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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

O que será que me dá?

 

What is happening to me?

 

 

Fátima Cristina Monteiro de Oliveira*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho objetiva compreender a construção da subjetividade humana em seus momentos mais iniciais, como derivada dos aportes e traduções advindas do outro ao corpo da criança. Busca, assim, pensar instrumentos metapsicológicos que possam embasar a compreensão da clínica contemporânea, de modo a fazer face à demanda que se nos apresenta com a marca do excesso pulsional, da ausência de subjetivação e da carência simbólica.

Palavras-chave: Corpo, Subjetividade, Psicanálise, Pulsão.


ABSTRACT

This paper aims to consider the construction of human subjectivity in its earliest moments, as derived from the contributions coming from the other translations and the child's body. It search as well metapsychological instruments on which to base an understanding of contemporary clinic in order to meet the demand presented to us with the brand over the drives, the absence of subjectivity and lack of symbolic.

Keywords: Body, Subjectivity, Psychoanalysis, Drive.


 

 

Introdução ou: como decifrar pictogramas?

Como decifrar pictogramas de há dez mil anos
se nem sei decifrar
minha escrita interior?...
Interrogo signos dúbios
e suas variações caleidoscópicas
A cada segundo de observação
.

Carlos Drummond de Andrade (1994, p. 29)

Ao receber a carta-convite da Revista ide, sobre o tema "Excesso", veio-me à mente uma música do Chico Buarque, O que será (À flor da pele). Pareceu-me uma bela imagem para representar aquilo que em nós mesmos é demasiado. Mas o excesso é demasia de quê? A desmesura é a pulsão, penso eu. A música fala daquilo que transborda no humano: nossas intensidades sempre tão carentes de ligação. E deste modo, perpassados por esse desmando, como decifrar pictogramas, os nossos próprios e os de nossos pacientes?

Este trabalho tem o objetivo de pensar instrumentos que possam auxiliar na compreensão da clínica contemporânea, de modo a fazer face a uma demanda que se nos apresenta com a marca da pulsão desligada, da ausência de subjetivação e de uma carência simbólica. Vivemos na atualidade uma cultura do aceleramento, da imagem e do narcisismo.

Penso que retomar teoricamente os movimentos constitutivos da subjetividade humana, repassar os ordenadores dos primeiríssimos tempos de vida, pode nos equipar para a compreensão das novas subjetividades que nos chegam solicitando análise, em que as falhas de simbolização, a incapacidade de representação psíquica, se refletem em somatizações, adicções, no pânico, demandas de um pulsional por vezes aquém do recalque, e onde nosso trabalho é muito diferente daquele de encontrar o inconsciente recalcado.

O espaço analítico será então de construção, de re-construção, campo laborado a cada sessão, a cada palavra, a cada fala viva, para a apreensão de um pulsional puro e atacante. O psiquismo é autointerpretativo, as fantasias já são interpretações, e, desse modo, a experiência analítica empreende movimentos que a mente já tenta desenvolver desde seus momentos mais primitivos.

Os destinos da pulsão são destinos da estruturação psíquica, e através de processos simbolizantes que permitam sua ligação constitui-se um entramado que é suporte da pulsão de vida. O traumático é, portanto, esse interno-externo que no momento de entrada ao psiquismo, escapou à simbolização, permanecendo como não traduzido.

Podemos assim, pensar no surgimento de novas ligações no espaço analítico. Na análise, o paciente coloca em ato seu fantasma, através de uma encenação. No par analítico, nós analistas, chamados a encenar o teatro do paciente, precisamos trabalhar através da fala transferencial. Longe de adequarmos nossos pacientes a nossas próprias fantasmatizações, trata-se de possibilitar retranscrições, ressignificações ao material que advém deles mesmos. É o paciente que faz a construção, pois ele é o sujeito de sua história. Cabe a nós facilitar o enlace do histórico vivencial com as teorias que o paciente fez dele, e a partir daí, possibilitam-se novas ligações.

