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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

A angústia e a tecnologia

 

Anguish and technology

 

 

Eugênio Benito Júnior*

Grupo de Estudos sobre Mitologia, Enologia e Gastronomia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O ser humano, capaz de contemplar as estrelas, fica, neste artigo, entre o excesso que pode matar e aquele que o livra do tédio de existir. O mito grego de Prometeu deu ao Homem, de uma só vez, a tecnologia e a angústia e, desde então, ele tem excedido o uso de uma para aplacar os efeitos da outra. Procurando evitar os efeitos perigosos do excesso de tecnologia, o filósofo heideggeriano Hans Jonas propõe uma ética para os tempos de alta tecnologia.

Palavras-chave: Tecnoética, Angústia, Mitos.


ABSTRACT

The human being, able to contemplate the stars, remains, in this paper, between the excess that can kill and that other one that releases him from the boredom of living. The Greek myth of Prometheus gave to man, at once, technology and anguish, and since then he has exceeded the use of one to assuage the effects of other. Aiming to avoid the dangerous effects of excessive technology, the Heideggerian philosopher Hans Jonas proposes an ethics for high technology era.

Keywords: Technoethics, Anguish, Myths.


 

 

 

 

Verso do poema russo1

Equilibrando-se perigosamente entre a euforia da descoberta do fogo e as inclementes e entediantes viagens que os nômades enfrentavam para continuar a viver é que nasceu a tecnologia. Entre a vodca e o tédio. A capacidade tecnológica do homem vem de tempos imemoriais, de tal maneira que se criou um mito para acomodar e explicar a ansiedade de não se saber como teria começado a aventura tecnológica sobre a face da terra. Esse mito é o de Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens. O fogo teria dado ao homem a capacidade de fazer ferramentas e armas e de cunhar moedas para facilitar as transações comerciais.

Hesíodo narra nos versos 510 a 516 na Teogonia como foi o aparecimento de Prometeu e seu irmão Epimeteu na constelação mitológica do Olimpo. Prometeu era filho de Jápeto, um titã irmão de Zeus, relação que estabelece que Prometeu e Zeus eram primos. O nome Prometeu é composto do prefixo grego pro (προ = antes) e da palavra manthano (μανθάνω = aprender), ou seja, Prometeu é o previdente, aquele que sabe das coisas antes que elas aconteçam. O irmão, Epimeteu, tinha a característica oposta, uma vez que o prefixo epi (επί = depois) dava uma conotação de que Epimeteu só viria a ter conhecimento da questão depois de ocorrido o fato. A esses dois irmãos foi dada a tarefa de criar os homens e os animais.

Para esse fim existiam vários recursos, mas cada um deles poderia ser usado uma única vez. Sem o menor planejamento, Epimeteu foi criando os animais dotando cada um de uma característica. Para uns, deu garras afiadas, para outros, uma carapaça protetora, outros ainda ficaram donos de uma força descomunal e assim foram se esvaindo os recursos para dotar o homem de proteção contra as dificuldades da Natureza. Quando chegou a vez de criar o homem, já não havia quase mais nada para lhe atribuir como proteção e ele acabou sendo dotado de características especiais, como o fato de poder olhar para o alto. Enquanto os outros animais caminhavam olhando para o chão, o homem poderia contemplar as estrelas. Apesar disso, no lugar da inteligência tinha somente o fantasma dos sonhos. Prometeu, então, afronta definitivamente o todo poderoso deus dos deuses, acende uma férula (bastão oco) no fogo divino do sol, uma representação simbólica da inteligência, e o entrega aos homens:

Porém o enganou o bravo filho de Jápeto:
furtou o brilho longevisível do infatigável fogo
em oca férula; mordeu fundo o ânimo
a Zeus tonítruo e enraivou seu coração
ver entre homens o brilho longevisível do fogo.
(Hesíodo, 1995, p. 105)

