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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

É possível uma existência sem excesso?

 

Is it possible to have an existence without excess?

 

 

Jassanan Amoroso Dias Pastore*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto trata do excesso no contexto da paixão, a partir da hybris e do pathos dos gregos antigos até chegar à razão do Iluminismo e à Psicanálise.

Palavras-chave: Excesso, Paixão, Pathos, Hybris, Trágico, Pulsão, Razão.


ABSTRACT

This text addresses the excess in the context of passion, starting with the hybris and the pathos of the ancient Greek and arriving at the Enlightenment racionality and at the Psychoanalysis.

Keywords: Excess, Passion, Pathos, Hybris, Tragic, Drive, Racionality.


 

 

Tive todo o cuidado em não ridicularizar
as paixões humanas, nem lamentá-las
ou detestá-las, mas compreendê-las
.

Spinoza, Tratado político, 2011.

O homem é um ser passional. O homem freudiano é um ser pulsional, é um ser de desejo.

Freud enuncia que o homem se define pelo conflito entre o desejo e a defesa contra o desejo, e que esse conflito é provocado pela existência de objetos privilegiados do desejo, a saber, as figuras parentais. A esse respeito Renato Mezan nos diz que "não são, pois, quaisquer desejos que fazem do homem homem, mas uma constelação, precisa e insubstituível, que organiza esses desejos como desejo de incesto e parricídio: em termos mais simples, o que torna o homem humano é o complexo de Édipo" (1988, p. 69).

O excesso, a hybris, já corria nas veias dos antigos gregos e a paixão era uma fonte de hybris. O pré-socrático Zenão de Eleia já havia definido a paixão como uma "pulsão excessiva", ermè pléonazousa (Lebrun, 1986, p. 25).

A espécie humana, para os gregos, tinha uma força anímica semelhante à do fogo, conforme o comentário de F. Nietzsche, no texto "O que devo aos antigos", em que denomina o íntimo do grego antigo como "matéria explosiva" (Nietzsche, 2010, p. 103). Assim, o homem era originariamente desmesurado e a sapiência da medida cabia aos deuses.

Essa chama de calor e entusiasmo que aquece nossa alma, segundo Freud, comporta uma ambiguidade: pode aquecer e, também, incendiar. Como o deus Dioniso, é criação e destruição. É pulsão, explosão vital, embriaguez. Porém, o conceito freudiano de desejo não é tão só um desejo de concupiscência ou cobiça pulsionais, mas um desejo de aspiração. Ao se referir à experiência de satisfação, Freud elabora o conceito de desejo ligado ao estado de precariedade do homem ao nascer que o coloca na dependência do outro, diferentemente dos animais.

A ideia de que podemos definir o homo como dotado do atributo sapiens, isto é, como um ser razoável e sábio, é, sem dúvida, uma ideia pouco razoável e pouco sábia, ironiza Edgar Morin. O autor define que ser homo implica ser demens, ou seja:

O homem manifesta uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; ele carrega consigo uma fonte permanente de delírio; ele crê na virtude de sacrifícios sangrentos; ele dá corpo, existência e poder a mitos e deuses da sua imaginação. Há no ser humano uma fonte permanente de hybris, a desmesura dos gregos. (Morin, 2011, p. 7)

A hybris pode ser traduzida como violência, impetuosidade, orgulho, arrogância e está atrelada também ao sentido de aner, que indica o excesso na esfera da excelência, do homem virtuoso, da pureza, da busca de perfeição etc.

Antes do pensamento filosófico se instalar na Grécia, as ações eram tratadas pelos gregos de modo que elas pudessem ser expressas com moderação e na justa medida, em todas as circunstâncias da vida, pois visavam a se transformar em virtude. Assim, na tentativa de instauração da harmonia entre os homens, os códigos da justiça da antiga Hélade preconizavam que todo grego devia seguir rigorosamente a disciplina ética das regras do deus Apolo: "Nada em excesso" e "Conhece-te a ti mesmo" que significam "reconhece que não és um deus" (Burkert, 1993, p. 294), inscritas no pórtico de Delfos.

Essa idealidade olímpica da existência, apresentada nas epopeias homéricas, deveria proporcionar a estabilidade e a segurança de um mundo sustentado pelo apego aos aspectos ordenados da natureza, perante os quais se passaria a viver em estado de respeitabilidade e harmonia. A relação intrínseca entre a beleza plástica e a harmonia do ânimo estava entranhada na sabedoria de vida legada por Homero ao antigo grego, em que os deuses olímpicos tinham o poder da regulação, da medida.