A linguagem na clínica psicanalítica é o instrumento privilegiado de constituição e atribuição de sentido, e desse modo é ela mesma produtora de subjetivação. A função e o lugar da palavra neste percurso de subjetivação, seja do infante, seja do paciente, é de ser a ferramenta de atribuição de sentidos: instrumentadora da tecedura de uma rede que sustente o ego. A interpretação analítica permite a feitura de ligações, de recomposições àquilo que ataca o sujeito desde dentro. É uma certa qualidade da linguagem, que permite ligar o não ligado, para que este não irrompa desenfreadamente no psiquismo. Esta linguagem acredito ser a da palavra encarnada, viva, capaz de enlaçar afeto e representação, capaz de decifrar pictogramas.

 

O que será que me dá

O que será que me dá,
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá...

Chico Buarque, O que será (À flor da pele)

O que não tem medida nem nunca terá: a pulsão. De objeto contingente, configurada através de signos, sinais, singularidades, a pulsão já traz em si própria a marca de uma impressão que é única daquele ser.

A constituição da subjetividade está ligada à sexualidade e assim necessariamente desde os tempos de sua implantação já há algo da ordem de uma carimbagem, da feitura de uma marca. Uma imagem metafórica: sulcos na terra por onde a água tenderá a correr.

A sexualidade humana é uma sexualidade absolutamente fantasmatizada; isto Freud já intui em 1897, na sua carta a Fliess. Estamos diante de uma subjetividade que se constitui a partir do pulsional, em que "os destinos pulsionais serão também destinos do sujeito psíquico" (Bleichmar, 1993a, p. 203). Pode-se, assim, pensar as neuroses como o desaguadouro de todo um percurso pulsional.

As fantasias são elas próprias modos de dominação da pulsão, de ligação do que está desligado, e, portanto, atacantes. São as fantasias, da ordem de respostas à invasão pulsional. Encenações, estórias, ou crenças que a criança ou o analisando tecem, buscam prender a pulsão a um enredo. Formar uma rede é uma metáfora que subjaz à teoria freudiana desde seus inícios, metáfora de um movimento de tecedura, no qual está implicado o aparelho psíquico e portanto também o processo analítico.

O ego é, primeiramente, e antes de tudo, uma projeção do corpo sobre a psique. Freud (1915/1996a), em Os Instintos e suas vicissitudes, fala da pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático. Nesse texto o estímulo pulsional vem de dentro do corpo, de um órgão, e marca o psiquismo com a exigência de um trabalho. A pulsão é força constante, impossível de ser exaurida, esgotada, ou totalmente consumida. Nosso corpo pulsional é permeado pelos investimentos do Outro, numa dialética que caminha entre o afetar e o ser afetado.

No decorrer de uma análise, os movimentos pulsionais, muitas vezes permeados pela marca do excesso, poderão encontrar novas vias de derivação, através do poder capturante da palavra viva, capaz quiçá de ordenar a pulsão numa trama simbólica, procurando dar-lhe um lugar ou um destino.

 

Da arte de contar estórias, ou a lembrança da vida da gente

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado, assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.

Guimarães Rosa (1988a, p. 82)

O que temos então nas origens? O eu corporal (Freud chama de eu real originário, o estado de relação menos simbolizada com o corpo) e o Outro. É esse Outro que, fazendo frente às necessidades corpóreas da criança, simultaneamente dará à pulsão um destino, uma nomeação e uma articulação, para que essa não permaneça "vagando" pelo aparelho, invadindo-o e assujeitando-o. A função materna é, assim, primordialmente uma função de ligação da pulsão, através dos cuidados que aporta ao corpo e ao psiquismo incipiente da criança.

O excesso pulsional, descarregado inicialmente pelo bebê pela descarga muscular, encontra o outro que o libidiniza, e o converte em pulsão de vida: metábola determinante e fundamental no destino do humano. A libido advinda do Outro, só encontra meios de ligar-se através de investimentos colaterais que partem daquele que narcisiza a criança desde seu próprio ego. Será necessário tecer uma verdadeira rede, um entramado de sustentação, que outorgue ao psiquismo incipiente possibilidade de constituição.