O coração enraivecido de Zeus criou uma vingança contra Prometeu e outra vingança contra os homens. O suplício de Prometeu foi padecer amarrado ao monte Cáucaso e uma águia vinha todo dia comer um pedaço do seu fígado. À noite, o órgão se regenerava e no dia seguinte a águia devorava novamente o fígado do filho de Jápeto. A vingança contra os homens foi a criação de Pandora, mulher perfeita, criada a partir de uma intervenção de cada deus: de Atena recebeu a arte da tecelagem; de Afrodite, o poder de sedução; de Hermes, as artimanhas, e assim por diante. Essa mulher, um presente de todos, conforme mostra a etimologia de Pandora: pan (πάν = todos) + doro (δώρο = presente), foi entregue a Epimeteu que imediatamente se apaixonou por ela. Sobrara a Epimeteu, da época em que construíra o homem, uma caixa na qual repousavam todos os males do mundo. Pandora pediu para ver o conteúdo da caixa e Epimeteu, apesar de advertido por seu previdente irmão, para não deixar isso ocorrer, não resistiu aos encantos de Pandora, atendendo-a, e todas as calamidades e males do mundo escaparam, só restando na caixa a esperança. Assim, de uma só vez, num único mito, foram dadas ao Homem duas coisas que ele não conhecia: a tecnologia e a angústia. Desde então, ele tem excedido o uso de uma para aplacar os efeitos da outra.

Para compensar o fato de o ser humano ser o lado mais fraco da criação, foi-lhe dado o medo, concretizado no temor frente às tempestades e a ameaça de morte no enfrentamento dos animais ferozes. Aos poucos, as soluções místicas foram dando espaço aos conhecimentos e a forma de potencializar sua limitada força era construindo ferramentas – a alavanca dava mais potência ao seu braço, o arado revolvia rapidamente a terra para o plantio e a necessidade de deslocar-se rapidamente era suprida com a invenção da roda.

Heráclito dizia que "se felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diríamos felizes os bois quando encontram ervilha para comer" (Heráclito, 1996, p. 87). Ora, com o fogo e a inteligência a ele associada, o Homem fora arrancado da sua procura por ervilhas para mergulhar na definição do sentido de sua existência. O medo nos protege da morte ao nos distrair da ideia de morrer: medo de não conseguir chegar a tempo, de não dar conta dos projetos em que se está envolvido, de não conseguir ficar atualizado com o excesso de informação. O cotidiano nos oferece uma gigantesca constelação de temores. Heidegger achava que o medo nos convida a viver na impropriedade, alienados de nós mesmos, preenchendo desesperadamente nossas agendas e esperando que o sentido de nossas vidas seja atribuído pelas circunstâncias. A angústia, a falta de chão, por outro lado, reúne os pedaços em que o homem se dividiu para cumprir sua agenda e ressignificar o seu medo e o convida a assumir seu papel de estar-no-mundo. Neste contexto heideggeriano, não se consegue pensar em um ser sem a respectiva relação com sua realidade concreta.

Fazendo um contraponto a Albert Camus, que dizia que "só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio" (Camus, 2004, p. 17), Ortega y Gasset define em sua obra Meditações Sobre a Técnica que a necessidade originária do homem é a necessidade de viver. Não pontua como o caos foi organizado no homem, mas o retrata como quem tem essa pulsão de vida, apesar de ter a capacidade de terminar essa vida quando quiser:

Seja lá por que razão, acontece que o homem costuma ter um grande empenho em sobreviver, em estar no mundo, apesar de ser o único ente conhecido que tem a faculdade — ontológica ou metafisicamente tão estranha, tão paradoxal, tão conturbada — de poder aniquilar-se e deixar de estar aí, no mundo. (Ortega y Gasset, 2011)

Apesar de toda dificuldade encontrada, de ordem externa e interna, o homem busca incessantemente melhores condições de vida. As dificuldades com o meio que o rodeia e que caracterizam a ordem externa dessa questão se referem à necessidade de se aquecer quando vem o frio, de se alimentar, de matar a sede e de poder se deslocar – lentamente – para poder comer e beber nesse deslocamento, ou rapidamente, para poder fugir dos inimigos, humanos ou animais. O fato de o homem sentir frio, por exemplo, o coloca em contato com duas coisas importantes: primeiro, a realidade, que nesse caso recebe o nome de inverno; e segundo, essa realidade o agride. Ora, por que razão esse homem afasta a solução da morte? Ortega y Gasset refuta o instinto como resposta a esta questão, argumentando que o que governa o homem são a reflexão e a vontade que reatuam sobre os instintos. Freud já havia contribuído para essa discussão, identificando a sublimação dos instintos como motor do processo civilizatório.