Porém, na tragédia grega, que se origina do culto ao deus Dioniso, o deus do excesso, encontraremos a multidão enfeitiçada pelo sofrimento e pela morte do herói trágico causados pela sua hybris, com a consequente hamartia, o erro, a falha trágica, mas não moral. Para Aristóteles (1966), a elevação dionisíaca é capaz de provocar no público, por meio da empatia, a catarse dos sentimentos de terror e compaixão diante da reviravolta, da felicidade para o infortúnio, no destino do herói.

Os gregos antigos tinham uma concepção de natureza humana diversa da moderna. Durante séculos, o homem julgou que o universo era regido por um princípio divino e que os deuses o faziam sofrer para lhe ensinar a não se tomar por seu igual. A experiência da hybris, isto é, da desmedida do homem em suas ações, correspondia ao seu desejo entusiasta e furioso de querer se igualar aos deuses; de transgredir o limite que separa o humano do divino, ou seja, de transgredir a condição finita do homem. Assim, a hybris era uma afronta aos deuses e, portanto, uma ofensa religiosa.

Os deuses gregos, por serem dotados de características humanas e por estarem inseridos no pathos, eram temperamentais e, portanto, enlouqueciam, se vingavam, castigavam e tratavam os mortais como joguetes. O destino dos homens estava nas mãos apaixonadas desses deuses que, conforme seu estado de ânimo, os atiravam de um lado para o outro.

A reflexão sobre a paixão nos remete, portanto, ao pathos dos gregos que denuncia a existência do homem como um ser trágico, sofredor e mortal. Os termos gregos pathein e pathos dão origem, no latim, a passio, raiz da palavra paixão em português.

Segundo Nicole Loraux, em seu texto "A tragédia grega e o humano", o substantivo pathos deriva do infinitivo pathein, o padecer, aquilo que no teatro grego "se enuncia como lei da condição mortal" (1992, p. 27). Assim, paixão, a partir de sua origem grega, significa experimentar o efeito de uma ação. Em tal acepção, o sentido de paixão se aproxima do que se entende por estar passivo e se opõe, portanto, à noção de agente como realizador do ato.

Loraux ainda nos lembra de que pathos é, também, associado à aquisição de aprendizagem por meio da experiência de dor, conforme o adágio páthei máthos de Ésquilo. A autora explicita que pathos é:

o que se sofre, o sofrimento, mas também a experiência que, para os humanos, se adquire somente na dor. Pronunciada, a palavra páthos difere apenas por uma letra de máthos, nome do conhecimento adquirido, e, explorando essa pequena diferença, Ésquilo formou o adágio páthei máthos (Agamêmnon, 177; cf. 249-50), que é a quintessência do trágico. "No sofrimento, o conhecimento", ou ainda: "experiência dá sapiência". É por ter sofrido que se compreende [...]. (Loraux, 1992, p. 27)

Ser pático, portanto, significa passar por uma vivência de ser impactado, ou sofrer o impacto de fortes emoções, o que, na tragédia, segundo Aristóteles, deveria ter como efeito a aquisição de uma aprendizagem por meio do sofrimento despertado pela identificação com o herói. Essa condição trágica fundamental coloca o homem à mercê das piores atrocidades ora como agente, ora como vítima. Assim, a tragédia exerceu um papel fundamental na construção da ética dos cidadãos gregos, na medida em que propiciava, pela via da retórica, a revelação e a perlaboração das paixões.

O homem trágico comporta uma lógica contrária à verdade filosófica, pois não apresenta um corte tão nítido entre o falso e o verdadeiro. É uma lógica montada sobre discursos duplos que se opõem e lutam entre si, sem se destruírem mutuamente. As contradições e os conflitos são passíveis somente de sustentação, pois jamais são suprimidos. Esse efeito duplo decorre do fato de a tragédia colocar em cena as paixões que dividem e dilaceram o homem. Essa lógica expressa no desenvolvimento das ações da tragédia levou Freud, já nos primórdios de sua obra, no célebre texto Interpretação dos sonhos, a estabelecer afinidades entre o processo da tragédia grega e o trabalho da psicanálise:

O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e o drama de Sófocles que traz o seu nome [...] a ação da peça consiste em nada mais do que o processo de revelar, com pausas engenhosas e sensações sempre crescentes, um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanálise. (Freud, 1976a, p. 277)

A clínica psicanalítica, com seu método de tratamento, veio possibilitar o resgate, por meio da passagem da catarse à palavra e por meio de um setting individual, da experiência da cena trágica oriunda, agora, do estrangeiro de nós mesmos, desse Outro que nos habita e nos faz agente de nossas paixões. Esse estrangeiro já estava presente na tragédia grega na figura de Dioniso, o deus estrangeiro.

Desde os tragediógrafos e poetas da Grécia antiga, passando pelos filósofos trágicos, como Lucrécio, Schopenhauer, Nietzsche, e também pelos autores de ficção, as paixões humanas foram examinadas a fundo. "Onde encontrar um estudo mais exato do ciúme que no Otelo, da loucura que no Quixote, da ambição que em Balzac e Stendhal?" nos diz Mezan (2005, p. 133). Freud, porém, vai além: ao conceber a psique como "campo de forças (metapsicologia), ao descrever a gênese dessas formas (teoria das pulsões) e as suas resultantes (quadros clínicos), tornou possível a intervenção com conhecimento de causa no universo mental/emocional (a técnica psicanalítica)", afirma Mezan (2005, p. 133).

A tragédia pressupõe a transcendência, no sentido de sustentação do conflito, sabendo-o insuperável. Essa noção de conflito é incorporada por Freud que considera não só a vida intrapsíquica como também a vida coletiva, por princípio, conflituosa e das quais não conseguimos erradicar as contradições e os polemos.

Em Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud retoma a fábula dos porcos-espinhos de Arthur Schopenhauer e nos diz:

De acordo com o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo.

Os dados da psicanálise mostram que quase toda relação afetiva íntima de certa duração entre duas pessoas – casamento, amizade, relações entre pais e filhos – contém um depósito sedimentar de sentimentos de aversão e hostilidade, que só escapa à percepção em decorrência do recalque. (Freud, 1976b, p. 56)

Isso me faz evocar um texto mais tardio, O mal-estar na civilização, em que Freud afirmará que "o desejo de que o homem 'seja feliz' não se acha incluído no plano da 'Criação'" (1976c, p. 95), pois significaria a superação das contradições, ou seja, a aquisição de segurança, a ausência de perigos, todas ilusórias, o que representaria o eterno repouso, a paz perpétua – pulsão de morte. O discurso freudiano institui as formas pelas quais o sujeito insiste em afirmar o seu desejo contra a pulsão de morte que o habita.

Joel Birman também ressalta a não existência de "um projeto genérico de felicidade, isto é, que seja amplo, geral e irrestrito" (2005, p. 94), como acreditava o pensamento iluminista do século XVIII,

pois aquela estaria na dependência estrita da singularidade de cada economia psíquica. Seria isso, enfim, a marca inconfundível da poética trágica presente no discurso freudiano. Essa foi retomada agora numa outra retórica conceitual, certamente, mas que relançou a intuição inaugural lançada na psicoterapia da histeria. (Birman, 2005, p. 94)

Se a psicanálise convida e conduz o sujeito para a experiência e o convívio com o trágico, isso "implica não apenas a desdramatização da existência, já que a neurose seria a encarnação do drama, mas também a construção de instrumentos para lidar com a tragicidade inerente à nossa condição antropológica" (Birman, 2005, p. 95).

É no contexto da cultura que o mal-estar do sujeito se impõe como estrutural, pois aqui as oposições e os impasses entre a pulsão e a cultura atingem o seu cume. Freud destaca a posição estratégica do conceito de desamparo no psiquismo e indica que, em face do desamparo do sujeito na cultura, não existe cura possível, somente a perspectiva de que cada um constitua um destino subjetivo, erótico e sublimatório, capaz de lidar com os conflitos insuperáveis. Ou seja, resta a possibilidade de o sujeito sustentar e mobilizar seus desejos de maneira a retirar do real, das relações com os outros a efetividade e a regulação singular de seu prazer.