A ação do adulto sobre a criança é, portanto, necessariamente dupla: atendimento às necessidades de seu corpo e ordenação da pulsão, de modo que ao psiquismo seja possibilitada sua função fundamental: a simbolização, possibilidade privilegiada de captura e destino pulsional.

Piera Aulagnier teorizou de modo bastante original os primórdios da relação mãe-bebê, momentos iniciais do psiquismo humano. No belíssimo trabalho intitulado Nascimento de um corpo, origem de uma história, a autora assimila esse momento originário a uma indissociação entre espaço psíquico e espaço somático. Nas origens, ela propõe que "a realidade é autoengedrada pela atividade sensorial" (Aulagnier, 2001, p. 109).

O corpo é sentido como fonte e lugar de prazer (e de sofrimento), e esse prazer está presente no encontro entre o corpo da criança e o da mãe, mas é também resultante do discurso que a mãe mantém sobre o corpo: "Os discursos sobre o seu corpo singular dão a palavra às únicas inscrições e modificações que o indivíduo poderá ler e decodificar, como as marcas visíveis de sua história libidinal que se inscreve e continua a gravitar essa face invisível que é a psique" (Aulagnier, 2001, p. 115).

Há assim, segundo Aulagnier, uma indissociabilidade eu-corpo, indissociabilidade que não é dada, mas é construída a partir das representações com que o eu se pensa. As primeiras representações eu-corpo advêm do outro, cujos desejos, interditos e ações, escapam às exigências daquele que lhe demanda.

No mesmo trabalho, Aulagnier fala da importância do cuidado e da tradução que a mãe dá para o sofrimento do corpo da criança. O sofrimento pode, inclusive, ser a única tentativa de comunicação entre mãe e criança. Aulagnier faz uma sensível observação: "é difícil que uma mãe surda ao sofrimento psíquico saiba escutar o que a criança pede via seu corpo" (2001, p. 139).

Em seu trabalho Os Destinos do Prazer, Piera Aulagnier fala da relação mãe-infans (mãe-criança) como não simétrica, na medida em que a criança é "objeto privilegiado do investimento materno, mas este privilégio não o transforma em objeto exclusivo" (1985, p. 118). Por outro lado, para que o Eu invista seu corpo, este deverá ter sido investido e valorizado pelo eu materno. Tal investimento antecede o nascimento da criança pois inclui sua inserção numa história familiar, história que pré-existia a ela. Para a autora, a relação mãe-filho não espera pelo nascimento para iniciar-se, e, assim, ela propõe o conceito de "corpo imaginado" para essa primeira imagem que a mãe faz do filho, como um corpo unificado para o qual ela se volta libidinalmente.

Para Aulagnier, é indispensável a ação dessa primeira interpretação materna, violência inicial sobre o pequeno humano que ela denomina violência primária, assimilando-a a uma tradução das demandas do bebê (atribuindo-lhe portanto o lugar de desejante), o que, para essa autora, o insere na ordem do humano. Numa bonita assertiva, ela nos propõe que:

Este encontro, fundamental com o futuro psíquico, se apoia e se realiza através do encontro entre o Eu e seus dois objetos mais particulares, que são seu próprio corpo e o eu do outro. (Aulagnier, 1985, p. 99)

Assim, é função primordial da mãe a ação de ligação entre a pulsão e a palavra, através de sua atenção cuidadora: a mãe interpreta o choro, conversa com a criança, canta uma cantiga e fala das dores, das alegrias, das necessidades e do crescimento de seu bebê. Assim se inicia uma história humana.

 

Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz,
que a mim de mim ele oculta
.

Carlos Drummond de Andrade (1994, p. 7)

Em Novos Fundamentos para a Psicanálise, Laplanche, em concordância com Aulagnier, assinala que, ainda que o ser humano seja mitificante, ou automitificante, "o originário do tratamento remete necessariamente a um originário histórico" (1992, p. 59). Donde a história do sujeito psicanalítico tem como origem a história infantil. Laplanche elucida que a psicanálise, na medida certa, adota um ponto de vista histórico, mas propõe que se retome o termo originário, no qual "o originário é algo que transcende o tempo, mas que ao mesmo tempo fica ligado ao tempo" (1992, p. 63).