A sublimação do instinto é um traço bastante saliente da evolução cultural, ela torna possível que atividades psíquicas mais elevadas, científicas, artísticas, ideológicas, tenham papel tão significativo na vida civilizada. (Freud, 2010, p. 60)

Quando não consegue se satisfazer com o que a Natureza provê, por exemplo, com a necessidade que tem de respirar e não precisar procurar o ar que o satisfaça, o homem lança mão de uma outra solução – ele produz "o que não estava aí na natureza, seja porque em absoluto não esteja, seja porque não está quando faz falta" (Ortega y Gasset, 2011). Mas produzir uma caverna na rocha para proteger-se do frio ou domesticar um cavalo para que possa viajar mais rapidamente ou ainda desenvolver uma técnica mais eficaz de plantio não é exatamente satisfazer a necessidade de eliminar o frio, de comer ou de se deslocar. Esse planejamento faz com que o homem perceba que essa realidade não é sua, é da Natureza e ele só a sente porque está inserido nessa Natureza e se quiser ser e estar nela terá que aceitar as condições que ela impõe. Uma vez que o homem não é só a sua circunstância, pode emergir do profundo mergulho que frequentemente faz nessa circunstância e recolher-se à caverna labiríntica de sua alma, onde poderá ensimesmar-se e perder-se em reflexões. É nesse momento sobrenatural de recolhimento e ensimesmamento que tece a lã, constrói um edifício e fabrica o automóvel.

As dificuldades de ordem interna, a angústia do viver no confronto com a realidade é que procura ser minorada com a técnica, que reforma a natureza que, muitas vezes, nos faz necessitados e indigentes. Essa reforma é feita em um sentido que deixa de ser problema a satisfação de algumas necessidades. Se, por exemplo, a cada vez que sentíssemos frio, a Natureza provesse o fogo que nos aquecesse, esse frio não seria uma necessidade. Como isso não acontece, há que planejar a moradia, o aquecedor elétrico e o cachecol de lã.

Indo do período Paleolítico para o Neolítico, o Homem aprendeu a se estabelecer, a criar raízes. Durante o Paleolítico, as comunidades humanas apenas coletavam frutos e raízes, caçavam animais, dos quais retiravam a pele para fazer as próprias roupas e praticavam uma pesca rudimentar. Assim, precisavam se deslocar com frequência, quando a área em que habitavam tinha exaurido seus recursos. Habitavam, então, em grutas naturais e cabanas fáceis de desmontar para levar a um novo destino. Com o passar do tempo, esse nomadismo foi dando lugar a uma vida mais sedentária: era possível plantar e esperar o tempo da colheita. Começou a ser viável construir casas de pedra em lugares convenientes e abrigar-se do frio com panos grosseiros tecidos de linho ou lã ao invés das peles dos animais. Essa mudança de paradigma, identificada pelos historiadores entre 10 mil e 8 mil a.C., deveu-se, principalmente, à descoberta do fogo e da consequente capacidade de criar ferramentas para fabricar outras ferramentas. A arte, que era quase que exclusivamente rupestre, com pinturas e gravuras em cavernas, passou a tomar outra forma, com a descoberta da possibilidade de cozer o barro e transformá-lo em cerâmica.

Essa tecnologia, todavia, era entendida como um presente dos deuses, e os ferreiros, pastores e cozinheiros eram tidos como magos locais ou mesmo sacerdotes, que conheciam o segredo divino e só o transmitiam aos que fossem escolhidos por eles. Cria-se, assim, uma esfera de poder em torno dessas profissões que, em última instância, permitiam que a vida pudesse continuar da maneira como estava. Se os "técnicos" que mudavam a Natureza e a adaptavam para o bem-estar da comunidade não existissem, todos teriam que retornar à inclemente vida nômade.

