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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo ene. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

Tempo de excessos

 

A time of excesses

 

 

Eva Maria Migliavacca*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A guerra já foi chamada de tempo de exceção. Contudo, caracteriza-se por ser tempo de excessos. O ser humano convive com guerras desde sempre; seus efeitos são muitas vezes expressos nas várias formas de arte. Esse texto destaca um exemplo da poesia e um da pintura, cujo valor e representatividade ultrapassam os limites temporais e geográficos.

Palavras-chave: Guerra, Poesia, Pintura, Seféris, Goya.


ABSTRACT

War has already been called a time of exception. It is, however, a time of excesses. Human beings have lived with war since forever; its effects are often expressed in different art forms. This essay highlights one example from poetry and one from painting, whose value and representativeness transcend temporal and geographical limits.

Keywords: War, Poetry, Painting, Seféris, Goya.


 

 

No final da década de 30, o poeta grego Giorgos Seféris, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1963, acompanhou escavações em um sítio arqueológico em Assine, na região do Peloponeso, e teve a oportunidade de assistir à descoberta de uma máscara de ouro semelhante à mui conhecida suposta máscara de Agamêmnon, que está no Museu Arqueológico de Atenas. Uma máscara de ouro, oca. Inspirado, o poeta preenche o oco daquela máscara com um de seus mais belos poemas, O rei de Assine. Aquele rei lutou em Troia, e sua presença na guerra foi salva do esquecimento absoluto porque Homero o cita ao final do Catálogo das Naus, na Ilíada (canto II, v. 560), sendo essa referência "tudo o que resta de um rei e de um reino para sempre perdidos na escuridão do passado" (Paes, 1985, p. 146). Seféris o recupera e o imortaliza na melancolia de sua poesia.

Tradutor de Seféris para o português, o também poeta José Paulo Paes (1985), ao comentar O rei de Assine, associa-o com a indagação de Hölderlin: "De que servem os poetas em tempos pusilânimes?", epígrafe do Diário de Bordo I, volume que inclui aquele poema. Tal pergunta, diz Paes, era sinistramente oportuna naqueles tempos – quando o poema foi composto1 – dias de pusilanimidade marcados pelo espírito do nefasto e equivocado Pacto de Munique2, que contribuiu para pavimentar os campos da Segunda Guerra Mundial.

Quando olhamos os acontecimentos da época atual, sem perder de vista o quanto eles se repetem ao longo da história passada e prevendo desdobramentos futuros, é inevitável considerar que a atormentada pergunta de Hölderlin, de Seféris e de Paes, também seja nossa.

Em artigo recente, traduzido e publicado pela Folha de São Paulo em 10/09/2012 (Caderno New York Times, p. 2), Roger Cohen lembra o 75º aniversário da Guernica, de Picasso. Aquela pequena cidade foi bombardeada pelos nazistas, a pedido de Franco, que não tolerava oposição a seu regime de ferro. O horror do massacre mobilizou o mundo e Picasso fez, comenta Cohen, "o que todo grande artista faz: destilou emoção em uma expressão eterna, através da imaginação e do rigor formal. Ele pegou os mais de 1600 mortos e fez de sua morte em um ataque insensato uma imagem tão atemporal que bem poderia expressar a matança atual, por outro tirano, de civis sírios em Alepo". Cohen cita e concorda com uma afirmação de Picasso de que a grande arte é política. No entanto, diz ele, "'Guernica' falhou em um sentido. Ele foi pintado para despertar a consciência contra o fascismo e impedir sua disseminação. Mas dois anos depois, Hitler havia mergulhado a Europa na Segunda Guerra Mundial".

Guernica foi apresentada em Paris em 1937 e depois levada para New York. Picasso teria ordenado que só fosse transferida para a Espanha quando o país estivesse sob regime democrático. Desde setembro de 1981 encontra-se exposta no Museo Reina Sofia, Madrid.