Para o autor, o próprio aporte da sexualidade adulta à vida infantil se constitui simultaneamente necessário e estruturante, excessivo e traumático: dialética "fundante" da ordem do humano, por ele chamada de sedução generalizada.

Há, portanto, segundo Laplanche, um trauma na própria instalação da sexualidade, devido a um descompasso essencial entre o adulto e a criança: a criança é passiva em relação ao adulto, sexuado e possuidor de um inconsciente que aportará a ela pulsões desejantes, desconhecidas do próprio adulto.

O autor aponta que o problema de abrir-se ao mundo é um falso problema. O problema real seria o de fechar-se, fechar a periferia de um ego, que fosse da ordem de uma circunscrição por si mesma contensora. No mesmo trabalho, Laplanche (1992, p. 104) ressalta a profunda desadaptação do bebê humano, que ele chama de um "estado de desajuda" ou de "insocorro".

Segundo o autor, existe uma criança profundamente desadaptada, cujos comportamentos autoconservativos se deixam desviar, e um "adulto desviante", inclusive em relação a si mesmo, já que possui um inconsciente a que ele mesmo não tem acesso: "O confronto adulto-criança envolve uma relação essencial de atividade-passividade, ligada ao fato inelutável de que o psiquismo dos pais é mais rico que o da criança" (Laplanche, 1992, p. 134).

Deste modo, através dessa sedução originária, chegam à criança aportes verbais e não verbais da ordem de um enigma, que o autor denomina significantes enigmáticos: "o enigma, aquele cujo móvel é inconsciente, é sedução por si mesmo" (Laplanche, 1992, p. 136).

Sílvia Bleichmar, em seu livro A Fundação do Inconsciente, seguindo a proposta teórica de Laplanche, compartilha da ideia de que a mãe que expôs a criança às excitações traumáticas durante os cuidados maternos é a mesma que, por ter seu próprio narcisismo, investe narcisicamente a criança permitindo-lhe constituir o ego. A mãe, atravessada ela mesma pela castração, não se permite um prazer ilimitado em relação à criança. É ela que fornecerá vias de ligação para a energia excessiva e desligada que aporta ao psiquismo incipiente do bebê.

Nesse trabalho, Bleichmar, num belo parágrafo, nos diz que a criança precisa ser pensável, "fantasmatizável" pela mãe:

Ser pensado pelo outro é condição da vida em sua persistência. Ser amado e ser pensado implica um não apoderamento do corpo por parte do outro: o próprio corpo só chega a ser próprio porque alguém generosamente cedeu uma propriedade sobre uma parte de si mesmo que se torna alheia. (Bleichmar, 1993a, p. 4)

A autora chama este processo de "narcisismo transvasante da mãe", havendo do lado desta uma dupla função nesses primeiros tempos de vida: a instalação de um plus de prazer que vai além do autoconservativo, e, simultaneamente, o outorgar de um sentido: primordial função ligadora.

Ressalto aqui a importância da tessitura de uma rede de ligações feita pelo outro, a partir de investimentos colaterais, de modo que se vão tecendo outras vias derivativas: enquanto cuida do corpo do bebê, a mãe canta uma cantiga, conta uma estória, nomeia o que de outro modo ficaria inominável. São investimentos narcísicos, amorosos e, portanto, ligadores, pois vêm do ego materno.

Numa bonita frase, Bleichmar aponta que: "A libido desligada, intrusiva, que penetra, será ligada inicialmente por vias colaterais mediante este narcisismo estruturante que um vínculo amoroso propicia" (1993a, p. 43).

É de fundamental importância a tessitura desta rede de ligações feita pelo outro nestes momentos "fundantes", a partir dos investimentos colaterais proporcionados durante os cuidados maternos. São estes os primeiros níveis de simbolização, que permitem ligar a pulsão, de modo que esta se inclua em redes que a possam conter, redes estas que são da ordem do simbólico. Tal é também o trabalho da análise.