O uso da tecnologia para fazer ferramentas viria a aparecer na Grécia Clássica, por volta de 5000 a.C., coincidindo com o final do período Neolítico. A palavra grega que veio definir esse estado de coisas foi τέχνη (techné) que significa arte, entre outras coisas. Para os gregos, a combinação de techné e logos (λόγος = palavra) orientava o discurso sobre o sentido e a finalidade das artes. O vocábulo tecnologia nasce, portanto, com uma boa dose de responsabilidade.

 

A Idade Média

Depois de definidas as bases para o estudo da evolução das ciências, o mundo mergulhou num período teocêntrico, a Idade Média. Grandes filósofos contribuíram para desenvolver o pensamento filosófico, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, mas o desenvolvimento tecnológico deixou muito a desejar, apesar de datarem desse período a fundação das primeiras Universidades, como a de Bolonha em 1088, a de Paris em 1150 e a de Oxford em 1167. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, já existiam mais de setenta universidades na Europa.

As questões culturais tomaram um rumo calamitoso face a este estado de coisas. Até aprender a ler era questionado, porque ler era considerado um luxo, o que era um pecado perante as Sagradas Escrituras. As curvas do corpo feminino eram obsessivamente ocultadas para que os sentidos não afastassem as almas da contemplação do divino.

Na Arte, alguns elementos eram preponderantes. Fra Angélico, por exemplo, um pintor do período Gótico Tardio, tinha a preocupação em não interromper a luz divina que preenchia os espaços, descrita por São Tomás de Aquino.

A preocupação desse artista era a forma perfeita, que devia ser aquela que não impedisse a propagação da luz divina. Os elementos pictóricos, para Fra Angélico, tinham algo incorporado, que só os intelectos sutis podiam perceber. Para ter contato com esse algo mais, era preciso ter olhos puros, sem as distorções das paixões terrenas. (Benito, 2004, p. 89)

Régis de Morais conta, em seu livro Ciência e Tecnologia, que um jovem na Universidade de Milão havia descoberto manchas no Sol com o auxílio de um conjunto de lentes similares a um telescópio. Ao perceber esse fato, foi relatá-lo ao seu professor de Astronomia que menosprezou essa descoberta ao comentar que não encontrara nada nem na Bíblia nem em Aristóteles que indicasse a existência de manchas solares. O diagnóstico da autoridade científica foi então a constatação de problemas oftalmológicos no afoito estudante dos céus medievais (Morais, 1978, p. 36).

Roger Bacon, um cientista da época, que viveu entre 1220 e 1292, enxergava um pouco mais longe do que seus contemporâneos e não tomava a palavra de Aristóteles como inferior somente à palavra de Deus. Ingenuamente, Roger Bacon se esforçou para apresentar ao papa Nicolau IV uma edição magnificamente encadernada de seus livros. O papa, ao invés de admirar a obra de Bacon, como era a expectativa do escritor, mandou prendê-lo por heresia e condenou-o à prisão perpétua. Na Idade Média, o segredo para conseguir ir mais fundo do que a palavra de Aristóteles era manter-se em silêncio externamente, mas gritar em excesso por dentro.

Um impasse científico então se instalou no seio da Idade Média – as novas conquistas deveriam já constar nos textos clássicos e, assim, não seriam novas conquistas. Por outro lado, se alguém descobrisse algo inédito, seria rotulado como bruxo e condenado à fogueira. Alguns experimentos, rodeados de uma mística cabalista, foram feitos no que se convencionou chamar de Alquimia, e o destino de muitos alquimistas também foi a morte na fogueira.

 

A Idade Moderna

A mudança da Idade Média para a Idade Moderna se deu com o período conhecido como Renascimento. Este movimento, de múltiplas facetas, teve um considerável suporte econômico dado pela família Medici, situada em Florença, na Toscana.

O próprio fato do uso da perspectiva nas obras renascentistas denotava a existência de uma profundidade na representação apresentada. Se existia uma profundidade do plano da tela para dentro, deveria existir também uma perspectiva para o homem, autor da obra de arte. Pouco a pouco, o homem foi se reposicionando como centro do significado histórico. As grandes navegações acontecem, premiando as nações que ousaram investir em tecnologia para a exploração da natureza, agora não mais intocável como na Idade Média.