Assim, a psicanálise, na modernidade, veio a se ocupar do sujeito trágico, que é constituído e está inserido no pathos – paixão, sofrimento, passividade –, ou seja, um sujeito que é afetado pelo outro, estado a partir do qual se sofre ou se alegra. Esse sujeito que não é nem racional nem agente e senhor de suas ações, encontrou a sua mais sublime representação na tragédia grega. O que se figurava na tragédia era o pathos, que desencadeava algo na dimensão do excesso, da desmesura – hybris –, sem que o eu pudesse se assenhorear desse acontecimento. Para os trágicos gregos, o sofrimento psíquico era o castigo dos deuses irritados com a hybris dos homens, que se encontravam aprisionados numa impossibilidade de escolha individual frente aos conflitos impostos pelo destino dos deuses.

O pathos humano designa, portanto, qualquer emoção da alma, despertada pela presença ou imagem do outro, sentimento esse inerente ao próprio sentido da paixão, o que faz dela uma relação intersubjetiva, contrariamente ao estado de apatia. Assim, pathos é sinal de que o sujeito é impactado pelo outro, do qual vive em constante dependência. O ser humano necessita do Outro para se constituir como sujeito, se desenvolver e amadurecer.

Assim, a dimensão trágica da experiência humana diz respeito ao pathos, ou seja, à contingência do homem ser afetado, constantemente, pelas circunstâncias no decorrer da vida, sem ter o preparo suficiente para enfrentar suas repercussões em seu corpo e em sua subjetividade, a não ser por meio de um árduo e frágil trabalho psíquico.

O inconsciente freudiano é manifestação do pathos e tem sua origem na violência primordial. Como já foi dito, pathos significa, também, aquilo que é pático, vivido, e que pode se tornar uma experiência interna elaborativa, e não passiva, por meio da presença de um outro, o analista, que toque na modulação dos afetos. Trata-se de o psicanalista resgatar e escutar o pathos, como paixão, de cada sujeito, na sua singularidade, para que o paciente possa transformar seu sofrimento em experiência criativa. Talvez daí a extensão do termo pathos para o sentido do que hoje denominamos de psíquico. Essa experiência compartilhada entre o sujeito e o analista, por meio da transferência, é a possibilidade de se pensar aquilo que ainda não havia sido pensado. É somente a partir da mediação e confrontação com o outro, através de um jogo de espelhos, que o sujeito adquire uma autoapreensão de si mesmo.

Nietzsche, diferentemente de Aristóteles, afirma que a tragédia não é purgação, mas sim um tônico que bebem somente aqueles que têm um forte caráter. Uma das provas da consciência de poder no homem é o reconhecimento, sem nenhuma fé para ampará-lo, do caráter terrorífico da existência. Ao definir o trágico, como um pensamento capaz de acolher a criação e a destruição, a vida e a morte e a alternância entre essas oposições, Nietzsche contrapõe o princípio apolíneo ao princípio dionisíaco. Neste registro, cabe lembrar Camille Paglia ao considerar que, na Grécia antiga, "o estilo clássico é sempre uma derrota de Dioniso [...]. A grande arte clássica é simples, serena, equilibrada. Mas, Dioniso, amarrado por Apolo, sempre escapa e volta para vingar-se" (1992, p. 101).

Em Nietzsche temos a exaltação da paixão ao considerar que "o temor dos sentidos, dos desejos e das paixões, quando ele chega a desaconselhá-los" (citado por Abbagnano, 2007, p. 862), é sintoma de fraqueza. O filósofo toma a paixão como "a forma suprema de saúde" porque nela "a coordenação dos sistemas internos e seu trabalho a serviço de um mesmo fim são mais bem realizados; o que é mais ou menos a definição de saúde" (citado por Abbagnano, 2007, p. 862). Assim, sem pretender extirpar as paixões, Nietzsche propõe um Apolo capaz de adquirir certo domínio sobre Dioniso.

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche explicita o papel que a arte desempenha na estruturação e na valorização da experiência humana, ao fazer uma distinção entre duas disposições fundamentais do ser humano: a apolínea e a dionisíaca.