O ponto final da Segunda Guerra foi dado num espaço de três dias, 06 e 09 de agosto de 1945, em Hiroshima e Nagasaki, arremate de anos de horrores costurado com outras dezenas de milhares de mortes. Em fotos do Memorial de Hiroshima3, moradias, hospitais, bancos, igrejas, universidades, todos os prédios caíram literalmente por terra em minutos. Em meio aos escombros, o infinito grito de dor de pessoas, cujas vidas abruptamente interrompidas se esvaíram em fumaça. Entre o começo e o fim, desastres sobre desastres. Dentre eles, os inomináveis campos de concentração e extermínio, que têm em Primo Levi um de seus mais fortes testemunhos. Enxuta, direta, sem concessões e sem apelos emocionais supérfluos, a voz de Levi em É isto um homem?, de 1948, por exemplo, leva-nos a compor uma cena aproximada do que aconteceu, mas também nos leva à conclusão de que ficamos muito longe de alcançar a realidade daquela experiência.

Erich Maria Remarque escreveu Nada de novo no front, pequeno livro, hoje, desconfio, pouco lembrado ou lido, no qual relata os estratagemas de sobrevivência nas trincheiras da assim chamada Grande Guerra. Na guerra, todas as referências que organizam a vida modificam-se radicalmente. O relato de Remarque sobre o sentimento de estranheza ao retornar a casa, em um período curto de licença, prenuncia o desajuste absoluto a uma vida que perdeu o sentido. Esse mesmo sentimento encontra eco atual na arte cinematográfica em Guerra ao terror, filme de 2008, dirigido por Kathryn Bigelow: o jovem perito em desarmar bombas não consegue mais adaptar-se à vida caseira com sua bela esposa e gracioso filhinho. "O horror, o horror" (Conrad, 1984, p. 115) penetra as moléculas e passa a ser o acompanhante constante. Todorov, em prefácio a I sommersi e i salvati, também de Levi, escreve sobre a recorrência da guerra e das ações humanas cruéis e alerta: "[...] se antes de indignar-se, é preciso esperar que o sofrimento humano alcance o ápice de Auschwitz, então poder-se-á esperar ainda muito tempo e, com a consciência tranquila, fazer ouvidos moucos ao lamento dos homens e dos povos4" (2007, p. VIII). Primo Levi, que, como também assinala Todorov, foi ficando cada vez mais melancólico, suicidou-se em 1987; que homem ou santo pode condená-lo?

O século XX carrega a coroa nada honrosa de século das guerras (Ehrenreich, 2000). Sejam mil e seiscentos, cento e quarenta mil, seis milhões, seja um número que ainda não foi possível fechar, ou aqueles que nos chegam hoje, no século XXI, pelos noticiários, esses cálculos levam-nos a um estado próximo da abstração; quase esquecemos que o desaparecimento de uma vida apenas já é a morte definitiva e irrecuperável de um universo. Um dia chamado de "esporte dos reis"5, qual ordem no mundo poderia realmente justificar as guerras, esse excesso dos excessos?

 

Ontem e sempre

A Ilíada é o mais antigo texto literário europeu. Notável fruto do espírito grego antigo, ela constitui-se como um poema nascido de excessos. Em seu centro, a ira de Aquiles, cuja retirada da batalha no cerco à cidade de Troia ocasiona uma sucessão de acontecimentos sangrentos. Talhado para as ações guerreiras, o herói ofendido recusa-se a lutar; sua ausência estimula os troianos a avançar e os dois exércitos se enfrentam violentamente em combates selvagens. Ou então, notável, a beleza de Helena que, por seu fascínio irresistível, arrasta milhares de homens à morte. Prisioneira das circunstâncias que se desencadeiam por efeito de seu encanto, Helena exerce um poder do qual também é vítima. É pela boca dos anciãos de Troia, cidade que sofre o pior, que melhor se expressam os sentimentos que a presença e a existência, ou o próprio Ser de Helena, provocam: "Não admira que Troianos e Aqueus de formosas grevas tenham, por tal mulher, padecido tanto tempo. Espantoso é ver como seu rosto semelha o rosto dos imortais. Entretanto, a despeito de sua beleza, melhor fora que tornasse aos navios e não continuasse aqui, flagelo para nós e, ao depois, para nossos filhos" (Homero, 1961, canto III, p. 65); célebre elogio à beleza feminina no que ela contém de arrebatador e de mortífero.

