento e o desinvestimento pulsional (descritos nos itens a e b), pois o comportamento se confunde com modos de ser culturalmente esperados, e o sintoma fica camuflado. Refiro-me à adição a estímulos sensoriais autocalmantes e à compulsão que visa produzir próteses identitárias.

c.1. Comportamentos aditivos

Podemos falar em adições quando o sujeito recorre a substâncias e comportamentos que visam atenuar a angústia (de fragmentação, persecutória etc.), ou estimular e excitar o ego tomado pelo tédio e pela apatia (angústia branca). A adição diz respeito ao ponto de vista econômico da metapsicologia. As substâncias psicoativas podem ser artificiais, produzidas pelo narcotráfico, e/ou pela indústria farmacêutica. Ou podem ser substâncias psicoativas naturais, como a adrenalina e a endorfina, produzidas por exercícios físicos em excesso ou por esportes radicais.

Mas pode haver adições, não a substâncias psicoativas que, como diz o nome, produzem sensações psíquicas, e sim a comportamentos que produzem sensações físicas. Refiro-me a comportamentos a que o sujeito contemporâneo recorre continuamente para produzir certas sensações corporais/somáticas. Estamos longe do corpo erógeno, corpo-representação que se insere em uma lógica simbólica, e reconhecido por Freud no tratamento da histeria. Aqui é a sensação física em si mesma que é buscada. É uma forma desesperada de produzir uma experiência, ainda que fugaz, de integração somatopsíquica. A sensorialidade funciona como foco em torno do qual o eu se organiza e se sente vivo e existindo. A sensorialidade autoinduzida "acalma" a angústia e/ou "preenche" o vazio.

São exemplos de comportamentos que estimulam a sensorialidade corporal/somática: o sexo compulsivo, masturbatório ou não, produzindo a sensação corporal de excitação sexual; o jejum prolongado, produzindo a sensação de fome contínua na anorexia; o ato de se cortar como forma de produzir a sensação de dor; o ato de comer demais, seguido do vômito autoinduzido na bulimia, produz a alternância entre as duas sensações: a plenitude gástrica e o esvaziamento; a compulsão a comer, produzindo a sensação contínua do trato digestivo sendo estimulado pela passagem de alimento na obesidade mórbida; a movimentação incessante e frenética do corpo nas pessoas – crianças ou adultos – diagnosticadas como hiperativas.

c.2. Comportamentos compulsivos

Neste item descrevo uma última "solução" para o sofrimento ligado ao desamparo identitário. São comportamentos compulsivos culturalmente determinados. Essas compulsões pós-modernas – inseridas na mesma lógica não simbólica dos crimes familiares contemporâneos acima mencionados – são diferentes das compulsões neuróticas, clássicas, como lavar as mãos ou verificar se o gás está fechado, que apresentam um valor simbólico. E, ao contrário das adições, que estão ligadas à busca de sensações, elas estão ligadas à busca de um sentido, ou melhor, ao fracasso dessa busca. Fracasso este ligado à crise das grandes instituições no mundo contemporâneo.

Nos anos 80 atendi uma paciente – ela certamente era uma borderline grave – que apresentava uma compulsão a comprar roupas de grife. Na época isso ainda não era comum. Eu me perguntava como um comportamento culturalmente determinado podia ultrapassar o limiar daquilo que seria socialmente esperado e se tornar compulsivo. Num estudo que fiz a respeito (Minerbo, 2000), acredito ter entendido que, quando uma única instituição está encarregada de "salvar" a identidade, surgem comportamentos compulsivos relacionados às práticas e discursos daquela instituição. As grifes não tinham qualquer valor simbólico interpretável: funcionavam como verdadeiras próteses identitárias que não podiam ser dispensadas.

Essa conclusão pode ser estendida a outros tipos de compulsões pós-modernas. Vimos que a depleção simbólica afeta a constituição do eu e se manifesta como desamparo identitário. Para "amparar" a identidade, o sujeito contemporâneo toma emprestado das instituições disponíveis elementos – signos – que são usados como "tijolos" na construção da identidade. Os signos são concretos, exteriores ao espaço psíquico. Não seguem o caminho das identificações, que resultam de experiências emocionais com objetos significativos e que, uma vez simbolizadas, são integradas e dão uma sustentação "interna" ao eu. Por isso mesmo, o efeito dessa construção é de curta duração. O signo é efêmero como pegadas na areia da praia; esfuma-se como a fumaça que sobe da fogueira enquanto há fogo. Isso obriga o sujeito a recorrer continuamente a comportamentos cuja função é construir e dar sustentação à identidade "de fora para dentro", funcionando como prótese.