Em linhas gerais, podemos dizer que o princípio dionisíaco se refere:

Às forças anárquicas e indiferenciadas que compõem o fundo último da realidade, vistas como intensidades carentes de individualização que se dão como fluxo em tumulto, desordem e diferenciação permanente. No ser humano, essas intensidades (ou forças) são fonte de êxtase extremo, embriaguez e dispersão, na qual prazer e dor se misturam. Vividas sem a mediação de aparências, levam à desintegração. (Boeira, 2004, pp. 12-13)

Ao passo que o princípio apolíneo é:

A fonte de individuação e imposição de limites à potência indiferenciada do dionisíaco, uma astúcia artística que a arte grega mobilizava para submeter a diversidade anárquica da realidade e da experiência humana a uma forma – a uma aparência e dissimulação. Seu emprego permite a contemplação, a aceitação e a preservação das intensidades inscritas nas vivências dionisíacas, que, graças a essa transfiguração, tornam-se humanamente suportáveis. (Boeira, 2004, p. 13)

Nesse sentido, os dois princípios são tanto modos de conhecimento da realidade como também modos de expressar as forças humanas primárias.

O reconhecimento do princípio dionisíaco, impulso criativo fundamental, requer a aceitação do sofrimento, da particularidade, do finito, do impreciso, da limitação, do mutável, de tudo enfim que acompanha a intensidade, o êxtase, o prazer, a plenitude, a integração com a realidade etc.

A negação do princípio dionisíaco representa a negação da vida como ela é, conforme nos diz Boeira:

Ao negarmos o dionisíaco negamos a realidade tal como ela é, com seus rigores e benesses. O princípio apolíneo, ao sujeitar o dionisíaco a uma forma (artística), sem, contudo, negá-lo ou depreciá-lo, torna mas devem se manter reciprocamente nos limites do ideal da justa medida, a escapar sempre, abeirada pela falta ou pelo excesso. Por isso, diz Nietzsche, se subtrairmos a disputa da vida grega, o resultado é a crueldade selvagem, o prazer destruidor, como ocorreu com Atenas e Esparta que ao chegarem ao templo da Vitória, acabaram por provocar a própria queda por atos de desmedida.

 

Paixão e razão

Os gregos antigos não inventaram a palavra razão. O logos de Heráclito (1996) não corresponde, exatamente, à razão concebida pelo mundo moderno. A ideia de logos identificado à razão soberana é paradigmática do pensamento moderno.

Na cultura da sociedade ocidental, a palavra razão se origina de duas fontes: da palavra latina ratio e da grega logos. Esses dois substantivos derivam de verbos que têm um sentido parecido. Logos vem do verbo legein, que quer dizer contar, reunir, juntar, calcular. Ratio vem de reor, que quer dizer contar, reunir, medir, juntar, separar, calcular. Por isso logos, ratio ou razão significam pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de modo compreensível para outros.

No decorrer dos tempos, ocorrem modificações, na forma de se viver e de se dar destinações às paixões, impregnadas pelas ideologias que perpassam cada época e fazem com que cada cultura construa seu modo próprio de se apropriar das paixões.

É sabido que as paixões sempre foram o calcanhar de Aquiles da tradição filosófica que considera a razão como o elemento, por excelência, da condição humana. Na acepção filosófica moderna, a paixão passou a ser o outro da razão. A paixão supõe o exagero de uma inclinação que se instala à revelia da razão e cancela sua ordenação sobre a conduta, para ocupar o lugar da razão no centro das iniciativas. No âmbito dessa definição correspondem as paixões doentias e inimigas da razão. Assim, Kant destaca o sentido patológico das paixões, pois as situa como doenças da alma ou perturbações do espírito, pois são vistas como a antirrazão por excelência. Nesse registro, os sentidos associados à paixão são, concomitantemente, perdição, loucura, sacrifício, queda, vertigem etc. Expulsas da razão, as paixões estariam, terminantemente, excluídas da experiência cognitiva.

O racionalismo moderno, contrário às forças pulsionais do ser humano, aposta na fé inabalável da razão. As paixões são, portanto, fatores opositores e inibidores dos processos racionais. No entanto, isso não fez com que os filósofos desprezassem as paixões. Ao contrário, eles sabiam da força das paixões e muitos deles, como Schopenhauer e Nietzsche, dentre outros, as incluíram em seus sistemas.

