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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

Velando sentidos ausentes1

 

Veiling absent senses

 

 

Ana Cristina de A. Cintra Camargo*

Instituto de Psiclogia da Universidade de São Paulo
Ateliê Acaia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Ateliê Acaia recebe crianças e famílias de duas favelas e um conjunto habitacional de baixa renda, parcela emblemática de grande parte da população brasileira. O texto procura destacar através de três vinhetas clínicas de que maneira tem se aproximado de questões que explicitam os excessos (de falta) a que esta população está submetida.

Palavras-chave: Clínica extensa, Favelas, Vida nua.


ABSTRACT

Ateliê Acaia provides help to children and families of two slums and also a low income residential housing complex, where a clear reminder is found of the income inequality that remains at the top of the Brazilian population structure. It aims to highlight the opportunity of rescuing forgotten social care grounds in order to develop three clinical maps that focus on debating the issues that explains the lack of support given to the population in this environment.

Keywords: Extensive clinic, Slums, Naked life.


 

 

Numa das últimas sextas-feiras quando cheguei ao Acaia, L. se aproximou de mim, e me olhando perguntou: – Ana, por que você vem tão chique para o Acaia?
Não era suposto que eu devesse me ocupar destes meninos? Tampouco que eu me vestisse com esmero para encontrá-los? A pergunta que soa doce, como se fora um elogio, esconde um garoto que não se imagina digno de cuidado
.

O Ateliê Acaia, desde fins de 1997, vem se ocupando das crianças de famílias que vivem no entorno do Ceagesp (mais conhecido como Ceasa), que é o grande centro de abastecimento de São Paulo. Recebe, em horário alternativo ao da escola, crianças e adolescentes, bem como seus pais e mães. A população que o frequenta mora em duas favelas, a "da Linha" e a "do Nove" e em um conjunto habitacional do tipo Cingapura. São famílias pouco estruturadas; 56% das crianças têm pais, irmãos ou parentes próximos na cadeia ou ligados à droga.

O contato diário com estas crianças, jovens e famílias envolve muito tempo, paciência e um exaustivo trabalho de se colocar como aprendiz desta realidade social, de gerações de abandono, de pessoas que trazem inscritas como marca a desconfiança e a baixa autoestima.

Acaia significa "útero" em tupi-guarani e tem como missão servir de lugar de construção, fortalecimento e passagem para o mundo. É um espaço de educação em seu sentido amplo, de investigação que cria e descobre ao mesmo tempo. Lugar que passa pela desconstrução dos preconceitos e busca construir ou resgatar a humanidade em cada um.

O Ateliê oferece diversas oficinas (marcenaria e matemática, costura e bordado, linguagem oral e escrita, biblioteca, dança, capoeira, música, vídeo, artes, xilogravura, culinária e oficina dos sentimentos) e cria condições para que crianças, jovens e adultos se construam, construindo, organizem-se emocionalmente e adquiram habilidades nas áreas escolhidas.

Desde 2006 ocupamos também postos de atendimento dentro das favelas, aos quais chamamos de Barracos-Escola. A expansão do trabalho para dentro da comunidade de onde vêm nossos alunos dá-se no sentido de procurarmos entender cada vez mais as lógicas de funcionamento desta população – tão desprovida de cuidados básicos e desamparada de acolhimento emocional.

Escrevemos por muitos motivos. Para lidar com os excessos que não cabem dentro de nós. Para testemunhar. Talvez seja apenas um jeito de continuar...

Apresento-lhes três vinhetas clínicas que dizem respeito a desdobramentos que o trabalho com esta população nos impõe.

Clínicas, por que não? Clínica extensa, como nos diz Romera, na "habitação do que é mais peculiar ao exercício do psicanalista: o trânsito pelo insensato, pelo que está por vir, pela destinação de ruptura representacional promovida pela lente psicanalítica" (2006, p.199).

 

Vinheta 1 – R.2

"Demorei a começar a história de R., eram tantos abandonos, tanta falta de ser humano em sua vida, que eu não queria escrever."

Dizer que era filho de presidiária, que sua mãe sempre andou pelas ruas, presa das drogas e do não ser? Dizer da família que ele conseguiu: uma tia avó, um primo preso, um primo paraplégico por conta de um assalto frustrado, família que do seu modo o acolhera e para ele era bom. Tinha o primo Gol, que da cadeira de rodas mandava ele se lavar, cortar o cabelo, a tia Rita que faz festa de Cosme e Damião e que deixava que ele brincasse até tarde na rua, que fosse ao Ateliê fazer marcenaria. E que dessa família que para nós pode parecer um bando de desajustados, mas que para ele era tudo, ele foi violentamente tomado, levado pela avó materna, para Carapicuíba, aos tapas, sem ter mais o Ateliê, sem o primo Gol, sem a Rita e seus nem tantos cuidados, só porque alguém cismou de se vingar da tia. E assim levaram o R. para longe, de uma forma tão cruel que até mesmo o menino que jogava os gatinhos na fogueira para se divertir, viu e ficou com pena dele.

Pensar nisso tudo é pensar que a vida acabou para ele, agora só lhe vai restar ser duas coisas, um coitado ou um bandido. Acabou.

Mentira, R. é forte e sábio, fugiu da avó, e refugiou-se no Ateliê. Nos primeiros dias, ainda não confiando em nós, mas sabendo que ali havia uma chance, não disse nada, ficava pela manhã e ia dormir na rua. Uma noite, o menino que matava gatinhos o encontrou perambulando, sujo, com fome, e pela mão o levou de volta para a Rita. E é ela quem nos conta que o Gol, quando viu o estado do R., encheu os olhos de água.

Rita, que tem filho e sobrinha na cadeia, que tem o filho paralisado, precisando dela até para trocar as fraldas, com certeza não beijou, não abraçou o menino que voltava, mas abriu espaço para ele naquele apartamento já tão cheio, e esse foi o maior abraço que alguém pôde dar a R.

Ela não foi nos pedir ajuda talvez já acostumada demais a ter fracassos, apenas deixou que ele ficasse por lá. Fomos nós que a procuramos, querendo saber o que poderíamos fazer, de quem era a guarda do menino.

Esse menino não tem guarda, porque nenhum magistrado, assistente social, ou equivalente, preocupou-se em saber se aquela presa parira um dia.

Da ajuda legal nos encarregamos, fala com uma autoridade, com outra, preenche formulários, assina aqui, vai à cadeia perguntar para a mãe se ela concorda com o que ela nem sabia, marca data e tudo vai se resolver, Rita e R. ficarão juntos. Ela será sua tutora.

Ficam disso tudo dois gigantes: R. magrelo, que sabe sozinho andar por toda São Paulo apesar dos engodos que a vida lhe prepara, escolhe bem os seus amores, os seus cuidados, e tem uma gana de viver a qualquer custo; Rita, que não sabe ler, mas abre as portas da sua miséria e acolhe um menino, por nada, não por pena, ela que já sofreu tanto nem sabe que R. sofre, deixa que ele entre porque ele é um menino e um menino merece crescer, e por ele larga a casa e o filho doente, e vai ao conselho tutelar, à Vara da Família, com a história na ponta da língua, ensaiando com o R. o que dizer: vamos treinar daqui até lá, a gente não pode dizer que você apanhava muito da sua avó, porque senão eles mandam a polícia lá. Entendeu? Então repete.

E ele sorrindo repetia; sorrindo porque já sabia de tudo e não iria se enganar, ele que batera na porta do Ateliê e voltara para buscar uma vida merecida.

Foram três anos de luta desesperada para dar um destino melhor para ele, luta nossa sem dúvida, mas ninguém lutou como ele. Era assíduo, aprendia marcenaria, chegou a vender algumas peças de madeira e para todos que o acompanharam da sua chegada até aqui era claro seu progresso.

Dia a dia a agressividade se tornava em calma, certo que seu comportamento tinha altos e baixos, mas cada vez menos era preciso a atenção redobrada que a ele todos do Acaia dedicavam. Aprendia rápido, mas tinha um medo muito grande do amor que era oferecido, não tinha vocabulário e as conversas com ele eram um monólogo irritante. Quando foi viajar para um acampamento que organizamos, ficou com saudades da Rita, foi o que disse, mas creio que ele sentiu medo desse mundo que era estranho, natureza, companheirismo, colaboração, cuidado.

Talvez seus quinze anos de vida já fossem tempo demais para aprender essas coisas, estava velho, calejado.

Aqueles que o acolheram e formaram sua família eram primitivos, violentos e, como ele, sem palavras, um mundo de ações e reações, mas um mundo sem mistério onde ele podia ser alguém.

R. não sabia ler e seu grande terror era mostrar essa fraqueza; bem ou mal a maioria dos meninos sabe ler. Disfarçava o medo em valentia: – Não quero essa porra de lição eu não preciso, vou pro crime, vou ser traficante.

O professor sem saber que profetizava, ria e dizia: – Cara! Mesmo no crime se tu não aprender a ler vai virar bucha de canhão.

Ninguém duvidava ser esse o mais provável destino desse menino, mas a gente apostava que haveria tempo de dar a ele uma alternativa. Ele tentava, mesmo não entendendo qual era o outro caminho, ele aceitava a proposta. Ia ao estágio, vinha todo arrumado e permanecia animado por um bom tempo, mas depois a possibilidade de desviar o arrastava para a descrença.

Se meu filho, quando tinha a idade do R., quisesse ser "Loko do Ceasa" (grupo de meninos que assim se intitula por fazer parte do tráfico, do crime), haveria de trilhar caminhos tão desconhecidos quanto os que R. trilhava ao ir à escola, ao Acaia, ao estágio.

T., chefe do tráfico, no dia da morte do R., muito triste, refletia:
"Gente, assim não dá, vou pedir para meu marido fazer uma reunião com os caras, não pode empregar criança, tem que ter 18 anos para trabalhar".

Aos meus olhos ela parecia uma empresária discutindo as regras da sua empresa. E é, porque ou se vai ser faxineiro, caixoteiro e ganhar uma merda e correr da polícia do mesmo jeito ou vai traficar e andar de Astra como ela.

Andar de Astra, batizar os filhos da comunidade, decidir quem morre ou fica vivo, comprar remédio para quem precisa, enfim ser os três poderes.

Era isso que R. sonhava; tenho certeza que quando ergueu as mãos se rendendo para a polícia que já cercava o carro roubado pensou em nós: "o Acaia me tira dessa". No vídeo feito por um celular, vemos R. na janela, erguendo as mãos. O policial o encobre e o tira pela janela, na calçada estende-se um corpo sem vida, ele.

 

Vinheta 2 – Mineira

Há doze anos, logo que começamos a receber os adultos e famílias das comunidades com as quais trabalhamos, deparei-me com um bebê no carrinho: muito pequeno, sujo, malcuidado. Parecia simples julgar a mulher ao lado do carrinho.

Na semana seguinte lá estavam as duas novamente. Naquela noite, fiquei sabendo que a bebê (menina) não era filha daquela senhora e que ela apenas olhava a criança. A mãe biológica, usuária de drogas, tinha deixado a menina nas mãos da mulher dizendo que voltaria para buscá-la. Não voltou.

Anos depois, soube que era filha da Mineira, que continuava a andar por ali. Tivera antes daquele bebê outros quatro filhos, e meninos gêmeos dois anos depois do nascimento desta menina. Todos eles estavam legal ou informalmente sendo criados por outras famílias.

O bebê do carrinho cresceu frequentando o Ateliê. Hoje em dia frequenta o período da manhã no Acaia. Ela sabe quem é Mineira, que volta e meia vai até a casa onde ela mora saber dela. No Acaia, quando querem provocá-la, dizem: sua filha da Mineira!

Mineira mora na favela do Nove. Até o ano passado tinha um quartinho, minúsculo, mas que de alguma maneira a protegia. Um fogo destruiu os barracos da ponta da favela. Desde então, um sofá velho, pedaços de telhas Eternit e alguns panos fazem as vezes de sua moradia.

As muitas gestações, a vida desregrada, o uso de drogas e crack, violências de todas as ordens foram se inscrevendo no corpo e na alma de Mineira. Convive com um prolapso uterino nível III há meses. "O que é isso? A Mineira está com tudo pra fora" – e apontavam a genitália. "Preciso fazer cirurgia de períneo!". Chorando de dor e desconforto ela vai explicando que a bexiga desce pela vagina.

Como proceder? Alguém precisa levá-la ao médico. No posto de saúde da região o caso é conhecido. Uma agente de saúde que estava na favela recita o número do prontuário: "7103 112 – arquivo morto". Não dá sequência a tratamento nenhum, não espera a hora de ser atendida. Rouba. "Causa"!

A Mineira causa! O que ela causa? Causa ou consequência?

Outra tarde a vimos chegar à favela de táxi. Deve ter sido uma mulher bonita. Rosto anguloso, olhos amendoados, corpo magro. Hoje, disforme, barriga protuberante, andar desajeitado... mas desceu do táxi com pose e pompa. Lenço cuidadosamente amarrado na cabeça. Batom, sombra nos olhos. Avisa o taxista que vai buscar o dinheiro. Ele espera: 5, 10, 15 minutos. Exaspera-se. Dá várias olhadelas pela viela. Anda em círculos. Desiste. Vai embora.

Dentro da favela ouço: "mais um caiu no conto da Mineira. Qualquer dia um cria coragem e entra favela adentro!" – exclamam num misto de riso e indignação.

Decidimos encampar a situação. Marcamos de levá-la ao hospital no dia seguinte, mas não a encontramos. Ninguém a viu.

Um dia depois do combinado a encontramos gemendo, enrolada num cobertor e deitada próxima do barraco-escola.

Em geral os pacientes precisam de um acompanhante. Quem vai acompanhar uma paciente que é usuária de crack, diabética, e que no estado em que se encontra a cirurgia é de risco?

De dentro do nosso barraco sai uma mulher com os cabelos ainda molhados. Ex-dependente de crack, ex-presidiária, dormindo de empréstimo em barracos enquanto termina de construir seu cômodo, aproxima-se de nós e disponibiliza-se: "eu não sei o dia de amanhã, eu vou junto!"

No hospital nos dividimos, demos nossos nomes, documentos e telefones como responsáveis. Uma acompanharia o atendimento com ela e outra se dirigiria ao Serviço Social para ver o que poderia ser feito. A assistente social foi muito cuidadosa e criteriosa, mas não podia interceder nos encaminhamentos da equipe médica.

Queríamos que a internação fosse imediata, entretanto, seria necessário seguir o caminho protocolar: exames, ultrassonografia, para então aguardar vaga para cirurgia. De qualquer modo, a assistente social acompanharia o caso e ela poderia ficar terminando os exames de sangue sem a nossa presença.

Enquanto aguardava o exame de sangue, Mineira havia roubado a carteira de uma mulher que esperava atendimento. Em seguida, devolve e desculpa-se.

No dia seguinte, quando a encontramos, preparava-se para voltar ao hospital para fazer o ultrassom. Havia tomado banho, estava de roupas limpas. Ao nos ver promete: "nunca mais vou roubar NUM HOSPITAL".

Ficamos sabendo, posteriormente, que depois que a deixamos ali, houve uma batida policial (conhecida por "rapa") e que ela foi revistada, seus exames rasgados e o pedido de ultrassom se perdera. Não voltou ao hospital.

O trâmite todo que faz sentido em lugares e pessoas com um mínimo de organização não se sustentava ali.

Recebemos no Acaia a visita da nova assistente social do posto de saúde da nossa região responsável pelos moradores de rua. Apresentamos o caso da Mineira e ela se dispôs a procurar o prontuário, a fazer novo cartão do SUS (Sistema Único de Saúde), e fomos até a favela para que ela a conhecesse. Antes da entrada da favela lá vinha ela com sua indefectível calça preta de elástico. Havia comido e se banhado no barraco-escola e disse que estava indo ao pronto-socorro. Dá um abraço forte e põe-se a chorar baixinho. Em seguida estica o elástico da calça para mostrar a situação em que está. "Olha!"

A assistente social concordou em ir com Mineira até o pronto-socorro e quem sabe conseguir alguma documentação já feita ali. Daria notícias assim que as tivesse.

A mensagem no celular mencionava uma fuga do pronto-socorro: como o médico plantonista estava em horário de almoço, Mineira decidira não esperar e, blasfemando, deixou a assistente social falando sozinha.

Na favela dividimos com suas colegas as confusões dos dias anteriores. "A Mineira é fogo! Não adianta, ela só fica se uma de nós estiver junto, senão foge mesmo!". Nesta hora ela aparece. No barraco-escola a atividade é: dia da beleza. A proposta é cortar unhas, tirar sobrancelhas, banhos, xampu para tratar de piolhos, cotonetes nas orelhas, pés de molho... é desta maneira que vamos podendo falar de cuidados básicos, nos aproximarmos de temas fundamentais. Mineira aparece e quando nos vê balança a cabeça como quem não quer falar de nada e vendo a cena sai pulando e dizendo: hoje é dia de beleza!

Reconhecemos o quanto o serviço público se modificou ao longo dos últimos anos, procurando cada vez mais entender a população que recebe ou muitas vezes não recebe, precisando ir atrás dela. Constituíram o PSF, Programa de Saúde da Família, contrataram agentes de saúde dentro das comunidades para marcarem e lembrarem-se das consultas, fazem plantão semanal dentro de centros comunitários, têm equipe de atendimento aos moradores de rua. Ainda assim, é insuficiente, ainda estamos distantes de conexões com sentido. Falas esvaziadas, atendimentos que não alcançam seu destino.

A superfície que se nos apresentava era aquela em que deveríamos escrever.

As histórias dos "noias", dos usuários de crack, de mulheres maltratadas que queriam continuar a viver faziam então parte do nosso horizonte de trabalho.

A vida continua no fim da viela. Amontoados de gente e de lixo. O cercado de Mineira se revela diariamente. Dorme de dia, de noite tenta cuidar de não ser amolada quando não é vencida pelo uso do crack. Novembro não tarda a chegar, se alguém se der conta do dia do mês, se os exames forem colhidos durante...

 

Vinheta 3 – A.

A. Evangelista – 16 anos, filho de S. Evangelista. Tem três irmãos mais velhos: um preso, a irmã que é mulher de dono de baile funk, P., 18 anos, terminando o ensino médio e frequentador do Ateliê Acaia, e M., que é sobrinho deles, filho de outro irmão que morreu em acidente de trabalho.

A. não terminou o ensino fundamental. Foi e voltou para o Acaia três vezes. Um menino muito levado, briguento, com dificuldades de acompanhar a rotina escolar. Juntava-se a garotos ligados ao tráfico de drogas e assistíamos sua mãe sempre a se preocupar com os filhos, com o ambiente em que eles cresciam.

À sua maneira, S. procurava alternativa à vida na favela em São Paulo. Assistimos a idas e vindas para o Ceará. Vendia tudo e ia embora levando os meninos. Não tardava a voltar, em situação pior do que deixara.

Evangelista nos conta que ela mesma se deu o sobrenome, e assim o carregam seus filhos.

Era uma terça-feira de outubro de 2012. S. está sentada em um dos bancos na frente do Acaia. Percebo seus olhos vermelhos e ar exausto. Está doente? "Não, saí da sétima D.P. eram mais de 02h30min. da madrugada. Entreguei o A. para a polícia."

Segunda-feira à noite: A. sai e volta para casa repetidas vezes. Na última, chega apressado, joga uma mochila em cima do armário, toma banho, deixa o jeans e o tênis de marca jogados e sai novamente do barraco. S. já o advertira: "Não traga bagulho pra dentro de casa!". Assim que o filho sai, ela pega a mochila em cima do armário e abre. Cheia de drogas, de todos os tipos: maconha, cocaína, crack, em muita quantidade e um papel com valores dos papelotes, dos torrões e pedras. Tremendo, fecha o barraco com a mochila dentro e dirige-se à 91a D.P., próxima à favela do Nove, onde mora. Relata ao delegado de plantão o que acontecera e ele informa que ela precisa dar flagrante.

Vão até o barraco, pegam a mochila e levam ao D.P. onde é aberta e a droga espalhada sobre um balcão. Pela quantidade, não dá pra fichar como usuário. Saem da D.P. e seguem para a favela. Logo veem A. acompanhado por outro rapaz. S. indica o filho, o rapaz que o acompanhava sai correndo. A polícia prende A.

Voltamos ao banco da frente do Acaia. Convido S. a entrar e conversamos longamente. Dilacerada, a mãe conta da dor da decisão. "Se entram no barraco, se pegam a mochila, levam eu e o P. e aí, vai saber quando a gente ia ver a cara da rua! Acho que ele não acreditou quando eu disse que eu não ia tolerar nada dentro de casa." Chorava copiosamente. Tomava água, café com adoçante esguichado dentro da xícara, estava tudo desmedido naquela sala. Meninos do período da manhã do Ateliê entravam e saiam. Uns certamente sabiam o que acontecia ali, outros, curiosos, davam-se conta do clima e dispersavam-se rapidamente.

S. tira da bolsa um papelzinho com o telefone da 7a D.P. e pede que busquemos notícias do filho... se já foi transferido para a unidade da Fundação Casa, o que deveria fazer. Queria levar alguma roupa de que ele precisasse. Ele iria para a unidade Brás e ao lado havia uma Corregedoria.

S. subiu para bordar e ficar entre outras mulheres, outras mães que dividiam histórias parecidas.

Quinta-feira: subo até a sala onde as mulheres bordam, costuram e conversam e quando pergunto por S., uma delas diz que ela ainda não aparecera, pois diziam que A. estava na rua.

Fato.

Em audiência na própria quarta-feira, o juiz ouviu a ele e a outros tantos meninos. A. confirmou a história. S., que a tudo presenciava, tentou falar, o juiz a impediu, só quando ele autorizasse. No final da audiência cabia a ela arrumar escola para o filho, ajudá-lo a procurar trabalho e manter-se "limpo" pelos próximos seis meses, tempo em que ele ficará sob liberdade assistida (L.A.). A quem pedir socorro?

A mulher que encontramos na quinta-feira, diferente da de terça-feira, era uma mulher indignada. Possessa com a atitude do juiz. "Se ele diz que eu pedir pra falar era desacato à autoridade, o que ele fez foi desacato à humanidade." Cada vez mais, crianças mais novas estão servindo ao tráfico.

De que adiantava S. dizer que já buscara vaga na escola diversas vezes para o filho? Que emprego não faltava e era ele quem faltava no emprego? Que suas últimas ocupações não completavam uma semana? Que estava cansada de lutar e que não queria outro filho na cadeia? Que temia pela própria vida, pela do outro filho, dos netos, com a atitude que resolvera tomar?

Sua atitude dolorida e corajosa só fez piorar a situação. Já vivenciamos outras situações em que ao denunciarmos violência doméstica, violência sexual, a situação se volta contra quem procurou ajuda. Neste caso, a mãe, em outros, a criança violentada. Abrigos despreparados, com pouco a fazer, ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) utilizado de forma perversa, segurando as mãos de educadores responsáveis, de pais atentos.

Reencontro-me com R., Mineira, A. e S..

R., cuja guarda não foi concluída, que nunca chegou a ser de ninguém, que morreu de morte matada e não de morte morrida. Mineira, à espera de sabe-se lá o quê. A. e S., algozes e vítimas de si mesmos. Dos excessos e dos excessos de faltas.

Histórias que nos fazem refletir sobre como o sujeito se inscreve no mundo. Auxilia-nos no acompanhamento destas histórias o conceito de vida nua, proposto por Agamben (2002). Partindo da descrição de homo sacer, pessoa que era condenada à banição no direito romano, o autor refere-se à experiência de desproteção e ao estado de ilegalidade de quem é acuado e submetido a viver em estado de exceção. A experiência extrema dos campos de concentração nazistas, de destituição do homem de seus direitos fundamentais é, para este autor, uma expressão máxima para pensarmos a vida nua.

Primo Levi (2004) diz do contínuo ataque à dignidade e à identidade impingida aos prisioneiros dos campos de concentração e destaca estes dois fatores como aqueles que com mais acuidade nos tornam humanos. A violência diária, tal como evacuar em público, retirar roupas, sapatos, cabelos, retirava dos prisioneiros a percepção de si mesmos como seres humanos.

Muito perto de nós, no coração de São Paulo, observamos diariamente a construção ou manutenção de situações de "impessoa". Pequenos e grandes Lagers. Nos fragmentos dos textos, podemos observar alguns elementos que possibilitam existências do tipo homo sacer, isto é, pessoas alijadas da sociedade e privadas de todos os direitos e funções civis.

Vivemos em um mundo que, politicamente, encontra-se bastante próximo do modelo dos campos de concentração de Auschwitz, onde o Estado de Exceção torna-se regra. Se a Exceção é onde o excesso se expressa, excesso também para o psiquismo, a curta existência de R., a vida de Mineira, os desmandos de A. e S., revelam a queda do estatuto de cidadão, de pessoa. Banidos pelo abandono, a espera e o descaso são marcas de destinos não humanos.

Que condições de possibilidades tornam possíveis suas existências de tal maneira? De que modo habitam a cidade? De que modo a vida nua possui linguagem, se a vida nua é o extremo de degradação da linguagem?

Sem trânsito pela cidade, impossibilitados de habitá-la, sem o conhecimento das palavras, estão interditados de um discurso próprio. O menino que foge de Carapicuíba e chega aos arredores do Ceasa não se permite utilizar dos equipamentos públicos. Sem domínio das letras, não se sente entre iguais, não caminha pelo universal. Seu companheiro é o matador de gatinhos sem aspas, no campo do literal, sem possibilidades de metáforas. Ali onde R. foi constituído, jogar na fogueira é jogar na fogueira, ficar preso no trânsito é ir parar na D.P.. Ali, algo de fundamental na linguagem foi destruído, ou não foi construído. Mineira, A. e S. estão à deriva de movimentos que lhes possibilitem acederem a outras representações.

Na parede central da sala do diretor de uma escola em Londres que conheci, e que recebe 40 etnias diferentes, está pendurado um texto sobre um garoto africano refugiado de Serra Leoa.

Question
Do teachers of literacy always recognise literature?

Writing
and then i saw it
saw it all all the mess
and blood and evrythink
and mam agenst the kichin dor
the flor all stiky
and the wall all wet
and red and dad beside the kichin draw
i saw it saw it all
and wrot it down and ever word is tru

Answer
Perhaps next time you will have more to say
You must take care to write in sentences.
Check your spellings and your paragraphs.
Is it finished? It is rather short.3

E como diria Paul Celan – nascido Paul Anczel, na cidade romena de Czernowitz, em 1920, filho de judeus de língua alemã cujos pais foram assassinados num campo de concentração nazista em 1942 –, não há possibilidade de zombar da literalidade. Seus temas da morte e da noite e uma vocação para o silêncio são marcas fundamentais de sua poesia e fornece um poderoso apelo àqueles que se preocupam com o estatuto da linguagem.

No livro A poética do silêncio, Carone aponta como Paul Celan descreve sua situação: "Minha língua materna é a língua dos assassinos da minha mãe". Carone traduz Fuga da Morte (Death Fugue), poema em que o autor nos compele a lidar com o desconhecido desconfortável, lançando-nos no "leite negro da madrugada".

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos
[mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos
[bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio

A narrativa do testemunho possibilita a construção e refazimento do laço humano.

Seligmann-Silva (2008) cita a necessidade de testemunhar expressa em Primo Levi no prefácio de É isto um homem?: "A necessidade de contar 'aos outros', de tornar 'os outros' participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares" (Levi, 1988, p. 7). O testemunho tem aqui o status de atividade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta do Lager ou de outra situação radical de violência que implica esta necessidade, ou seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar. Levi, nesta passagem, coloca as expressões "aos outros" e "os outros" entre aspas. Este destaque indica tanto o sentimento de que entre o sobrevivente e "os outros" existia uma barreira, uma carapaça, que isolava aquele da vivência com seus demais companheiros de humanidade, como também a consequente dificuldade prevista desta cena narrativa.

Separados na forma de como somos inscritos na dinâmica social e na linguagem, nos colocarmos como aprendizes neste e deste fosso é a forma, ainda que muitas vezes insuficiente, de timidamente construirmos a possibilidade de habitarmos todos o mundo humano.

Na introdução de Os afogados e os sobreviventes, Levi aponta para as limitações do testemunho, como lemos na famosa frase: "a história do Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão" (2004, p. 5).

Muitas vezes, trabalhamos no Acaia no terreno da loucura, na perda de nossas referências. Nas favelas, somos aprendizes, estrangeiros, desconhecemos as leis locais e respeitamos nosso desconhecimento. Ao mesmo tempo, somos portadores de um modelo outro, de um diferente tom nas relações, de um estranhamento. O Acaia não é a "biqueira", não é o "noia", não é o tráfico, não é a escola... difícil lugar de representante de algo que não é, que está por vir. Lugar do entre.

Esta população é representativa de uma parcela significativa da população brasileira e acredito que podemos dizer da população de todas as grandes metrópoles.

Ali também o lugar do psicanalista é aquele que busca a construção da interpretação, do que surge e busca sentido. O psicanalista como representante de um lugar de sustentação da desorganização, do disruptivo, que suporta e escuta as histórias de uma maneira diferente. Aquele que oferece aos educadores ferramentas de suporte, de maleabilidade, de espaços terapêuticos.

Não sem razão, o Acaia é o encontro da arte e da cultura com a psicanálise, convivência no caos, lugar de construção: de crianças, de relações, de equipe, do humano.

Quem sabe em um próximo texto nos espere um final diferente:

"O policial o encobre e o tira pela janela, na calçada estende-se um corpo sem vida, ele."

 

Pós-escrito

Entre o envio do texto e sua publicação, Mineira foi presa em flagrante pelo furto de óculos. Da cadeia escreve para uma amiga da favela, que mora próximo ao barraco-escola e cuida da lavanderia do Acaia. A carta fala da vida dura da cadeia, que embora longa não é eterna, e que ela precisa muito que lhe enviem sabonete. Diz que sente muitas saudades, que quando sair paga tudo o que lhe enviarem.

Pede que deem um beijo na filha. "Sou a Mineira!"

Como contraponto à vida imersa em adversidades, há "algo" de profundamente humano, tanto da parte de Mineira quanto da parte do Correio, que faz com que a carta chegue ao seu destino. No envelope, no pedido ao "amigo carteiro", falta o endereço preciso, mas dispõe de todas as referências que ela pode oferecer: que mora perto da lavanderia, na favela do portão 9 do Ceasa, e nomes de outros moradores para que ele tenha como pesquisar. Sem CEP, nome de rua, mas já com os agradecimentos à pessoa que porventura puder fazer chegar a carta ao seu destino. Assim, consegue se fazer ouvida.

Incríveis histórias, como a referência feita em É isto um homem? ao ir e vir de uma carta de Primo Levi, endereçada a uma amiga na Itália que sabia o local em que sua família se escondia. Por intermédio de Lorenzo, trabalhador civil, não prisioneiro, um pedreiro que, colocando em risco a própria vida, lhe presta auxílio em Auschwitz, fazendo sua carta não apenas chegar a seu destino como tem sua resposta retornada para as mãos do autor. "Graças a Lorenzo, ocorreu-me não esquecer que eu mesmo era um homem." (Levi, 1988, p. 124).

 

Referências

Agamben, G. (2002). Homo Sacer I: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG.         [ Links ]

Carone, M. (1979). A poética do silêncio. São Paulo: Ed. Perspectiva.         [ Links ]

Levi, P. (1988). É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Levi, P. (2004). Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra.         [ Links ]

Romera, M. L., Torrecillas, F. G. (2006). A clínica que nos habita e a que habita em nós: reverso e prosa. Jornal de Psicanálise, 39(71), 189-202.         [ Links ]

Seligmann-Silva, M. (2008). Narrar o Trauma – A questão dos testemunhos das catástrofes históricas. Psicologia Clínica, 20(1), 65-82.

 

 

Endereço para correspondência
ANA CRISTINA DE A. CINTRA CAMARGO
Rua Purpurina, 155 cj 44
05435-030 – São Paulo – SP
tel.: 11 98244-7534
E-mail: cintracamargo@gmail.com

E-mail: cintracamargo@uol.com.br

Recebido: 16/10/2012
Aceito: 29/10/2012

 

 

* Mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, doutoranda pelo IPUSP, psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, uma das diretoras do Ateliê Acaia.
1 Este trabalho faz parte da pesquisa do projeto de doutorado em andamento junto ao Laboratório de Psicanálise e Análise do Discurso – LAPSI1-PSA, sob a orientação da professora Ana Maria Loffredo. Os textos sobre o Ateliê Acaia são de O. M. Aralhe, E. Bracher e A. C. Camargo.
2 Transcrevo aqui o relato de uma coordenadora do Acaia: O. M. Aralhe.
3 Professores de língua reconhecem literatura? Texto: e então eu vi, vi tudo, toda a confusão, e sangue e tudo e homem atrás da porta da cozinha, o chão todo grudento e a parede úmida e vermelho e pai próximo da janela da cozinha, eu vi, vi tudo e escrevi aqui e cada palavra é verdadeira. Resposta: Talvez da próxima vez você tenha mais a dizer. Deve tomar cuidado ao escrever as sentenças. Cheque as palavras e os parágrafos. Está acabado? É muito curto. (Tradução livre da autora).