O ato de beber de jovens adolescentes ilustra essa ideia. Nessa fase, com a identidade em crise, a instituição do "sair para beber" salva o adolescente do horror de ainda não "ser um adulto". Como sabemos, essa condição depende de conquistas reais no mundo adulto, de experiências emocionais significativas que originam novas identificações. Enquanto isso não é possível – e talvez, para alguns adolescentes, nunca venha a ser – "sair para beber" funciona como signo de vida sexual ativa, autonomia, emancipação e de ser "cool". Além disso, é uma forma de inserção social. Percebe-se que o ato de beber é absolutamente necessário porque afirma coisas sobre o eu, e porque a cerveja tem o valor de emblema narcísico. "Sair para beber" é a primeira instituição – e em alguns casos, a única – que acolhe o jovem neste momento da nossa civilização em que as demais estão em crise, e não têm lastro para ajudá-lo a construir um projeto de vida. Naturalmente, a bebida-álcool também é uma substância psicoativa e pode ser usada como ansiolítico ou antidepressivo. Por isso, o ato de beber pode se tornar compulsivo quando é necessário para afirmar algo sobre a identidade, enquanto, paralelamente, se desenvolve uma relação de adição ao álcool.

A compulsão a malhar também entra nesta categoria dupla (adição e compulsão). Uma nova instituição, a "Academia de ginástica", pode ser a única a prover o sujeito dos emblemas narcísicos de que precisa para viver – o corpo "sarado". O exercício em si libera endorfinas que funcionam como antidepressivos; mas o corpo trabalhado com esforço, persistência e dedicação – é um verdadeiro "projeto de vida"! – afirma e confirma o valor do eu. Aliás, muitas vezes a própria grife da academia pode valer como emblema narcísico. Quando, por alguma razão, não podem frequentar a academia, os signos do amor próprio se esfumam – racionalizam dizendo que se sentem "feios" e "se deprimem". É como podem expressar o sentimento de claudicação da identidade. Para alguns o valor antidepressivo pode ser mais importante, para outros será a dimensão de afirmação de uma identidade valorizada, mas frequentemente adição e compulsão se potencializam mutuamente.

Enquanto boa parte das grandes instituições está em crise, a "Sociedade de Consumo" parece ser a macroinstituição mais sólida do mundo contemporâneo. Sua lógica atravessa e "tinge" boa parte das dimensões da nossa existência. Como qualquer instituição, promove a articulação entre a lógica social inconsciente, que determina a produção de hierarquia social, e a individual, também inconsciente e ligada às necessidades narcísicas, como mostra o exemplo da paciente que apresentava uma compulsão a comprar roupas de grife. Quanto mais se consome, mais a sociedade de consumo ganha força e mais ela tem condições de se encarregar de uma função importantíssima: o alívio (sempre temporário) do desamparo identitário ligado à miséria simbólica. Por esta razão, muitas das críticas ao consumismo de cunho superegoico são inócuas: não reconhecem a "dimensão de salvação pelo objeto" (a bela expressão é de Baudrillard).

Finalizo retomando a distinção entre formas de ser e de sofrer predominantemente neuróticas e não neuróticas, que podem ser referidas, respectivamente, à rigidez e à crise das instituições ("micro" e "macro"). A importância dessa distinção reside, do meu ponto de vista, em suas implicações clínicas. No primeiro caso, o analista trabalharia no sentido de relativizar os sentidos já dados, que parecem naturais e inquestionáveis; o fazer clínico segue o assim chamado modelo clássico, o modelo do sonho tal como foi desenvolvido na primeira tópica. No segundo modelo – que se articula e se dialetiza com o primeiro –, o trabalho analítico visaria tecer com, "cotecer", algum sentido onde ainda não há. O modelo do play, entendido como brincar simbolizante, permite tomar em consideração as necessidades específicas da clínica do trauma, antecipada por Freud em Além do princípio do prazer (1920/2010). Neste segundo modelo, a retomada do processo de subjetivação – de transformação de traços pré-psíquicos em material psíquico – depende de um analista implicado não apenas como intérprete, mas também como outro-sujeito.

 

Referências

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Endereço para correspondência
MARION MINERBO
Rua Alcides Pertiga, 78
05413-100 – São Paulo – SP
tel.: 11 3898-0074
E-mail: marion.minerbo@terra.com.br

Recebido: 02/10/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Membro efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.