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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo ene. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

Modernidade e economia pulsional: para uma psicofisiologia do excesso1

 

Modernity and pulsional economy: to a psychophysiology of excess

 

 

Oswaldo Giacoia Junior*

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Universidade Pontifícia Católica de São Paulo (PUC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo explicita a interpretação por Nietzsche dos aspectos psicofisiológicos da doença, considerados a partir de uma economia das pulsões, para a qual indigência, penúria, excesso e transbordamento estão ligados a relações de força e a sintomas como saúde e enfermidade. Tais noções referem-se, em Nietzsche, menos a categorias sócio-econômico-políticas do que a esquemas de pensamento, sentimento, ação e reação, mais próximos do âmbito de fenômenos da psicologia, entendida por esse filósofo como o caminho que conduz aos problemas fundamentais do homem.

Palavras-chave: Abundância, Excesso, Espontaneidade, Ação, Saúde, Integridade, Fraqueza, Doença, Reação, Ressentimento.


ABSTRACT

This article aims to clarify Nietzsche's interpretation of the psycho-physiological aspects of the disease, considered from the point of view of an economy of drives, within which the concepts of poverty, famine, excess and overflow are linked to relation of forces, concepts like health, other than weakness and pathology. The attempt is to show that these figures refer less to socio-political-economic views than to mindsets closer to psychology, as Nietzsche understood it, as the road that leads to mankind's fundamental problems.

Keywords: Abundance, Excess, Spontaneity, Action, Health, Integrity, Weakness, Disease, Reaction, Resentment.


 

 

Eis o que sucede conosco na música: primeiro temos que
aprender a ouvir uma figura, uma melodia, a detectá-la,
distingui-la, isolando-a e demarcando-a como uma vida em si;
então é necessário empenho e boa vontade para suportá-la, não
obstante sua estranheza, usar de paciência com seu olhar e sua
expressão, de brandura com o que nela é singular [...].
(F. Nietzsche, 2001, aforismo 334, p. 221)

 

 

Decididamente, Friedrich Nietzsche é um filósofo do excesso, um pensador cuja filosofia se exerce a partir de um ponto de vista da plenitude e da abundância – eis que Nietzsche considera essencialmente toda patologia como um resultado de uma situação de penúria, esgotamento, estado de necessidade psicofisiológica. Pensar com o relógio na mão, por exemplo, é sinal de indigência: pensar enquanto se almoça, tendo os olhos voltados para os boletins da bolsa, é viver como alguém que a todo instante se encontra ameaçado de perder alguma coisa supostamente importante. Um ritmo de vida vertiginosamente acelerado para atender às demandas e solicitações reais e fictícias do mercado de trabalho dá prova de penúria e indigência permanentes. "Intranqüilidade moderna. – À medida que andamos para o Ocidente se torna cada vez maior a agitação moderna, de modo que no conjunto os habitantes da Europa se apresentam aos americanos como amantes da tranqüilidade e do prazer, embora se movimentem como abelhas ou vespas em vôo. Essa agitação se torna tão grande que a cultura superior já não pode amadurecer seus frutos; é como se as estações do ano se seguissem com demasiada rapidez. Por falta de tranqüilidade, nossa civilização se transforma numa nova barbárie." (Nietzsche, 2000, I 285, p. 192)

Se Nietzsche considera toda enfermidade como estreitamente vinculada ao modo como nos relacionamos com o sofrimento, sendo a vivência do sofrimento o alicerce filosófico de sua compreensão da finitude, a experiência desta, por sua vez, depende de uma distinção elementar entre penúria e excesso. Para Nietzsche, as maneiras existenciais de lidar com a experiência da dor resultam ou de uma profusão ou de uma carência de forças físicas e psicológicas: "Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura" (Nietzsche, 2001, aforismo 370, pp. 272-273).

A cada uma dessas vivências e de assimilação da dor corresponde um tipo de sofredor: o doente exaurido, prisioneiro de um ressentimento consumptivo, brotado da fraqueza, da incapacidade de evitar esquemas reativos; ou então o sofredor que, embora também doente, ainda mantém hígida, em considerável medida, a posse de si; que, mesmo sob a pressão da doença, conserva uma "natureza rica", um excedente de força plástica e instinto de cura, capaz de vivenciar o ressentimento como um mero afeto entre outros – do qual pode se desembaraçar; que pode viver o ressentimento como um sentimento supérfluo. Nesse segundo caso – e somente nele –, o ressentimento pode também voltar-se contra si mesmo, transfigurar-se em dietética e arte curativa, graças à conservação de um plus de força metabólica, em virtude da qual as vivências penosas são digeridas e liquidadas.

Se a vingança e o ressentimento caracterizam a doença, notamos então que a genealogia do desejo de vingança é relevante, pois indica como um sentimento paralisante e narcótico, um pauperismo radicado na impossibilidade de evitar o mais grosseiro e deletério esquema de reação, transforma-se em elemento psiquicamente dominante: a vingança, como necessidade de castigo e expiação. Esse é o ressentimento que envenena, que esgota rapidamente toda energia nervosa, tornando o doente incapaz de evitar esquemas reativos, compulsivamente repostos, aos quais as lembranças permanecem referidas.

Nesse caso, o organismo carece de autodomínio, de controle que possibilita ao doente não se render à contaminação de todas as suas vivências pelo sentimento de vingança. Quando isso acontece, é porque nos encontramos em estado de necessidade, de modo que o ressentimento torna-se soberano, e o psiquismo fica refém da vingança, e impotente para livrar-se dela: nessas condições, sentir é sempre ressentir – portanto, uma reiteração compulsória do mesmo, sem espaço para novas experiências, para a restauração de um novo presente, já que torna-se impossível esquecimento e transfiguração do vivido.

Entretanto, existe também outro tipo de sofrimento, ao qual corresponde uma figura diversa de sofredor; nele também são processados os afetos do ressentimento, porém não unicamente sob a forma reativa da vingança. Nesse caso, vigora uma sabedoria prudencial, típica da convalescença: uma vez que nos consumiríamos demasiado rapidamente se reagíssemos, não reagimos mais: esta é a lógica, lastreada na tensão e no contraste entre debilidade e força, excesso e penúria. Essa lógica pode e deve ser também retomada e refletida não apenas em relação a dois tipos de sofredores, senão que também em um só e mesmo doente – na alternância de seus estados vividos; em cuja variação podemos discernir entre um excedente de força fraqueza e o desfalecimento da fraqueza. Referindo-se à disciplina que impusera aos sentimentos vingativos em seus piores sofrimentos, escreve Nietzsche: "Nos períodos de décadence eu os proibi a mim por prejudiciais; tão logo a vida voltou a ser rica e orgulhosa o bastante para isso, eu os proibi como abaixo de mim" (Nietzsche, 1995, p. 32).

Uma pessoa extenuada, minada por grave enfermidade, pode tornar-se incapaz de resistir à tendência para consumir suas energias em reações afetivas que esgotam as forças já parcas. Por isso, a sabedoria prática consiste em proibir como nocivas essas modalidades de ressentimento. Quando as forças estiverem restauradas, graças a essa economia da poupança, os sentimentos reativos podem ser vividos como supérfluos – isto é, como superados pelo excesso de novas forças afluentes. Sentir como abaixo de si a necessidade de se vingar constitui, a ver de Nietzsche uma prova do retorno à saúde, sintoma da transição da indigência anímica para um reconquistado estado de integridade. Para livrar a alma do ressentimento, é necessário ser suficientemente rico para poder ser também perdulário – para ser capaz de renunciar à retaliação, não se revoltar contra aquilo que incomoda, irrita, fere, causa dor; não permitir que a vulnerabilidade envenene todo o psiquismo. Para a psicofisiologia de Nietzsche, a eficácia dessa terapia depende de uma postura amorosa: o acolhimento afirmativo de si como um destino. "Tomar a si mesmo como um fado, não se querer 'diferente' – em tais condições isso é a grande sensatez mesma." (Nietzsche, 1995, p. 32)

Não se revoltar contra a adversidade significa aqui aceitação, mesmo do que se opõe a nós e nos faz sofrer; para evitar o rancor que envenena e faz amaldiçoar a existência, é necessário não apenas resignar-se, mas afirmar o adverso, pelo menos durante aqueles estados de debilidade e consumpção das energias, quando mais somos susceptíveis aos afetos vingativos. Aqui, precisamente, é necessário demonstrar a resistência instintiva e a tenacidade do faquir; tornar afirmativa e positiva a inação, que permite conservar a vida, naquele tênue limiar em que ela ameaça desaparecer. Para o doente extenuado, o ressentimento seria, nesses casos, a mais imediata e irresistível, mas também a mais funesta das tentações, pois ao perpetuar a reação, ele também se constitui em força inibitória de novas vivências, mantendo uma vida reduzida à mera conservação vegetativa.

Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche revisita esses temas, a partir de uma interpretação psicofisiológica de Sócrates, que é tomado por Nietzsche como sintoma de decadência da cultura helênica, como sinal de empobrecimento patológico, carência de força de assimilação, integração e transformação: "Quando há necessidade de fazer da razão um tirano, como fez Sócrates, não deve ser pequeno o perigo de que uma outra coisa se faça de tirano. A racionalidade foi então percebida como salvadora, nem Sócrates nem seus 'doentes' estavam livres para serem ou não racionais – isso era de rigueur, era seu último recurso. O fanatismo com que toda a reflexão grega se lança à racionalidade mostra uma situação de emergência: estavam em perigo, tinham uma única escolha: ou sucumbir ou – ser absurdamente racionais... [..] A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida fraca, fria cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença, uma outra doença – e de modo algum um caminho de volta à 'virtude', à 'saúde', à 'felicidade'... Ter de combater os instintos – eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto" (Nietzsche, 2006, pp. 21-22).

A noção de vida ascendente liga-se à teoria do excesso, a condições de vida não limitada ao estado de necessidade, à tirânica penúria da "única escolha"; isso só pode derivar de uma economia pulsional sensata, não moralista, que promove o equilíbrio entre as forças do espírito e as energias do corpo, que os considera como complexa unidade de organização, como "pluralidade do sujeito, como estrutura social dos impulsos e afetos" constantemente em aliança e oposição (Nietzsche, 1980b, p. 33). Sensatez e saúde identificam-se no trabalho exitoso de um cultivo não "castrativo" das pulsões, integradas à racionalidade.

A crítica de Nietzsche à modernidade cultural consiste também na denúncia do enfraquecimento dos impulsos, na "desertificação da terra", e amesquinhamento do homem e da sociedade; essa crítica pode ser entendida também como uma elegia da abundância e opulência, que, só ela, é capaz de pródiga doação de si: "Não, respondeu Zaratustra, não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso" (Nietzsche, 2011, p. 19).

A respeito desse paradoxo, uma menção a O caso Wagner é ilustrativa, pois nele Wagner figura como um personagem conceitual, um fio de Ariadne, que orienta Nietzsche nos labirintos da subjetividade moderna, permitindo seu diagnóstico, a partir de uma interpretação sui generis da música wagneriana. De acordo com Nietzsche, para uma sintomatologia de nosso tempo, não podemos prescindir de Wagner, pois este é um guia iniciado, um convincente intérprete da alma moderna. "Por meio de Wagner a modernidade fala sua linguagem mais íntima: ela não oculta nem seu Bem nem seu Mal, ela perdeu toda a vergonha perante si mesma." (Nietzsche, 1980a, p. 11) Por isso, Nietzsche afirma com toda plausibilidade: Wagner resume a modernidade cultural. Na pessoa e na obra Wagner a psicofisiologia de Nietzsche diagnostica a neurose de Wagner como a doença da modernidade, cuja origem é a economia pulsional predatória, avessa a um sensato cultivo das pulsões, para gerar um excedente de forças, uma vida saudável, liberada de culpa e castigo. Para ilustrar o regime pulsional dissipatório, Nietzsche menciona, juntamente com Wagner, outra lente de aumento da corrupção moderna: Jean-Jacques Rousseau. Como antípoda da degeneração romântico-moralista do homem, de "castratismo" ético-religioso-político, Nietzsche mobiliza Goethe – um romântico, porém transbordante de energia, capaz de integrar e cultivar seus impulsos, de conjugar forças e fraquezas de seu tempo.

Nessa chave, Nietzsche vê na história da civilização ocidental um antagonismo operante na economia das pulsões: penúria e excesso, oposição que desempenha uma função determinante na configuração e no destino dos tipos humanos que, por meio dela, foram engendrados, transformados. Esse antagonismo se expressa em dois tipos de práxis moral: de um lado, a moral religiosa da castração, de outro, o imoralismo das paixões, ou práxis sintetizadora. Isso fornece uma pista relevante para se compreender o sentido da incisiva e instigante conclusão do aforismo 19 de Para além de bem e mal, que tanta dificuldade acarreta para os comentadores; ali Nietzsche define moral como "doutrina das relações de domínio sob as quais surge (entsteht) o fenômeno 'vida'" (Nietzsche, 1980b, p. 31). O texto reverte os termos da relação entre moral e vida – esta surgindo daquela –, moral forma da vida, cultivo de energias e impulsos, de cuja elaboração a vida emerge. O "castratismo" clássico é identificado por Nietzsche com a pedagogia moral-eclesiástica, de cunho socrático-platônico-cristão.

"O afeto, o grande desejo, as paixões do poder, do amor, da vingança, da posse: – os moralistas quiseram extingui-las, extirpá-las, 'purificar' delas a alma. A lógica é: esses desejos frequentemente produzem grande desgraça – por via de consequência, eles são malvados, condenáveis. O homem tem que se desvencilhar deles: antes disso, não pode ser um homem bom... Essa é a mesma lógica de acordo com a qual: 'se um membro te escandaliza, então arranca-o'. E o mesmo vale para o delírio dos moralistas que, em lugar da continência, exige a extirpação das paixões. A conclusão deles é sempre: só o homem castrado é o homem bom. As grandes fontes de força, aquelas frequentemente tão perigosas águas selvagens da alma, a jorrar avassaladoramente – em lugar de economizá-las e tomar em serviço seu poder, aquela mais míope e perniciosa maneira de pensar, a maneira moral de pensar, quer fazê-las secar." (Nietzsche, 1980d, p. 347)

No mesmo Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche escreve: "Aniquilar as paixões e os desejos, apenas para prevenir sua estupidez e as conseqüências desagradáveis dessa estupidez, isso nos parece, hoje, apenas uma forma aguda de estupidez. Já não admiramos os dentistas que extraem os dentes para que eles não doam mais... [...] A Igreja combate a paixão com a extirpação em todo sentido: sua prática, sua 'cura' é o castracionismo. Ela jamais pergunta: 'Como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?' – [...]. Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz: a prática da Igreja é hostil à vida..." (Nietzsche, 2006, pp. 33-34).

A principal característica do tratamento oposto ao "castratismo" é uma postura acolhedora e positiva: a transfiguração da energia dos impulsos, como sublimação, divinização, embelezamento, espiritualização. Para Nietzsche, "todas as paixões têm um período em que são meramente funestas, em que levam para baixo suas vítimas com o peso da estupidez – e um período posterior, bem posterior, em que se casam com o espírito, se 'espiritualizam'. Antes, devido à estupidez na paixão, fazia-se guerra à paixão mesma: conspirava-se para aniquilá-la – todos os velhos monstros da moral são unânimes nisso: 'il faut tuer les passions'" (Nietzsche, 2006, p. 33). Essa unanimidade, porém, é a idiossincrasia da penúria, a ideologia extirpadora, avessa à espiritualização. O "castratismo" é uma economia negativa da amputação e da falta, impotente para conviver com o excesso, incapaz de vivenciar a conversão de um extremo em seu contrário – justamente aquilo que Nietzsche vislumbra como gravidez de futuro.

A práxis das paixões, recomendada pela dietética nietzschiana, consiste antes na reapropriação do excesso, daquela gama de pulsões e afetos renegados, reprimidos, anatematizados e, se possível, extirpados pela tradição moralista. Não, porém, recuperação não de sua "estupidez" bruta, bárbara, mas de sua força domada, transfigurada: "Tomar a seu serviço tudo o que é terrível, um a um, a modo de tentativa, passo a passo – assim quer a tarefa da cultura. Mas até que ela seja forte o suficiente para isso, ela tem que combater, moderar, velar, em certas circunstâncias, maldizer e destruir. Por toda parte onde uma cultura coloca seu mal, ela expressa com isso uma relação de temor: sua fraqueza se denuncia. Em si, todo Bem é um Mal de outrora tomado em serviço... O domínio sobre as paixões, não seu enfraquecimento ou extirpação! Quanto maior é a força dominadora de nossa vontade, tanto mais liberdade pode ser dada às paixões. O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões: mas ele é suficientemente forte para fazer desses monstros seus animais domésticos..." (Nietzsche, 1980d, pp. 484 e s.).

É isso que Nietzsche entende como educação (Erziehung) não castradora, que promove a saúde tanto do indivíduo quanto da cultura: renaturalização (Vernatürlichung) do homem – transvaloração dos valores ao nível da economia pulsional. Pois o "castratismo" moral não é só uma gestão da indigência, mas uma aberração antinatural. À visada genealógica, ele se revela como uma monstruosa inversão e autocontradição, pela qual uma determinada forma de vida volta-se contra as mais poderosas fontes de energia vital, levando a efeito um formidável empreendimento cultural de mediocrização do homem. Essa contradição culmina numa dolorosa e inútil dissipação de forças; pois, por mais que a pedagogia moral se empenhe em aniquilar as paixões, seu inexorável destino é sucumbir ao fracasso, já que nenhuma criatura pode se subtrair à força da natureza. Numa formulação que antecipa com rara lucidez as descobertas psicanalíticas de Freud, o jovem Nietzsche observa que a antiga sabedoria grega já havia feito a experiência de que não era possível – nem sequer desejável – reprimir violentamente o arrebatador impulso orgiástico: "uma coerção direta era impossível; e, se possível, ela seria, entretanto, demasiado perigosa: pois o elemento represado em seu jorro irromperia então por outros canais e inundaria todas as artérias vitais" (Nietzsche, 1980e, p. 567).

Não que Nietzsche mobilize o conceito de uma "harmoniosa" natureza originária – pura e boa, ainda intocada por costumes e paixões viciosas. Como Freud, ele também foi um incansável adversário da edulcoração romântica da natureza humana, tal como ela se apresenta em Rousseau. Para Nietzsche, o resgate da natureza corrompida, o retorno à saúde, não significa um regresso à bondade originária da condição humana – esta é, para ele, apenas um sub-rogado ideológico da moral cristã laicizada. "Progresso no meu sentido. – Também eu falo de 'retorno à natureza', embora não seja realmente um voltar, mas um ascender – à elevada, livre, até mesmo terrível natureza e naturalidade, uma tal que joga, pode jogar com grandes tarefas... [...] Mas Rousseau – para onde queria esse voltar? [...] Também esse aborto, que se colocou no umbral da época moderna, queria 'retorno à natureza' – para onde, repito, queria Rousseau retornar?" (Nietzsche, 2006, pp. 97-98).

Essa pergunta indica a envergadura da crítica a Rousseau. Não se trata de visar apenas o sujeito empírico Jean-Jacques Rousseau, mas de alvejar um tipo ideal. Nietzsche interpreta Rousseau como principal artífice do projeto político da modernidade. Esse é o sentido da fórmula enigmática empregada: um retorno que não é regresso, mas uma ascensão. Retornar à natureza significa, então, reverter, transvalorar a contranatureza que caracteriza o regime moral platônico-cristão, como uma decorrência inevitável da lógica dessa mesma práxis, de seu caráter cronicamente deficitário.

Práxis cuja pretensão maior consiste em aniquilar os "maus impulsos", tendo como resultado a substituição de um mal por um outro, ainda maior: os "maus impulsos" não desaparecem, mas dão lugar a monstruosidades. Para Nietzsche, o tratamento recomendado por aquela dieta moral – reabrir antigas chagas, revolver-se no autodesprezo, contrição, remorso, confissão infinita – não é uma profilaxia da alma – apenas uma forma mais aguda de patologia. "Somos bons de uma maneira enfermiça, quando estamos enfermos... computamos agora a maior parte dos aparatos psicológicos com os quais trabalhou o Cristianismo sob as formas da histeria e da eplepsoidis. Deveríamos denunciar a prática eclesiástica, puramente psicológica, como perigosa para a saúde... Não se cura um doente por meio de orações e conjuração de maus espíritos: em sentido fisiológico, os estados de 'tranquilidade' que surgem de tais intervenções estão longe de despertar confiança... Somos saudáveis quando zombamos da seriedade e do zelo com os quais alguma particularidade de nossa vida de algum modo nos hipnotizou, quando sentimos o remorso de consciência como a mordida de um cão numa pedra – quando nos envergonhamos de nosso remorso." (Nietzsche, 1980d, pp. 338 e s.)