O filósofo Erasmo de Rotterdam, em Elogio da loucura, considera as paixões indispensáveis à vida, pois "sem as paixões não há humanidade possível" (Rouanet, 1995, p. 464). F. Hegel chega a declarar que "nada de grande foi realizado, nem pode ser realizado sem paixão" (citado por Abbagnano, 2007, p. 862); que "a paixão não é boa nem má; sua forma só exprime que um sujeito pôs num único conteúdo todo o interesse vivo de seu espírito, de seu talento, de seu caráter, de seu prazer", e enfatiza que "não passa de moralidade morta, na maioria das vezes hipócrita, a que investe contra a forma de paixão como tal" (citado por Abbagnano, 2007, p. 862).

A razão do Iluminismo se apresenta de uma forma ambivalente. De um lado, temos o espírito crítico, autocrítico e cético, ligado à racionalidade. Assim, ser racional é admitir os limites da racionalidade. De outro, a racionalização que conduz à deusa Razão. A Razão do racionalismo é autossuficiente e providencial, ou seja, é a razão que guia nossos passos!

A racionalidade e a racionalização, embora oriundas da mesma origem, ou seja, da necessidade de se ter uma concepção coerente, justificada por uma argumentação fundada na indução e na dedução, comportam distinções fundamentais. A racionalidade pesquisa e verifica a adequação entre o discurso e o objeto do discurso, ao passo que a racionalização se fecha em sua lógica. A racionalidade, em contrapartida, é aberta, pois aceita que suas próprias teorias possam ser superadas por argumentos ou acontecimentos que as contradigam.

O processo de racionalização, ao partir de um postulado ou de uma constatação limitada, levanta consequências lógicas absolutas, perdendo-se, nesse processo, o suporte empírico. Assim, os dogmas racionalizadores não se relacionam com as experiências ou acontecimentos do mundo real, mas com as palavras ou teorias sacralizadas.

A racionalização é considerada, pela psicanálise, como um mecanismo de defesa, como um delírio. A clínica psicanalítica desnuda a angústia emergente em face do abandono das nossas racionalizações. Mas, o que mantém as racionalizações? O repúdio a um aspecto para o qual "as pessoas não atentam, quando estão ainda tentando engolir a indigesta pulsão de morte", nos alerta Fabio Herrmann (2005, p. 13).

Em meio à transição do século XVIII para o XIX, Schopenhauer é, entre os filósofos, aquele que inaugura uma problematização das tentativas de se interpretar metafisicamente o mundo de maneira otimista – Leibniz –, e também das concepções dos idealistas românticos alemães – Fichte, Schelling e Hegel, sucessores de Kant – que, de modo geral, ao seguirem a tradição, postulavam um princípio racional absoluto do mundo. Em sua filosofia, Schopenhauer elabora um pensamento que situa a essência do homem não na consciência e na razão, mas na Vontade, considerada por ele um impulso irracional, cego e sem fundamento, que move o mundo.

Schopenhauer, cujo pensamento influenciará não só Nietzsche como também Freud, faz duras críticas aos idealistas alemães de sua época, que apostavam na fé inabalável da razão, pois defenderá a subordinação da razão à intuição e, sobretudo, da representação à Vontade. Além disso, Schopenhauer critica severamente todos os filósofos anteriores pelo "velho erro fundamental" de postular o ser verdadeiro do homem no conhecimento consciente, com "a intenção de representar o homem como o mais distante possível do animal" (2009, p. 895).

Podemos dizer que, de maneira semelhante, cem anos depois, na transição do século XIX, marcado pelo otimismo teórico do racionalismo e do primado da consciência, para o século XX, caracterizado pela crise da razão, Freud funda a psicanálise, uma nova ciência sobre a alma humana que tem como fundamentos o inconsciente e as pulsões.

Assim, ambos os autores se inscrevem numa linha de pensamento que leva em conta os impulsos inconscientes na gênese da ação humana, a preponderância da sexualidade na psique e a força da corporeidade na gênese das representações.

Abbagnano considera que parece prevalecer na cultura contemporânea um ponto de vista equidistante entre a condenação e a exaltação da paixão. O autor cita John Dewey ao expressar que "a fase emocional, apaixonada da ação não pode nem deve ser eliminada em prol de uma razão exangue. Mais paixões, não menos, é a resposta" (citado por Abbagnano, 2007, p. 862). Dewey acrescenta que "a racionalidade não é a força a ser invocada contra impulsos e hábitos, mas sim a conquista de uma harmonia que atue entre diferentes desejos" (citado por Abbagnano, 2007, p. 862).