 

Da ilusão propiciada pelo outro ao viver na verdadeira dignidade

Representar é aprender a viver além dos levianos sentimen-
tos na verdadeira dignidade
.

Guimarães Rosa (1988b)

A contribuição da teoria de Winnicott (1975) ao tema aqui abordado está na importância dada por esse autor ao papel do meio ambiente no desenvolvimento da criança. Suas teorizações nos instrumentam para compreender a função da mãe nos primeiríssimos cuidados com o corpo do bebê e as consequências das vicissitudes nesse processo. De suas teorizações extremamente ricas, só conseguiremos deixar aqui um breve esboço. Para esse autor, através do amadurecimento propiciado pelos cuidados maternos surge a capacidade para canalizar o excesso da pulsão dirigindo-o para o brincar, e mais tarde para o trabalho produtivo e as experiências culturais.

Winnicott postula que "no bebê e na criança há uma ELABORAÇÃO IMAGINATIVA de todas as funções corporais" (1990, p. 58). Segundo ele:

A elaboração imaginativa do funcionamento corporal organiza-se em fantasias, que são qualitativamente determinadas pela localização no corpo, mas que são específicas do indivíduo, por causa da hereditariedade e da experiência. (Winnicott, 1990, p. 69)

A questão relacional é levada ao primeiro plano pelo autor, que parte da premissa da existência de uma fusão inicial entre a mãe e o bebê: lactente e cuidado materno são, numa fase de dependência absoluta, indissociáveis. Isto inclui o cuidado paterno que possibilita à mãe a dedicação ao bebê.

Winnicott (1960/1983, p. 44) chamou de holding a esse cuidado em que a mãe "segura" o bebê (física e emocionalmente), bem como lhe propicia uma provisão ambiental que permite a experiência de integração mente-corpo. Segundo o autor, há para o bebê um estado inicialmente não integrado que passa a ser integrado com o auxílio dos cuidados maternos. É possível então, ao bebê, a experiência de possuir um contorno, um corpo que tem uma circunscrição e limites sentidos como seus.

Winnicott, em Desenvolvimento Emocional Primitivo, assinala que uma não integração é inerente ao início da vida. Numa bonita frase, ele nos diz que: "O bebê que não teve uma única pessoa que lhe juntasse os pedaços começa com desvantagem a sua tarefa de auto-integrar-se e talvez nunca o consiga" (1945/2000a, p. 224).

Esses cuidados que o vínculo amoroso propicia, permitem a integração do ego do bebê. Diz Winnicott que a mãe fornece continuidade: "Para a mãe a criança é um ser humano total desde o início, e isto a torna capaz de tolerar a sua falta de integração e o seu tênue sentimento de viver dentro do corpo" (1948/2000b, p. 238).

A mãe que, de outro modo, após esta fusão inicial necessária, não puder se separar do bebê, impede-lhe a aquisição de um espaço vital que é só dele e que lhe cabe ocupar com sua quota de vitabilidade, seu gesto próprio e sua atividade criadora.

Winnicott descreve que a fantasia é mais primária que a realidade e o enriquecimento da fantasia com a realidade está em relação com a experiência de ilusão proporcionada pela presença da mãe (e do seu seio) exatamente ali onde o bebê o criou. O autor afirma que ao se superporem, a necessidade que o bebê tem do seio, e o aparecimento deste, acontece o "momento de ilusão – uma partícula de experiência que o bebê pode considerar ou como uma alucinação sua, ou como um objeto pertencente à realidade externa" (1945/2000a, p. 227).

Winnicott esclarece também que, "Para que a ilusão se dê na mente do bebê, um ser humano precisa dar-se ao trabalho permanente de trazer o mundo para ele num formato compreensível e de um modo limitado, adequado às suas necessidades" (1945/2000a, p. 229).