A Ilíada é repleta de cenas de incomparável beleza, ainda que muitas vezes cruas e dolorosas. No entanto, por mais que suas descrições sejam vivas e detalhadas, por mais que Homero exalte o heroísmo dos combatentes, suas qualidades e seu valor ou suas habilidades em sobrepujar o inimigo, em nenhum momento encontramos na Ilíada, poema da guerra por excelência, a apologia dessa mesma guerra. Homero retrata as devastações, o sofrimento, a morte, as dores e os horrores da guerra, sem jamais exaltá-la como algo desejável. A narrativa, épica, vigorosa, marcante, tantas vezes elevada, mantém todo o tempo um olhar que se resume em um de seus mais célebres versos: "não tem fratria, não tem lei, aquele que ama a guerra intestina, que gela de terror" (Homero, 1961, canto IX, p. 154). Cenas de horror como aquelas concentradas no Guernica povoam esse poema, ainda que seu desfecho extraordinário acentue a dor, a perda, o luto e a compaixão. Na beleza do poema, aquele que foi e é conhecido como O Poeta, imprime as consequências dolorosas da insensatez humana, impregnando-as de profundo amor pela Humanidade.

É do espírito grego também que nasce a noção de hybris, modo de conceber um estar no mundo e viver a vida calcado na moderação. Hybris não contém um vértice moral; contém, sim, a consciência de que toda ação excessiva traz embutida, nela mesma, consequências funestas inevitáveis. Expressa a convicção de que todo ato que ultrapassa a medida traz em seu bojo a devastação à qual está inarredavelmente atrelado, algo equivalente ao retorno do chicote.

Entretanto, curiosa é a espécie à qual pertencemos. A presença humana no mundo é, por experiência e por definição, contraditória. Constrói e destrói, arrasa e realiza. A História ensina. Por exemplo, na mesma Atenas em que o fulgor da tragédia lançou seu facho imperecível, com sua original concepção de um homem consciente de si e de sua responsabilidade no mundo, em que se consolidaram as bases da democracia moderna e de tantas instituições atuais, fonte de quase todas as formas literárias, em que a arte atingiu um ápice esplêndido, naquela mesma Atenas berço da filosofia, ali e na mesma época germinou a Guerra do Peloponeso que, por 30 anos, corroeu o "milagre" grego e abriu as portas para o enfraquecimento e derrocada definitiva da civilização à qual tanto deve o mundo ocidental. Idealizadores da concepção filosófica das quatro grandes virtudes – "coragem, temperança, justiça, sabedoria" (Bowra, 1985, p. 86) –, os gregos antigos ilustram bem a afirmação de Festugière (1988) de que uma civilização se assenta mais naquilo que concebe como ideal do que naquilo que consegue realmente realizar. Afirmação inspiradora sim, mas que tangencia perigosamente o limite da complacência.

A guerra intestina, que corrói a vida e a sociedade humana em seu cerne, palco de atos tantas vezes classificados como heroicos e que, ao fim e ao cabo, têm como objetivo nada mais nada menos do que a sobrevivência, esse "esporte de reis", guerras atuais e antigas acompanham o homem em sua jornada na terra desde sempre.

Norberto Bobbio, um dos grandes pensadores do século XX, falecido em 2004, em O terceiro ausente, apresenta muitos e bem articulados argumentos que derrubam e demolem qualquer justificativa para as guerras. Ele analisa as definições de guerra "justa", "mal menor", "mal necessário", "como um bem", "evento natural ou providencial", argumentando contra o que as sustenta de tal modo que qualquer aceno a eventuais ganhos que as guerras possam trazer caem fragorosamente por terra diante das imensas perdas e do custo humano, social e econômico, assim como moral. A objeção às guerras, conclui, torna-se "um problema de consciência para todos" (Bobbio, 2009, p 25).

Ehrenreich desenvolve sua tese sobre a origem das guerras como sendo a remota e onipresente relação presa-predador-presa entre homens e animais. Ela destaca o lado sanguinário presente não só na natureza, como nas instituições humanas, em especial as religiosas. Para ela, a guerra preserva "o rosto do predador que pensávamos ter derrotado há muito tempo" (Ehrenreich, 2000, p. 244). Soluções para alterar o destino? Canalizar as emoções que se mobilizam para e nas guerras a fim de reforçar os movimentos antiguerra. No entanto, é conhecida a pouca eficácia que a indignação pública tem nas decisões dos governantes. Além disso, ela reconhece que, muitas vezes, a indignação que deveria ser dirigida contra a guerra, tem como alvo os guerreiros. Essa distorção abre o campo para que o revolucionário de hoje seja o opressor de amanhã e se conduza de modo semelhante. A História também está coalhada de exemplos desse tipo. O tema é angustiante.

Bobbio, por sua vez, é um pensador amante do diálogo. Em belíssima página autobiográfica, na qual reconhece as dificuldades de praticar essa arte sem ceder às tentações da polêmica, propõe que: "A capacidade de dialogar e de trocar argumentos, em vez de acusações recíprocas acompanhadas de insultos, está na base de qualquer pacífica convivência democrática" (Bobbio, 1997, p. 10). É lúcido, porém, e capaz de reconhecer o quanto é difícil um diálogo verdadeiro. Um conflito da natureza das guerras poderia ser solucionado pacificamente pela mediação do que ele chama "um Terceiro no qual as partes confiem e ao qual se submetam" (Bobbio, 2009, p. 280). No entanto, esse Terceiro – uma federação de países, uma instituição social ou religiosa, um grupo não violento, isto é, uma força externa às partes, com suficiente autoridade moral para essa ação –, ele reconhece, não existe. Além de angustiante, a tarefa é realmente formidável.

Como o espírito humano absorve seus efeitos para não sucumbir e continuar sua jornada de, talvez, alguns milhões de anos? Convivemos com as guerras, das quais já se disse que são tempos de exceção; certamente são mais tempos de excessos. Suportamos. Ansiamos por seu fim. E procuramos modos de expressar os efeitos emocionais que sofremos, estejam elas mais próximas ou mais distantes. Quando dotados daquela capacidade misteriosa que se chama talento, somado às competências técnicas, tais expressões tomam formas artísticas. Pois pertencemos a uma curiosa espécie: capaz de cultivar árvores vigorosas que nascem e frutificam em campos devastados. Tendo isso em vista, neste texto mínimo, além de irregular, sobre um assunto imenso, farei um giro em direção ao que apresentei no início, ainda que não de modo rigoroso.

 

Arte

Em um de seus primeiros textos, Freud (1893/1978a) empresta a observação de um poeta, que diz que o homem civilizou-se na primeira vez em que insultou um inimigo ao invés de matá-lo. Desde então, aquele homem civilizado vive um processo ininterrupto de perda e reconquista daquele instante iluminado e fugidio. A substituição de um ato destrutivo por uma ação simbólica, que a representa, liberta o homem do determinismo exclusivo da natureza, e evidencia o nascer e possibilita o desenvolver da psique. No entanto, o ponto de chegada é novo ponto de partida, em um caminhar que reinicia a cada vez que nasce uma criança, sem nunca chegar ao fim. Constitui-se assim uma dinâmica contínua e incessante, ainda que não linear, na qual se revela o engenho humano em construir e expressar a experiência do viver em suas inúmeras facetas.

Talentos especiais, como na arte, possibilitam realizações que adquirem um valor social que ultrapassa limites temporais e geográficos. São realizações com as quais nos identificamos, as quais preservamos e apreciamos por aquilo que contêm de verdadeiro quanto à captação e composição, no plano sensorial, da realidade não-sensorial e da vida em sua variedade infinita, fruto e alimento da vida psíquica.

As artes registram uma experiência humana particular e subjetiva, de significado específico para o artista, mas que se estende no espaço e no tempo de forma a adquirir valor aos olhos dos homens de qualquer época e lugar. O artista representa de modo peculiar aspectos da realidade, como ele os capta. Nesse sentido, arte é memória. Seja o movimento do mundo em que vive, seja sua vivência íntima, ou ainda o fruto do confronto entre o fato e o significado que ele atribui ao fato, o resultado do ato artístico torna-se memória de sua pessoa, de sua existência e experiência individual, e também de sua época. Valorizado ou não, aceito ou não pela sociedade sua contemporânea, tal ato sempre é memória. Muitas vezes só adquire status de obra de arte bem depois da morte do artista.

Acredito que isso serve para todas as formas de arte, as da escrita, as plásticas, as visuais, as musicais. Na pintura, por exemplo, todo quadro é também autorretrato do pintor; cada pincelada expõe uma parcela de sua alma, de seu ser, ou antes, das transformações que ele fez das impressões da realidade na qual está inserido, impregnadas da vida imaginativa que o habita. Se ele retrata, consciente ou intuitivamente, como capta e vive os acontecimentos de seu tempo, sua obra torna-se um legado, mesmo que ele não tenha se proposto a isso.

Na tradição hesiódica, as artes são presididas e inspiradas pelas Musas, filhas de Mnemosine. Mnemosine é Deusa. Mnemosine é Memória. Ela não representa a memória, mas é a própria. Suas filhas Musas encarnam e expressam as várias realizações artísticas: nelas está contida, ainda que não só, a memória do passado, que nos ajuda a explicar o presente e conjeturar o futuro.

Mnemosine é memória concreta, memória de eventos e da existência de indivíduos dotados da capacidade de captá-los e expressá-los em suas obras, sim; mas, acima de tudo, memória de uma experiência emocional, estética e intelectual, a qual podemos supor sem jamais alcançar integralmente. São obras que, ao mesmo tempo em que evidenciam experiências acontecidas no passado, adquirem um valor humano que transpõe limites temporais e geográficos. Dentre tantos homens iluminados que passaram pela terra, escolho um bem próximo ao tema desse texto, além de ser dos que mais admiro.

 

Goya

Goya, primeiro e principal pintor da corte de Carlos IV da Espanha, ficou completa e irremediavelmente surdo aos 46 anos. Surdo, ele ouviu os gritos de dor, horror e desamparo das pessoas de seu tempo, retratando-os com bocas buracos em busca de consolo nos céus6.

Em recente biografia do pintor, farta de informações, o crítico de arte Hughes, há pouco falecido, traça um panorama das convulsões políticas e sociais pelas quais passou a Espanha do século XVIII ao XIX, percorrendo as contradições do governo dos Bourbons em seus aspectos benéficos e perniciosos para as pessoas e o país. Ele desenrola sob nossos olhos as vidas de homens e mulheres usando e sendo usados por circunstâncias sempre mutáveis e incertas, soprando e sendo soprados pelos ventos das influências e do poder. Hughes destaca os horrores decorrentes das Guerras Napoleônicas e da Inquisição, com seus nefastos efeitos sobre a vida na Espanha, impondo um fardo de violência, mortes, doenças, abandono, dor e medo. Se considerarmos a ascensão de Franco no século XX, pouco aprendeu a Espanha com seu passado. No entanto, isso está longe de ser exclusividade sua: qual país seria exceção?

Francisco Goya y Lucientes (1746-1828) acompanha de perto e sofre diretamente o impacto daquelas convulsões. Teve tempo para isso: viveu 82 anos, uma façanha e tanto, já que a expectativa de vida pouco ultrapassava os 50 anos mesmo entre os ricos, e dificilmente os 35 para os trabalhadores!

Um dos testemunhos, se é que podemos arriscar essa palavra, dos recortes de percepção de Goya são as Pinturas Negras. Assim como na série de gravuras Desastres da guerra, as Pinturas Negras foram mantidas por Goya longe do público; ele as fez para si. Pintadas nas paredes de sua casa, são enigmáticas como conjunto, quem sabe tivessem significados subjetivos impublicáveis, quem sabe fossem tentativas de solucionar problemas pictóricos (um dos pontos altos de angústia de todo pintor, segundo Baxandall), ou ainda retratos de pesadelos de Goya. Como todo enigma, a resposta tem variantes, mesmo que todas convirjam para o mesmo ponto.

Goya observa e vê as atrocidades da guerra. O que ele vê tem um efeito em seu espírito: expressa o que vê, assim como o efeito que sofre, pela pintura. Como em Duelo con garrotazos7.

 

 

O quadro põe em evidência a força, a violência, o impulso dos contendores, em luta com bastões. Pode-se prever um resultado sangrento. O rosto de um deles já está ensanguentado. Um dos aspectos mais impressionantes e significativos é o fato de que os lutadores não têm pernas, só coxas e joelhos. Em geral, interpreta-se como os lutadores se afundando na lama e destinados a serem engolidos por ela, numa alusão à violência aterrorizante que Goya presenciava na Espanha do vingativo e irrefreável Felipe VII. Podem-se fazer outras sugestões: os contendores estão nascendo da terra, brotando, saindo para o mundo da superfície, representação da violência sem controle já prenunciada na gravura El sueño de la razón produce monstros (1796-7). A terra, mãe nutriz, também gera o monstruoso e o destrutivo. É da terra que nascem as forças brutas e incontroláveis. Forças às quais o homem está submetido, as mais desconhecidas e temíveis; que o levam a destruir a si mesmo e a seus semelhantes.

Mais ainda ele expressou tal violência no pungente conjunto de gravuras Desastres da guerra, retratos da dor e do horror extremos que o homem é capaz de infligir ao homem. São gravuras que podemos afirmar com segurança não terem nascido da imaginação do pintor, mas sim de sua experiência real. Qualquer uma seria uma ilustração significativa. Pois ele faz uma obra que revela sua experiência particular, subjetiva, única – mas também comum aos homens desde sempre. Pertencemos a uma espécie capaz de muitas coisas admiráveis, mas também somos feras e de algum modo a violência que nos habita há de se expressar – nem sempre ao modo de Goya.

 

 

Goya - Grande hazaña. Con muertos. Desastres da guerra8, lâmina 39. 1810-1815

O início do século XX viu outros artistas, como Dix e Grosz, ou Segall, que deixaram suas impressões e veementes protestos em quadros inesquecíveis, espelhos das atrocidades da Primeira Guerra Mundial. E, em tempos mais recentes, no campo da fotografia, Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro conhecido internacionalmente, registrou o medonho conflito entre Tutsis e Hutus em Ruanda, em 1980. Excelentes como fotografias e terríveis em seu retrato inequívoco do corpo humano destroçado quando a vida do espírito se apaga, são cenas que fazem com que deixemos de ter qualquer dúvida quanto às pinturas de Goya serem reais – se é que as tínhamos.

No campo social como na vida individual, o problema assinalado por Freud em 1893 descobre a natureza humana e cobra do homem uma ação e uma expressão. O homem responde, como grupo ou como indivíduo. A resposta pode dar vazão à destrutividade ou a realizações de caráter integrador, contribuições para o incremento do acervo de valores humanos. As soluções são pessoais.

O homem e o mundo vivem mergulhados em guerras e violência desde sempre. O rebelde contém em si o ditador. Aqueles que derrubaram o rei e a aristocracia na Revolução Francesa instauraram, por sua vez, o reinado do terror; a flor de lis deu lugar à guilhotina. A derrubada da dinastia Romanov abriu caminho para que baixasse a Cortina de Ferro. No Brasil, o temor à opressão colocou a ditadura opressora no poder. São inúmeras as razões que levaram a essas e tantas outras mudanças, tema esse, na verdade, mais do escopo do historiador e do sociólogo do que do psicanalista. No entanto, o homem repete-se. Bem o soube Freud (1914/1978b), quando pôs à disposição dos psicanalistas o conceito de compulsão à repetição, insight dos mais notáveis em sua obra, que decidiu o rumo metodológico da prática clínica.

Contradições e incongruências coexistem no espírito de cada indivíduo. Podem expressar-se no grupo ou serem estimuladas pelo grupo. Conseguir separar-se intimamente desses aspectos e fazer uma reflexão ou mesmo expressá-los de algum modo requer desenvolvimento de recursos internos, recursos esses ainda de difícil definição e precisão. Talvez essa tarefa, sim, caiba ao psicanalista mais do que a qualquer outro.

 

Poesia

Giorgos Stilianós Seferiadis nasceu em 1900 e morreu em 1971. Nomeado adido do Ministério das Relações Exteriores em 1926, exerceu, até 1962, funções diplomáticas como cônsul e embaixador em países da Europa e do Oriente Médio. Sua poesia contém o tema das guerras em todo seu absurdo. Se durante a Primeira Guerra ele era um adolescente, durante a Segunda era um homem feito com experiência política. Há anos ele portava dentro de si o que chamou "mal da Grécia", dor nascida do contraste entre um passado fulgurante e "a presente realidade de miséria e decadência" (Paes, in Seféris, 1995, p. 12, prefácio), que, transformada em versos, escapa e se estende para o mundo, oferta gratuita a todos os passageiros da vida, que somos.

Pois, ainda que os homens não cessem de guerrear a má guerra, os poetas continuam a cantar seu canto e deixam um registro da vida do espírito. A poesia apresenta o homem a si mesmo, em um movimento sem fim. Ela retém, como também o fazem outras formas de arte, como a pintura de Goya ou a de Picasso, a memória da experiência humana no mundo. A palavra do poeta seria o fogo vivo pelo qual a memória da existência e dos acontecimentos perpetua-se no tempo e nunca se apaga.

Então, à pergunta "para que servem os poetas seja em tempos pusilânimes, seja em tempos heróicos?", o próprio Paes extrai do poema de Seféris uma resposta iluminadora. Os poetas, e também, como não?, os pintores e outros artistas, servem "para impedir que o tempo passe em vão, que a máscara da História fique vazia de presença humana e que o mundo termine num quase inaudível guincho de morcego" (Paes, 1985, p. 148).

O rei de Assine

Assíne te...

Ilíada

A manhã toda olhamos em redor da fortaleza
a começar do lado da sombra, sítio em que
o verde mar sem brilhos, arnês de pavão morto,
nos acolheu como um tempo sem lacunas.
As estrias da rocha desciam lá do alto:
vinha nua e torcida, seus múltiplos sarmentos
reviviam ao toque da água e o olho a acompanhá-los
lutava por escapar ao fatigante embalo
cuja força ia sempre declinando.

Pelo lado do sol, uma longa praia aberta
e a luz a lapidar diamantes na muralha.
Nenhum ser vivo: as pombas, fugitivas,
e o rei de Assine, que há dois anos procurávamos,
ignoto, esquecido de todos, e de Homero
uma só palavra na Ilíada, mas dúbia,
ali deixada qual fúnebre máscara d'ouro.
Tocaste-a – lembras o som? – vazio dentro da luz,
jarro seco no chão escavado,
e o mesmo som no mar aos nossos remos.
O rei de Assine, um oco sob a máscara,
em toda parte conosco, conosco sempre, sob um nome:
"Assíne te... Assíne te..."

e seus filhos estátuas
e suas ânsias um tatalar de asa de pássaro e vento
soprando-lhe entre as cismas, seus navios
ancorados em porto indiscernível,
por sob a máscara, um oco

Além dos olhos grandes, da curva dos lábios, dos anéis dos cabelos
inscrito no ouro que nos cobre a existência,
um ponto tenebroso viaja como peixe
em meio à calma matinal do mar, e ali o vês:
vai um vazio conosco a toda parte.
E a ave que se foi de
asa quebrada
a um refúgio de vida no outro inverno
e a moça que fugiu para folgar
entre os dentes caninos do verão,
e a alma lamentosa buscando o mundo ínfero,
e o sítio, larga folha de plátano que o sol leva no seu fluxo
com os velhos monumentos e o pesar coevo.

E o poeta que se atrasa a contemplar as pedras pergunta a si próprio:
acaso subsiste,
entre estas arestas confusas, picos e cimos, ocos e curvas,
acaso subsiste
neste passo da chuva, do vento, da ruína,
subsiste o trejeito do rosto, a forma dos afetos
daqueles que estranhamente minguaram em nossa vida,
que ficaram como sombra nas vagas, pensamento no mar infindo?
Nem isso talvez deles sobrasse; nada, além do peso
ou nostalgia do peso de uma existência viva,
aqui onde ora estamos incorpóreos, pensos
como os ramos de um salgueiro terrível, tombado sobre o vão
[do desespero,
enquanto, citrino e lento, o rio arrasta para o lodo juncos
[extirpados,
forma feita em pedra em amargor perpétuo, pertinaz.
O poeta, um vazio.

Com seu escudo, o sol ascende, combatendo,
e do fundo da caverna um pávido morcego
inflete contra a luz qual seta contra o escudo –
"Assíne te... Assíne te": ali estava o rei de Assine
que nesta acrópole com tal ânsia procuramos,
nossos dedos lhe aflorando os rastros sobre as pedras.

(G. Seféris, 1995, p. 115-117)

 

Referências

Baxandall, M. (2006). Padrões de intenção – a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras.

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Remarque, E. M. (2010). Nada de novo no front. Porto Alegre: LPM.         [ Links ]

Seféris, G. (1995). Poemas (J. P. Paes, trad.). São Paulo: Nova Alexandria.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
EVA MARIA MIGLIAVACCA
Rua Joaquim Antunes, 226/12B
05441-040 – Pinheiros - São Paulo
tel.: 11 3062-3177
E-mail: emiglia@usp.br

Recebido: 01/10/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Membro efetivo da SBPSP e Professora Titular do Instituto de Psicologia da USP.
1 Entre 1938 e 1940.
2 Acordo pelo qual Inglaterra e França concordaram com a anexação da região montanhosa dos Sudetos, muro protetor da Tchecoslováquia, pela Alemanha, na crença de que Hitler também desejava a paz. Os eventos subsequentes mostraram até onde iam as ambições de Hitler. Considerado o maior desastre diplomático da História e um grande fracasso estratégico, o Pacto de Munique derrubou Chamberlain e alçou Churchill ao governo inglês (Buchanan, 2009).
3 Evento "Hiroshima e Nagasaki em São Paulo: testemunho, inscrição e memória das catástrofes". Instituto de Psicologia da USP. De 11/09 a 21/09/2012.
4 Tradução minha.
5 Teria sido dito pelo rei Carlos XII da Suécia a Pedro, o Grande, mas perdi a referência. Pedro, que preferia não guerrear, venceu a Grande Guerra do Norte e submeteu a Suécia.
6 Como em A peregrinação de San Isidro, de 1837.
7 Em 1874, o Barão Frédéric d'Erlanger, rico francês apreciador das artes, comprou a Quinta del Sordo, casa em que Goya viveu algum tempo ao final de sua vida. O barão adiou seus negócios e esperou dois anos antes de demolir a casa, até que o reboco das Pinturas Negras, feitas a óleo, fosse retirado das paredes e remontado em telas. Enviou-as, então, para serem expostas na Exposition Universelle de 1878, em Paris, mas a fria e até indiferente recepção o fez devolvê-las à Espanha, onde estão até hoje como uma das joias maiores do Museu do Prado. Considerando que d'Erlanger era um comerciante imobiliário, há muito que agradecer à sua generosidade. Duelo com Garrotazos é parte desse conjunto.
8 Série de 83 gravuras águas-fortes realizadas provavelmente entre 1810 e 1815. Só vieram a público em 1863. Museo Nacional del Prado, Madrid.