No entanto, a paixão, jogo caótico que escraviza o psíquico à pura necessidade, não constitui uma problemática apenas para a filosofia. Nossa sexualidade, desviante do natural, está enraizada nas fantasias originárias do mundo pulsional perverso-polimorfo. Ao desviar dos padrões instintivos, nos abre caminhos desconhecidos. Assim, de forma geral, as sociedades, de um modo ou de outro, tentam regular e controlar as paixões. Seus excessos levam o homem a um estado de desmesura, posição geradora de mal-estar no homem e na cultura.

Em sua obra, Freud evoca os deuses Logos e Ananke, em diversos momentos. Em O problema econômico do masoquismo, Freud comenta sobre sua concordância com o poeta Multatuli que substituiu a Moira, deusa grega do Destino, pelo par indissolúvel Logos e Ananke, "razão, necessidade" (Freud, 1976d, p. 210). Ao fazer essa articulação, Freud pretende relativizar ambas as figuras e toma o cuidado de não reduzir, na investigação dos fenômenos inconscientes, qualquer um dos dois termos desse par ao outro.

Esse propósito é ressaltado por Freud no texto O futuro de uma ilusão, ao se referir aos desejos inconscientes: "Nosso Deus, Logos, atenderá todos esses desejos que a natureza a nós externa permita", ou "na medida em que a realidade externa, Ananke, permita" (Freud, 1976e, p. 68). Ou, mais adiante, ao dizer que "O nosso deus, Logos, talvez, não seja um deus muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena parte do que seus predecessores realizaram [...]" (Freud, 1976e, p. 69). Ou seja, Freud confere, neste momento, um lugar de primazia à Ananke, lugar esse que antes fora ocupado pela razão. Mas, a referência freudiana a estas figuras se apresenta, ao longo de toda sua obra, com as mais diversas roupagens. Assim, Ananke vai ser sinônimo de realidade exterior, de leis da natureza, de necessidade da vida e também será articulada com a morte. Logos, por sua vez, vai remeter ao próprio processo analítico que liga a techne e a ratio no sentido de captar a Ananke pela diferenciação (Scheidung). Um Logos do desejo que privilegia o singular, a verdade do sujeito.

Para Freud, o campo da representação se encontra sob a égide do deus Logos, e a esfera pulsional sob a égide do deus Ananke. Assim, se por um lado, o corpo pulsional é nosso fado, aquilo que nos é dado a viver na nossa contingência, por outro, o corpo simbólico nos possibilita a criação de novos destinos. Ou seja, se Freud diz que o corpo é destino, ao mesmo tempo, ele coloca uma outra situação, isto é, a saída do destino referido à anatomia. Há, porém, uma força constante que não pode ser redutível à cadeia simbólica, que escapa à representação. Desta forma, faz-se necessária uma gestão interminável e infinita do conflito para que o sujeito possa atingir destinos pulsionais eróticos e sublimatórios.

Para terminar, faço minhas as palavras de Herrmann:

Se há cem anos parecia que a diversidade era perversa e a unidade sã, atualmente, havendo admitido que uma perversão do real, uma versão restritiva, habita o íntimo de nossa civilização, a ideia mesma de organização unificadora que se contrapõe à de dispersão e fragmentação deixou, no mínimo, de opor com clareza normal e patológico. (Herrmann, 2005, p. 13)

O autor complementa que "convém não esquecer que politicamente correto é tão-só a denominação hipócrita da hipocrisia" (Herrmann, 2005, p. 13). Assim, não podemos esperar que o homem exista como manda o figurino.

 

Referências

Abbagnano, N. (2007). Dicionário da filosofia. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Aristóteles. (1966). Poética. Rio de Janeiro/Porto Alegre: Ed. Globo.         [ Links ]

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Boeira, N. (2004). Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
JASSANAN AMOROSO DIAS PASTORE
Rua Capote Valente, 432/82
05409-001 – São Paulo – SP
tel.: 11 3081-4349
E-mail: jassanan@uol.com.br

Recebido: 15/10/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Psicanalista. Membro efetivo e professora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Editora da Revista ide (SBPSP), 2005-2008. Organizadora e tradutora da edição brasileira do livro Da neurologia à psicanálise: desenhos e diagramas da mente por Sigmund Freud, Ed. Iluminuras, 2008. Coordenadora na interface com a psicanálise da Revista Ciência & Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Mestra pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).