Sobre o momento de ilusão, este conceito rico e surpreendente, o autor assinala que:

O bebê vem ao seio, quando faminto, pronto para alucinar alguma coisa que pode ser atacada. Nesse momento aparece o bico real e ele pode então sentir que esse bico era exatamente o que ele estava alucinando. (1945/2000a, p. 228)

Para o autor, a mãe coloca o seu seio onde o bebê o necessitava e desse modo a adaptação da mãe ao impulso do bebê propicia-lhe a ilusão de ter criado o seio. Essa ilusão não deve ser questionada como tal, pois alicerça o potencial criativo do sujeito vida afora. O brincar e as experiências culturais localizam-se nessa área de ilusão que o autor chama de uma terceira área, um espaço potencial entre a mãe e o bebê. Penso que é nesse mesmo espaço que transcorre a experiência analítica. Local privilegiado de experiência de criar o mundo, mas ainda mais substancialmente, de criar a si mesmo, já que permite uma possibilidade de ligação das torrentes pulsionais dirigindo-as ao rico trabalho de enlaçá-las a suas significações.

Concluindo, ou, lugar de nascimento...

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que pela
primeira vez se lança um olhar inteligente sobre si mesmo
.

José Saramago (1992, p. 96)

Acredito que é numa brecha de nossas vidas e da de nossos pacientes que pode se inserir a análise: possibilitando a retomada de um crescimento interno, por vezes truncado, por vezes desfavorecido. Um trabalho árduo, que permita derivações simbólicas ao excesso pulsional. Ofício na contramão do ritmo acelerado do mundo atual, e no qual, no entanto, não deixamos, nós analistas, de apostar.

Se, desde Além do Princípio do Prazer, Freud (1920/1996b) já intuiu que não era suficiente ir apenas ao encontro do recalcado, teríamos que propiciar novas ligações e construções ao excesso pulsional.

Temos que construir uma linguagem que o paciente possa habitar. Que linguagem será esta? De onde a retiramos? Penso que é uma fala que depende também da capacidade poética do analista: linguagem cheia, plena, encorpada. Única capaz de promover novas ligações psíquicas. Só uma fala viva pode ser propiciadora de novos sentidos. A palavra viva é, penso eu, a palavra afetada exatamente pelo próprio afeto do analista. Essa é a linguagem que dá sentido, linguagem da elaboração, linguagem do rêverie mãe-bebê, da função materna, do narcisismo transvazante, ou como quer que queiramos chamá-la.

O sujeito humano não se livra nunca de ser um ente em conflito, dividido, o que, não obstante, faz dele um ser em permanente processo, em incessante construção.

A escrita de uma história própria exige indagar-se sobre seus próprios desejos, tropeçar em incertezas, debruçar-se sobre este papel-vida, traçar nele uma aventura singular, permanentemente sujeita a reformulações, retrocessos e novas aberturas. Sinais e inscrições corporais e psíquicas, vividas em tempos e situações diversas seguem marcando o ser, às vezes com exigências de reconstrução e elaboração.

O trabalho de uma análise pode levar o paciente a perceber que seu destino não está marcado por um determinismo linear, imutável, e "descapturá-lo" da rigidez que sua história parece lhe impor, para reinstaurá-lo como autor de sua própria história.

Penso que é neste chão que trabalhamos: capturando a pulsão que vagueia, para ligá-la a uma palavra que a enlace, outorgando-lhe uma significação trazida pelo próprio paciente. Acreditamos, assim, num psiquismo aberto a novas recomposições, e fazendo também uma certa poesia, podemos auxiliar o paciente a ligar aquilo que:

Nem dez mandamentos vão conciliar,
Nem todos os quebrantos, toda alquimia,
E nem todos os santos, será que será,
O que não tem cansaço, nem nunca terá,
O que não tem limite
.

Chico Buarque, O que será (À flor da pele)

 

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Endereço para correspondência
FÁTIMA CRISTINA MONTEIRO DE OLIVEIRA
Rua Girassol, 139
Vila Madalena – São Paulo
tel.: 11 3871-2239

Recebido: 17/09/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo.