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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo ene. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

Viver conectado, subjetividade no mundo contemporâneo

 

Always connected, subjectivity in the contemporary world

 

 

Marielle Kellermann Barbosa*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse trabalho busca estabelecer um diálogo entre o saber psicanalítico e pensadores da contemporaneidade, tais como Baudrillard e Žižek, ao discutir um comportamento que se vê rotineiramente e cada vez mais das pessoas em seu cotidiano, nos mais diversos lugares, conectadas via dispositivos eletrônicos. Foca-se aqui a conexão a redes sociais e observam-se três pontos principais: por que as pessoas passaram a compartilhar informações via internet, quais os sentidos subjetivos presentes nessa nova conduta social e qual o status de realidade presente em tais comunicações virtuais.

Palavras-chave: Mundo contemporâneo, Virtualidade, Solidão, Consumo, Compartilhar.


ABSTRACT

The objective of this paper is to establish a dialog between the knowledge from Psychoanalysis and contemporary thinkers, such as Baudrillard and Žižek, through the analysis of a behavior that has become more and more usual: some people living their everyday lives connected through electronic devices. The social networks are focused in this study, as well as three main issues: the reason why people started to share information on the Internet, the subjective meanings that lay upon this new social behavior and the reality status that pervades this virtual communication.

Keywords: Contemporary world, Virtuality, Loneliness, Consumption, Sharing.


 

 

Tá legal, eu aceito o argumento
Sem preconceito ou mania de passado
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar
Faça como um velho marinheiro
Que durante o nevoeiro
Leva o barco devagar

(Paulinho da Viola, Argumento)

 

 

Introdução

Cada dia é mais comum vermos as pessoas em restaurantes, salas de aula, cinema, bares e também nas salas de análise com seus telefones celulares, tablets, laptops conectados à internet, em especial às redes sociais.

Recentemente li no Facebook de um amigo: "Vou fechar minha conta no Face!". Dentre os vários comentários postados a respeito, um chamou a minha atenção, pois dizia em tom de brincadeira e jogava com as palavras do post: "Tava pensando em fechar minha conta na vida e ficar só no Face... rsrs".

O que significam esse tipo de comportamento e de ideia? De que forma a virtualidade das relações interfere, influencia na subjetividade de nós sujeitos da contemporaneidade?

Acredito que tais questões sejam amplas, complexas e que o caminho para a sua compreensão seja longo; porém, me parece que de alguma maneira o sentimento de desorientação diante de tamanha novidade seja partilhado por todos, seja pelos que usam da tecnologia, seja pelos que a promovem, seja pelos que tentam compreender por quais sistemas subjetivos tais mudanças operam.

 

Mundo contemporâneo

Baudrillard, sociólogo e filósofo francês, teoriza a respeito da sociedade contemporânea em A sociedade de consumo (1995). A sociedade de consumo, segundo Baudrillard, se configura como uma sociedade que tem como mito tribal, como moral da modernidade, a abundância do consumo. Consumir aqui tem um sentido diferente de comer, beber e vestir-se, mesmo que com prestígio de classes privilegiadas de outras épocas. "A nossa época é a primeira em que tanto os gastos alimentares correntes como as despesas de prestígio se apelidam de consumir." (Baudrillard, 1995, p. 265)

Ao dizermos que a sociedade de abundância é o seu próprio mito, compreende-se que é dessa forma que ela se expressa. A nossa sociedade se pensa e se expressa como sociedade de consumo, tendo a publicidade como seu hino fundamental.

O texto de Baudrillard é denso e nele encerra uma crítica à essa conformação social, ao analisar a sociedade contemporânea como tendo a si mesma como seu próprio mito, na qual as celebridades não são em nada diferentes de nós mesmos, apenas enaltecidas pela publicidade.

Podemos pensar aqui em Andy Warhol, artista das décadas de 60 e 70, conhecido pelos trabalhos de serigrafia nos quais reproduzia celebridades (um dos trabalhos mais famosos foi a representação de Marilyn Monroe) e as latas de sopa Campbell, fazendo ao mesmo tempo uma crítica e um enaltecimento da celebridade vazia, copiada ao infinito. É dele a célebre frase: "In the future everyone will be famous for fifteen minutes" (no futuro todos serão famosos durante quinze minutos), tendo ficado reconhecido como o percursor da arte pop.

Nessa sociedade, desenhada pelas duras palavras de Baudrillard, especialmente os países ricos criaram para si um modo concreto e subjetivo de operar na e pela abundância. Abundância do consumismo de produtos e serviços, representados pelos grandes shoppings nos quais todo e qualquer desejo (de consumo) pode ser satisfeito 12 horas por dia, quase todos os dias da semana, em temperatura controlada e ambiente climatizado.

Chegamos ao ponto em que o consumo invade toda a vida e todas as atividades se encadeiam do mesmo modo combinatório, em que o canal das satisfações se encontra previamente traçado, hora a hora, em que o envolvimento é total, inteiramente climatizado, organizado, culturalizado. (Baudrillard, 1995, pp. 18-19)

No entanto, ressalta o autor, não é fácil adaptar-se à abundância, e antes de este novo sistema inaugurar uma sociedade ideal, promove apenas algo muito diferente. O mito da abundância segundo Baudrillard, é antes um mito do que algo com que o homem seja realmente capaz de lidar. Nessa nova configuração, na qual toda a positividade do desejo se degrada na cadeia das satisfações, a negatividade do desejo se realiza em somatizações (depressão, estresse) e acting out de violência sem objeto.

Para compreender essa ideia, podemos revisitar Freud, em O mal-estar na civilização, em uma perspectiva metapsicológica a respeito da felicidade. Diz Freud em 1930: "Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas. Assim nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição" (Freud, 1930/1974, p. 95).

Ao final dessa frase há uma nota de rodapé com versos de Goethe que dizem: "Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos" (Freud, 1930/1974, p. 95).

Baudrillard continua, e agora podemos compreender melhor, com uma teorização metapsicológica da condição psíquica de tolerar o prazer descrita por Freud, que a sociedade da abundância, que se esforça por abolir esforços, resolver tensões e facilitar automatismos, se faz uma sociedade de estresse, de tensão e de dopping (Baudrillard, 1995, p. 247).

A sociedade de consumo, como é teorizada pelo sociólogo francês, vive do seu próprio mito e tem a si mesma como espelho e como meta, saturando-se na abundância que criou para si mesma. Freud, no texto O mal-estar na civilização, ao escrever a respeito da busca da felicidade diz: "Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo" (Freud, 1930/1974, p. 96).

 

Excessos

Nessa sociedade de consumo, segundo Baudrillard, vivemos sob o mito da abundância, satisfazendo irrestritamente os desejos. Esse modelo cria sintomas informulados, inconscientes e produz violência social sem objetivo. O autor escreve que tal configuração faz com que tenhamos saudades dos tempos da violência ideológica, formulada, definida. Diz então:

Já não pode haver sentido na substância da vida assim unificada, em semelhante digest universal: deixou de ser possível o que fazia o trabalho do sonho, o trabalho poético, o trabalho do sentido, ou seja, os grandes esquemas do deslocamento e da condensação, as grandes figuras da metáfora e da contradição. (Baudrillard, 1995, p. 21)

Pois bem, nos parece verdade contrapor essa contemporaneidade dissoluta, excessiva até uma situação feliz, como a que nos descreve Žižek, filósofo esloveno, ao dizer que "Num país como a Tchecoslováquia no fim da década de 1970 e na de 1980, as pessoas eram de certa forma felizes: três condições fundamentais eram satisfeitas ali" (Žižek, 2003, pp. 77-78). As condições eram: as pessoas tinham as necessidades básicas satisfeitas, mas não excessivamente satisfeitas. Existia O partido para receber a culpa de tudo que estivesse errado e, por fim, havia um Outro lugar (o ocidente) com o qual se podia sonhar.

Podemos considerar que a contemporaneidade aboliu essas condições de felicidade, ao satisfazer excessivamente as necessidades – e criar muitas outras inexistentes –, ao extinguir a existência de um grande outro no qual toda a culpa e responsabilidade pode ser depositada e ao retirar a existência de um Outro lugar. Com o acesso que a tecnologia nos permite atualmente, poucos lugares nos soam psiquicamente como outro lugar: talvez países com regimes políticos fechados ou ilhas isoladas.

Baudrillard fala em excesso de satisfação, criando uma culpabilidade que transborda em sintomas individuais e violência social. Freud fala que a busca irrestrita da realização dos nossos próprios desejos acarreta em castigo e coloca a condição necessária para a satisfação, o contraste, em contraposição à sucessão dos dias belos.

Podemos nos perguntar, em que se excede? Nossa sociedade seria uma sociedade de excessos? Que finalidade estaríamos dando a esses excessos?

São diversos os excessos existentes e passíveis de observação mais atenta no mundo contemporâneo. O artigo de Minerbo (2007) discute a violência excessiva e a arte sem mediação simbólica de maneira clara e lança luz de forma interessante e inovadora a respeito de novas configurações contemporâneas sobre a arte e a violência, ou como essas duas áreas se aproximam (no caso da arte). No presente trabalho, no entanto, gostaria de focar um tipo de comportamento que encerra em si excessos (ou tenta dar conta de excedentes?).

Um comportamento que vem se tornando cada vez mais frequente (e excessivo?) no dia a dia, em especial entre os mais jovens (crianças e adolescentes), mas também entre adultos (em menor intensidade nos de mais idade), é o uso dos dispositivos tecnológicos, e me refiro a qualquer dispositivo com acesso à internet: celular, tablets, laptop, para conexão às mídias sociais e sites, blogs, sites de relacionamento. Esse comportamento, de pessoas dirigindo, andando pela rua, sentadas em restaurantes, cinemas, entre amigos, na sala de análise com seus celulares e afins, "conversando" com outras pessoas online, postando comentários, fotos, vendo o que outros postam, me parece uma conduta social fundamental para compreendermos algo muito diferente que vem acontecendo.

 

Novo comportamento

Shirky é professor do Programa de Telecomunicações Interativas da Universidade de Nova York e em seu livro A cultura da participação (2010) propõe uma hipótese a respeito de por que as pessoas passaram de maneira intensa e coletiva a compartilhar informações, fotos, opiniões, via internet.

As pessoas ao redor do mundo estão compartilhando informações, como é o caso do Wikipedia, a enciclopédia colaborativa online, que tem o conteúdo gerado por usuários; outro exemplo são as redes sociais nas quais as pessoas compartilham fotos, informações pessoais, vídeos e comentários de toda espécie.

Uma espécie de site que começou como blog nas eleições do Quênia de 2007 propunha que as pessoas postassem, em tempo real, cenas de violência que testemunhassem. O blog recebia a mensagem e marcava em um mapa a localização do crime. O site, com nome Ushahidi ("testemunha", em suaíli), foi transformado em plataforma e utilizado como meio de obtenção de informações em outros países, como República do Congo, Índia, México, Haiti e Brasil. Os organizadores do site partem do princípio de que o cidadão testemunha e informa melhor e mais rapidamente do que a mídia oficial (Shirky, 2010, pp. 19-20). Esses são exemplos, alguns mais úteis socialmente, outros menos, de compartilhamento da informação.

Shirky descreve a sociedade como tendo ficado por um certo tempo parada na frente da televisão. Os dados que disponibiliza são de que pessoas de países industrializados passavam, em média, de 20 a 30 horas por semana assistindo à TV. Atualmente, de 2002 para cá, os mais jovens vêm assistindo menos à televisão que os mais velhos.

O autor coloca que diversos estudos relacionavam a grande quantidade de horas na frente da TV com a falta de qualidade de vida e insatisfações no campo da vida social; no entanto, Shirky propõe que ver TV não era o problema, mas a tentativa de resolução de um problema.

O problema que a TV veio "solucionar" foi um excedente de tempo, resultante da revolução industrial, das horas determinadas de trabalho e das novas tecnologias domésticas. As famílias tinham tempo livre, que a televisão veio ocupar.

É a mesma lógica que Shirky usa para pensar a "cultura da participação". Segundo o autor, há um excesso de tempo livre, unido a uma nova possibilidade tecnológica, criando excedente cognitivo que, devido ao esgarçamento do tecido social como o conhecíamos, criou uma nova configuração social na qual as pessoas, cidadãos comuns, passaram a fazer parte integrante de um novo panorama de mídia.

[...] o nosso tempo livre acumulado, que se avolumou primeiro com as jornadas de trabalho semanais com quarenta horas e cresceu depois da Segunda Guerra Mundial, com populações maiores e mais saudáveis, com o aumento de oportunidades educacionais, e com a difusão da prosperidade. Todo aquele tempo livre ainda não era uma excedente cognitivo, porque nos faltavam os meios para usá-lo. De fato, mesmo com o acúmulo crescente de tempo livre no mundo desenvolvido, muitas das antigas estruturas sociais que nos uniam foram desmanteladas, tais como piqueniques, associações de vizinhos, campeonatos de boliche e compras feitas a pé. (Shirky, 2010, p. 161)

Dessa forma, Shirky, um professor americano, em uma instituição norte-americana, berço das novas tecnologias e da grande sociedade de consumo, segundo as definições de Baudrillard, olha para este momento contemporâneo pensando que o excesso, de tempo livre, de capacidade cognitiva que as pessoas acumularam e também o excesso (poderíamos pensar aqui em falta, em solidão e desamparo) de desejo de estarem juntas e trocarem experiências, coisa que a vida nos grandes centros urbanos tem dificultado, tem se tornado parte de uma nova realidade de mídia compartilhada via redes sociais, sites, blogs e qualquer dispositivo virtual que tenha "conteúdo gerado pelo usuário".

A ideia, segundo Shirky, é a de que o usuário saiu do papel de mero "consumidor" de informação, para cocriador dela. No entanto, segundo a teorização de consumo de Baudrillard, as mídias sociais, seus usuários e a forma dessa interação acontecer são mediadas pelo mito operador do consumo enquanto moral do mundo contemporâneo. Vimos aqui que consumo se dá como operador simbólico social.

Podemos exemplificar a crítica de Baudrillard considerando que o Facebook hoje é o maior compêndio de informação de marketing global, exatamente por ter seu conteúdo gerado pelo usuário. Contém ali informações de consumo mais eficazes e verdadeiras do que qualquer pesquisa de mercado poderia alcançar.

Em uma cena do filme The Social Network (A Rede Social) de 2010, o ator que interpreta a personagem Marck Zuckerberg, criador do Facebook, está em uma sala com advogados e os dois estudantes de Harvard que o acusam de ter lhes roubado a ideia da rede social. Zuckerberg olha pela janela e comenta que está chovendo. O advogado pergunta se ele (o advogado) tem a sua completa atenção, ao que Zuckerberg responde, ironicamente, que, por estar sob juramento, não deve mentir e que portanto não, ele não tem toda a sua atenção, apenas o mínimo necessário dela.

Essa cena anuncia um certo estado de mente que se apresenta no mundo contemporâneo. Poucas e raras situações parecem requerer ou exigir a nossa total atenção atualmente.

É comum vermos as pessoas se dividindo, parcelando a atenção, o contato, como se a tela do computador ou do celular, com muitos ícones em aberto, fosse uma representação gráfica adequada das pessoas que conversam e imediatamente postam um comentário daquela mesma conversa no Facebook, de nós quando estamos em uma festa, tiramos uma foto e compartilhamos (via Facebook, Instagram), dos que estão no cinema e em uma cena pouco interessante "conversam" com algum amigo via mensagem no celular.

Shirky ressalta que "vivemos, pela primeira vez na história, em um mundo no qual ser parte de um grupo globalmente interconectado é a situação normal da maioria dos cidadãos" (Shirky, 2010, p. 27), e cita o físico Philip Anderson, ganhador do Nobel no ano de 1977 que diz que "mais é diferente", quando você agrega uma grande quantidade de alguma coisa, ela se comporta de novas maneiras (Shirky, 2010, p. 28).

 

Eu compartilho, logo existo

Considerando a psique como lógica produtiva de interação entre o que é individual e social, nos cabe, enquanto campo de conhecimento psicanalítico, perguntar de que maneiras e que significados estão sendo operados no fato de que pessoas estão, em suas vidas diárias de trabalho e lazer, conectadas via dispositivos tecnológicos com muitas outras pessoas, na maior parte das vezes com amigos e conhecidos.

A psicóloga Sherry Turkle, que é professora de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, iniciou suas pesquisas na área da psicanálise e pesquisa atualmente a interação entre sujeito e tecnologia. Em uma palestra disponível no Youtube, Turkle faz algumas considerações a respeito das repercussões psíquicas de se estar sempre conectado.

Ela diz que ter uma conversa real (e por real se refere a não virtual, com presença física) toma um tempo real e em uma conversa desse tipo não se controla o que se diz. A conversa escrita nos permite um maior domínio e uma apresentação controlada de nós mesmos; a tecnologia possibilitaria, portanto, lapidar as relações.

Turkle comenta algo que é comum ouvirmos no consultório (e é possível percebermos nas relações fora dele): os adolescentes, em especial, dizem que para se comunicar preferem escrever a falar.

Uma questão importante que se sobressai nessa situação de estar 24h conectado é a sensação de estar sempre acompanhado por olhos e ouvidos. A tecnologia providenciaria uma impressão de escuta permanente. No entanto, esse acompanhamento virtual constante cria algumas ideias que merecem ser discutidas com atenção.

Podemos ter a sensação de que, com o Iphone carregado e tendo a conexão necessária (isso é, dadas as condições preservadas), três ideias se colocam como "verdadeiras": a primeira é a de que podemos colocar nossa atenção em que quisermos, a segunda, que seremos sempre ouvidos e a terceira, finalmente, que nunca ficaremos sós.

A ideia de que a conexão protege da solidão e do desamparo pode ser benéfica em um mundo contemporâneo no qual as configurações familiares e sociais providenciam cada vez menos companhia e apoio; no entanto, na medida em que o que se torna natural é estar permanentemente acompanhado, não por um, não por alguns, mas por muitos "amigos" (vozes e ouvidos via comentários, mensagens, "curtidas" nas fotos etc.), a solidão passa a ser vista e sentida com pavor, como aterrorizante, como um estado de desligamento contra o qual tem de se lutar, um problema a ser resolvido, um estado que ameaça o sujeito em sua identidade e na percepção de si mesmo (Turkle, 2012).

 

Discussão

É hora de reunir as ideias.

Passamos por Baudrillard e sua concepção a respeito do mito do consumo. Freud diz ser natural que a busca pela felicidade procure a satisfação irrestrita dos desejos, mas salienta que o gozo traz consigo seu castigo, apontando um excesso de satisfação e determinada constituição psíquica para a fruição de prazer, o contraste em contraposição à sucessão de "dias belos".

Uma análise pragmática do professor norte-americano Shirky contempla as considerações históricas que levaram a nossa sociedade a ter nas mãos tempo disponível, tecnologia e falta de contato social pelo esgarçamento da vida social urbana.

A utilização da tecnologia como "acompanhante", como olhos e ouvidos, vem dar conta de uma solidão e um desamparo que é sintomático na sociedade contemporânea como esta está configurada, na qual as pessoas vivem mais sozinhas, têm famílias menores e as comunidades são menos presentes enquanto grupo social significativo.

Nesse contexto, as mensagens de texto, as fotos publicadas por amigos, os comentários recebidos nas próprias fotos criam uma sensação real de acompanhamento e apoio, mesmo que a distância, mesmo que virtual. Sujeitos se movem em sua vida "real", isso é, de trabalho, de afazeres diários, acompanhados por familiares e amigos, numa realidade paralela e virtual que acontece num outro tempo, e no mesmo tempo da vida rotineira. Realidades concretas e virtuais se sobrepõem e se confundem na percepção do sujeito, que pode sentir aquela virtual como contendo características importantes de "realidade", na medida em que a percepção de companhia, de afeto, de compartilhamento de ideias e percepções de fato ocorreu, independentemente do dispositivo eletrônico que intermediou o contato.

Como coloca Shirky, a tecnologia disponibilizou as ferramentas para que cada um fosse o autor de sua "mídia individual". Cada indivíduo recebe notícias através de seus contatos mais próximos, o mundo que chega até cada um de nós passou a ser co-dirigido por nós mesmos e não é mais benefício de um grupo seleto de poucos que detinha e disponibilizava a informação (a imprensa).

As redes sociais podem ser pensadas sob a ótica de Baudrillard, no sentido de que, na sociedade de consumo, as celebridades não são em nada diferentes de nós mesmos, visto a nossa sociedade ter a si mesma como mito.

Facebook (e outras redes sociais), Baudrillard e Warhol se aproximam na medida em que podemos considerar que com uma rede social todos podemos ser as celebridades de nossas próprias vidas e ter nossos 15 minutos de fama. Seguindo nesse sentido, a crítica de Baudrillard nos orienta a considerar a forma que esse compartilhamento de informações via internet vem tomando. Segundo o autor, a fenomenologia do consumo funciona como operador simbólico não apenas do consumo de produtos, mas das relações sociais, como climatizador da vida no geral. Dessa forma pode-se pensar que as pessoas vêm compartilhando fotos, informações, vídeos etc., sob a égide deste mito; nas palavras do autor:

Na fenomenologia do consumo, a climatização geral da vida, dos bens, dos objetos, dos serviços, das condutas e das relações sociais representa o estádio completo e consumado na evolução que vai da abundância pura e simples, através dos feixes articulados dos objetos, até o ar condicionado total dos atos e do tempo. (Baudrillard, 1995, pp. 18-19)

Um ponto crucial dessa discussão, além das repercussões subjetivas individuais e da forma que esse compartilhamento toma (o do mito do consumo), é a questão do status de realidade que tais comunicações virtuais tomam.

Žižek, filósofo esloveno de influência lacaniana, é autor de Bem-vindo ao deserto do real (2003) – o título se refere à frase que Morpheus fala a Neo, no filme Matrix (1999), quando Neo, depois de tomar a pílula vermelha, é desligado da Matrix e se vê diante da realidade desertificada.

Žižek tem uma escrita rebuscada, o que nem sempre favorece a clareza das suas teses, contudo, apresenta um ponto interessante ao inverter a lógica esperada quando aponta que, ao virtualizarmos nossas vidas diárias,


O Real que retorna tem o status de outro semblante: exatamente por ser real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto somos forçados a senti-lo como um pesadelo fantástico. (Žižek, 2003, p. 33)

O autor esloveno considera que, na medida em que acontece mais e mais a virtualização de nossas vidas diárias, o Real passa a ser sentido como traumático e excessivo, tendo que ser convertido em algo de ficcional para então poder ser integrado.

Seguindo a teorização que Žižek utiliza, a fantasia tem a função de estruturar e apoiar a relação com a realidade; no entanto, existe sempre um excesso que resiste à imersão na realidade diária. A virtualização, pensada por Žižek, iria na direção de uma identificação total com a fantasia, em tal medida que a realidade passa a ser percebida como excessiva e traumática.

Nessa perspectiva, inverte-se a ordem esperada de percepção entre realidade concreta e virtual para nos parecer mais real o virtual e irreal, como um "pesadelo fantástico", o real.

Podemos pensar sob esse aspecto a frase citada no início do texto a respeito de um comentário no Facebook: "Tava pensando em fechar minha conta na vida e ficar só no Face... rsrs". Essa frase denuncia tal inversão de perspectiva na qual o Facebook e toda a vida que ali se desenvolve passam a ser sentidos como mais reais que a vida não virtual.

Se a saída para a virtualidade busca uma fuga da solidão, uma tentativa de compartilhamento de toda espécie de laços, na forma de fotos, opiniões, informações, enfim, uma maneira das pessoas se fazerem presentes umas na vida das outras, estaríamos criando um deserto do real?

Para encerrar, voltemos a Freud em 1930, quando o criador da psicanálise teoriza a respeito da busca da felicidade em mal-estar na civilização; ele diz:

Um outro processo opera de modo mais enérgico e completo. Considera a realidade como a única inimiga e a fonte de todo o sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. (Freud, 1930/1974, p. 100)

Podemos considerar a virtualização das relações, da comunicação, sob essa perspectiva freudiana de busca da felicidade, na medida em que recriamos para nós uma realidade mais agradável e digerível. A tecnologia nos permite fazer um "photoshop" das relações, dos momentos, da imagem com que nos apresentamos ao mundo.

 

Considerações finais

É certo que o texto abriga pontos diversos e amplos, e que muito pode ser discutido a partir de cada aspecto aqui tocado. A dimensão subjetiva de sentir-se sempre acompanhado versus o pavor de se ver abandonado quando ninguém "conversa" com o sujeito conectado.

A fascinante questão das percepções de realidade e virtualidade, que deu origem a tantos filmes, e em especial de que formas essas questões contemporâneas estão se fazendo presentes no consultório, nas sessões.

Não creio que falar em falência das possibilidades de sonho e do trabalho poético seja o caso quando se pensa neste ponto aqui discutido, das pessoas conectadas. Aposto, ao contrário, na ideia de uma dialética na qual algo novo esteja surgindo para dar conta de solucionar problemas, ao mesmo tempo que também cria sintomas.

Apesar das dimensões pouco delimitadas do tema tratado, creio que uma postura psicanalítica fundamental diante das invenções seja a da hospitalidade na presença da ruptura, da humildade diante do que a cultura nos propõe como desconhecido e como novo.

 

Referências

Baudrillard, J. (1995). A sociedade de consumo. (A. Morão, trad.). Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. XXI, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Minerbo, M. (2007). Crimes contemporâneos: uma interpretação ou o inumano. Percurso, 38, 135-144.         [ Links ]

Shirky, C. (2010). A cultura da participação, criatividade e generosidade no mundo conectado. (C. Portocarrero, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Turkle, S. (2012). Connected, but alone? Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=t7Xr3AsBEK4. Acesso em: 10 set. 2012.         [ Links ]

Žižek, S. (2003). Bem-vindo ao deserto do real. (P. C. Castanheira, trad.). São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
MARIELLE KELLERMANN BARBOSA
Rua Padre Almeida, 565, cj. 11
13025-251 – Cambuí – Campinas – SP
tel.: 19 3032-2433 / 19 9294-7457
E-mail: mariellekbarbosa@gmail.com

Recebido: 15/10/2012
Aceito: 19/10/2012

 

 

* Psicóloga. Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, especialista em Psicoterapias da Infância pelo Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria – FCM – Unicamp.