A irracionalidade econômica consiste na substituição de um sintoma por outro, ao invés de enfrentar corajosamente as causas da enfermidade; esse é um dos efeitos nefastos da corrupção da Psicologia pelo moralismo: "No desenvolvimento inteiro da moral não surge nenhuma verdade: todos os elementos conceituais, com os quais se trabalha, são ficções, todos são psychologica, nas quais nos apoiamos; são falsificações; todas as formas da lógica, que arrastamos para esse reino da mentira, são sofismas. O que distingue os próprios filósofos da moral: é a mais perfeita ausência de todo asseio, de toda autodisciplina do intelecto" (Nietzsche, 1980d, pp. 291 e s.).

Nietzsche contrapõe a isso seu sensato cultivo dos impulsos: transfiguração da existência é sua receita para a recuperação da integridade. Contra a concepção idílica de uma humanidade pacífica e compassiva, à maneira de Rousseau – como um jardim adâmico de que se deve extirpar as "ervas daninhas" –, Nietzsche propõe a sublimação do caos pulsional como caminho de grandeza para o indivíduo e para a cultura. Esse imoralismo é um sintoma de saúde e um expediente que disciplina para a grandeza. Ele aponta em direção a um tipo antitético de regime dos afetos. É dele apenas que se pode esperar uma superação da perspectiva da indigência, cuja estratégia é inibição e amputação das forças, a desertificação que tem como consequência inevitável a mediocrização da vida humana. Por isso, esse diagnóstico desempenha um papel central em sua crítica à modernidade, pois o traço distintivo do mundo moderno é a valorização do corte mediano, do pequeno.

"O que é medíocre no homem típico? Que ele não compreende o avesso das coisas como necessário: que ele combate os estados penosos, como se pudéssemos prescindir deles; que ele não quer admitir uma coisa com a outra – que ele quer apagar e suprimir o caráter típico de uma coisa, de uma condição, de um tempo, de uma pessoa, ao aprovar apenas uma parte de suas propriedades e desejar eliminar as outras. A pluralidade dos elementos e a tensão dos opostos é a pré-condição para a grandeza do homem. Que o homem tem que se tornar melhor e pior, esta é minha fórmula para essa inevitabilidade." (Nietzsche, 1980c, pp. 519 e s.)

Contra a indigência, Nietzsche mobiliza a exuberância; contra a amputação, o cuidado; em outras palavras: integridade e saúde, contra extirpação e debilitação. Dadas essas coordenadas principais da genealogia nietzschiana, não pode restar qualquer dúvida: o preço da civilização é a fragmentação do animal instintivamente saudável, inteiro e feliz. Porém, os fragmentos podem ter duplo destino: ou se dissipar, figurando, então, carência e perda; ou serem reunidos e combinados num belo e bem acabado mosaico. Nisso se diferenciam os dois regimes dos impulsos, ou as duas dietéticas culturais das paixões.

"A maior parte [dos homens] exibe o homem apenas como fragmentos e singularidades: só quando as calcula em conjunto é que emerge um homem: tempos inteiros, povos inteiros têm nesse sentido algo de fragmentário; pertence talvez à economia do desenvolvimento humano que o homem se desenvolva fragmentariamente." (Nietzsche, 1980c, pp. 519 e s.) Percebe-se, então, que também em direção a essa saúde e integridade psíquica, o caminho entrevisto por Nietzsche é o da autossuperação, da reunião do fragmentário pela via da cultura. Contrapondo Rousseau, como modelo do homem moderno, a Goethe – que então refletiria o ideal oposto –, Nietzsche mostra como a figura do humano, assumida por este, é plena, integradora, tendo conquistado o domínio de si não por meio da condenação moral dos impulsos, que leva à necessidade de extirpação e à rigidez:

Goethe – não um acontecimento alemão, mas europeu: uma formidável tentativa de superar o século XVIII com um retorno à natureza, com um ascender à naturalidade da Renascença, uma espécie de auto-superação por parte daquele século. – Ele carregava os mais fortes instintos deste: a sensibilidade, a idolatria da natureza, o elemento anti-histórico, o idealista, o irreal e revolucionário (– sendo esse último apenas uma forma do irreal). Ele recorreu à história, à ciência natural, à Antigüidade, também a Spinoza, sobretudo à atividade prática; cercou-se apenas de horizontes delimitados; não se desprendeu da vida, pôs-se dentro dela; não era desalentado, e tomou tanto quanto era possível sobre si, acima de si, em si. O que queria era a totalidade; combateu a separação de razão, sensualidade, sentimento, vontade (– pregada, com horrendo escolasticismo, por Kant, o antípoda de Goethe), disciplinou-se para a inteireza, criou a si mesmo... [...] Goethe concebeu um homem forte, altamente cultivado, hábil em toda atividade física, que tem as rédeas de si mesmo e a reverência por si mesmo, que pode ousar se permitir todo o âmbito e a riqueza do que é natural, que é forte o suficiente para tal liberdade; o homem da tolerância, não por fraqueza, mas por fortaleza, porque sabe usar em proveito próprio até aquilo de que pereceria a natureza média; o homem para o qual já não há coisa proibida senão a fraqueza, chame-se ela vício ou virtude... (Nietzsche, 2006, pp. 98-99)

Aqui aparece, numa luz quase crua, a que típico resultado pode conduzir a diferença entre o moral-castratismo e o cultivo imoralista das pulsões: o artista Goethe aparece como um exemplo bem-sucedido de integridade, força e saúde: um ideal de redenção na grandeza. Nele a tolerância não é efeito da pusilanimidade e da impotência, mas brota da força e da plenitude, da integração das paixões: só o isolado e singular é condenável – na bela totalidade, tudo se reconcilia e se afirma. Herdeiro espiritual de Rousseau, no campo da arte, Richard Wagner proporciona outra ocasião privilegiada para estudar de perto as consequências do moralismo. O caso Wagner é diagnosticado por Nietzsche como síndrome exemplar dos infortúnios da alma moderna. Nesse sentido, Wagner não é visto apenas como doentio, ele próprio é antes uma doença nervosa – ou melhor, a forma tipicamente moderna da neurose.

"Eis o ponto de vista que destaco: a arte de Wagner é doente. Os problemas que ele põe no palco – todos problemas de histéricos – a natureza convulsiva de seus afetos, sua sensibilidade exacerbada, seu gosto que exigia temperos sempre mais picantes, sua instabilidade, que ele travestiu em princípios, e, não menos importante, a escolha de seus heróis e heroínas, considerados como tipos psicológicos (– uma galeria de doentes!): tudo isso representa um quadro clínico que não deixa dúvidas. Wagner est une névrose [Wagner é uma neurose]." (Nietzsche, 1980a, p. 22)

A essa forma de neurose conduz a economia eclesiástico-moral das paixões. Também aqui o enigma Wagner é decifrado num percurso genealógico no qual o argumento ad hominem é convocado como estratégia de uma sintomatologia da cultura: "nunca ataco pessoas – sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral porém dissimulado, pouco palpável. [...] Assim ataquei Wagner, ou mais precisamente a falsidade, a bastardia de instinto de nossa 'cultura', que confunde os sofisticados com os ricos, os tardios com os grandes" (Nietzsche, 1995, p. 32).

E, na medida em que o homem moderno, enquanto último homem, é o resultado de um processo de autorrebaixamento do valor humano, de sua redução à estatura da pulga autocomplacente, o símbolo Wagner representa também a projeção artística de nossa miséria cultural; nesse sentido, ele é o herdeiro legítimo de Rousseau, sendo "admirável e encantador somente na invenção do mínimo, na criação do detalhe – nisso terá toda razão quem o proclamar um mestre de primeira ordem, nosso maior miniaturista da música, que num espaço mínimo concentra uma infinitude de sentido e doçura. Sua riqueza de cores, de penumbras, de segredos da luz agonizante, vicia de tal modo, que em seguida os outros músicos parecem demasiado robustos" (Nietzsche, 1980a, p. 28).

A fórmula conceitual para a enfermidade característica de Wagner é, para Nietzsche, a decadência. Esta, por sua vez, tem como seu principal sintoma a desagregação, a impotência em manter os extremos pulsionais reunidos numa totalidade. Justamente porque os impulsos e as paixões antagônicas não podem mais ser reconciliados e integrados, em grande estilo, numa totalidade viva, é necessário sufocar os antagonismos pela extirpação das paixões perigosas, nocivas: é necessário narcotizar, entorpecer, combater, extraviar, castrar. Ter que renegar e combater os impulsos – essa é, para Nietzsche, a própria fórmula da decadência e da enfermidade de que padece o mundo moderno.

É por isso que o miniaturista Wagner pode ser estilizado também como o antípoda de Goethe: de modo análogo, a filosofia política de Rousseau e a metafísica da arte de Wagner podem ser vistas como "antropotécnicas" do pequeno, enquanto que a poesia de Goethe é receituário para a grandeza, a partir do excesso, sendo que a última palavra da obra de arte total de Wagner é a apologia da castidade e do ascetismo – daquela castração, que gera neurose, idealismo histérico e necessidade de narcose. No extremo oposto, temos em Goethe a glorificação pagã da natureza e a divinização dos impulsos.

Goethe e Wagner, duas metáforas artísticas para o destino da autocriação humana na história: de um lado, o rebaixamento definitivo do homem a animal anão, uniforme e anônimo, condenado ao bem-estar dos medíocres prazeres iguais, perseguindo um ideal mercantilista de "felicidade das verdes pastagens do rebanho, cheia de segurança, livre do perigo, repleta de bem-estar e de felicidade de vida para todo mundo" (Nietzsche, 1980b, pp. 60 e s.). No outro extremo, posta-se o herói trágico, que é capaz de suportar e bendizer a mais extrema tensão no arco de suas possibilidades existenciais.

Para Nietzsche, o excesso é justamente o signo de um progresso que é ascensão, porém na direção de uma economia natural dos impulsos. Aquilo que, efetivamente, está em jogo é a criação das condições para o surgimento do tipo psicológico superior, no qual a força se transfigura em beleza, a rigidez moral se converte em probidade intelectual, e a severidade em graça e leveza. A tarefa que Nietzsche se propõe é nada menos do que esculpir a figura possível de um grandioso futuro humano. Uma expressiva caracterização precoce da figura do Além-do-Homem assume a forma da tensão entre a "animalidade" e as mais refinadas figuras do psíquico, moral e intelectual. Em seu monumental balanço extraído dos empreendimentos teóricos de Nietzsche e de Freud, escreve Reinhard Gasser: "O consórcio entre espontaneidade e faculdades intelectuais altamente complexas, entre a temeridade do desejo e a delicada organização das paixões, remete finalmente a uma concepção muito juvenil do Além-do-Homem. Em que consistirão, pergunta Nietzsche, as profundas transformações vindouras, depois de que 'nenhum Deus vela por nós', nenhuma 'lei ética eterna' se apresenta como garantia para o homem? Significa isso que 'somos animais'? Que nossa vida se esvai? Que somos irresponsáveis?' Sua resposta: 'O sábio e o animal se aproximarão e um novo tipo surgirá" (Gasser, 1987, p. 404).

 

Referências

Gasser, R. (1987). Nietzsche und Freud. Berlin/New York: W. de Gruyter.

Nietzsche, F. (1980a). Der Fall Wagner [O caso Wagner]. In F. Nietzsche. Sämtliche Werke (Kritische Studienausgabe, KSA, ed. G. Colli und M. Montinari, vol. 6). Berlin/New York/München: W. de Gruyter, DTV.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1980b). Jenseits Von Gut und Böse [Para além de bem e mal]. In F. Nietzsche. Sämtliche Werke (Kritische Studienausgabe, KSA, ed. G. Colli und M. Montinari, vol. 5). Berlin/New York/München: W. de Gruyter, DTV.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1980c). Fragmentos póstumos. In F. Nietzsche. Sämtliche Werke (Kritische Studienausgabe, KSA, ed. G. Colli und M. Montinari, vol. 12). Berlin/New York/München: W. de Gruyter, DTV.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1980d). Fragmentos póstumos. In F. Nietzsche. Sämtliche Werke (Kritische Studienausgabe, KSA, ed. G. Colli und M. Montinari, vol. 13). Berlin/New York/München: W. de Gruyter, DTV.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1980e). Die dionysische Weltanschauung [Visão dionisíaca do mundo]. In F. Nietzsche. Sämtliche Werke (Kritische Studienausgabe, KSA, ed. G. Colli und M. Montinari, vol. 1). Berlin/New York/München: W. de Gruyter, DTV.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1995). Ecce homo (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2000). Humano, demasiado humano (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

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Nietzsche, F. (2011). Assim falou Zaratustra (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
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Recebido: 24/09/2012
Aceito: 02/10/2012

 

 

* Filósofo, professor titular de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor de Filosofia na Universidade Pontifícia Católica de São Paulo (PUC).
1 Para o Dr. Paulo César Sandler, com profundo respeito e gratidão.