Amadureceu nessa época a composição gráfica de tipos móveis de Gutenberg (1398 – 1468), que aperfeiçoara em 1450 uma antiga invenção chinesa, "injetando o novo sangue do progresso intelectual pelas principais artérias da Europa" (Morais, 1978, p. 38).

Em seguida, Copérnico (1473 – 1543) estabelece que o Sol é o centro do sistema planetário, ao contrário do que se imaginava. Essa constatação ainda era uma teoria fortemente ancorada nas crenças medievais, uma vez que Copérnico imaginava o Sol como a Luz de Deus e não via sentido em se ter a luz divina girando em torno dos homens e não o contrário. Apesar disso, foi um grande e paradoxal avanço, uma vez que expulsava novamente o homem do Paraíso, sendo obrigado a sair do centro do Universo. Como já não era mais senhor do Universo, o homem se propôs a estudá-lo com mais afinco.

Leonardo da Vinci (1452 – 1519) encarna o cientista moderno, com uma excelência grande e similar, seja na arquitetura, na pintura, escultura ou na fabricação de máquinas de guerra. Em seguida, o gênio de Descartes (1596 – 1650) denuncia a ingenuidade dos Antigos, "que pretendiam explicar fenômenos muito complexos antes de conhecer as realidades deles, antes mesmo de observar cuidadosamente as suas principais propriedades" (Morais, 1978, p. 40).

O pensamento experimental científico era inaugurado e disseminado com figuras como Galileu Galilei (1564 – 1642) que, contra o senso comum, prova que duas bolas, uma de cinco libras e outra de uma libra, lançadas do alto da torre de Pisa, chegam juntas ao solo. Um pensamento perfeitamente lógico e enquadrado no bom senso não necessariamente era um pensamento verdadeiro. Mais do que isso, estava demonstrado um erro de Aristóteles, que havia estabelecido que a bola mais pesada cairia mais rápido e atingiria primeiro o solo. Talvez tenha sido esse experimento o momento símbolo do nascimento oficial do experimentalismo científico e da Idade Moderna.

O período, porém, que cristaliza todas as construções do racionalismo experimental foi o vaidoso século XVIII, com a figura basilar de Isaac Newton (1642-1727), que reúne uma grande facilidade de autopromoção com uma raríssima inteligência, catapultando-o ao topo da excelência científica da época.

Pouco a pouco, o centro das questões éticas, que já havia sido o Homem com os antigos gregos e passou a ser Deus, na Idade Média, passa agora a ser a Ciência. No meio de tanto saber instala-se a "curiosa ilusão de que a Ciência pudesse vir a responder a todas as inquietações do ser humano" (Morais, 1978, p. 42).

A observação paciente e meticulosa dos fenômenos, o controle e verificação repetidos e a livre discussão associados a essa engenhosa experimentação dotaram o ser humano de um método excepcionalmente fecundo, de tal modo que a Ciência (conhecimento da Natureza) e a Técnica (domínio das forças naturais) deram-se as mãos para sair da Idade Moderna e iniciar a Idade Contemporânea.

 

Idade Contemporânea

Uma das referências para o início da Idade Contemporânea pode ser o ano de 1838, com a descoberta dos raios catódicos pelo físico britânico Michael Faraday. Outra referência poderia ser a sugestão feita pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann de que os estados de energia de um sistema físico deveriam ser discretos. Em 1900, o físico alemão Max Planck amplia esses conceitos e sugere que a luz (e outras formas de energia) não é emitida a partir dos átomos como um fluxo contínuo, mas sob a forma de "pacotes" distintos, a que denominou quanta. Chamou a isso de Teoria dos Quanta e ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1918 por essa descoberta.

Einstein revolucionou as bases do conhecimento2 ao introduzir o conceito de pacotes (fóton) de luz e estabelecendo a famosa dualidade onda-partícula que tanto incomodou os físicos da época. Muitos deles não aceitavam as conclusões de Einstein quando ele foi agraciado com o Prêmio Nobel de Física em 1921.

Um outro trabalho3 de Einstein explica a relação entre energia e matéria, cunhando a famosa e simples equação que define essa relação: E = mc2, e que se torna uma explicação plausível para o Big Bang, a explosão de energia que teria dado início ao Universo. Hoje, o Grande Colisor de Hádrons, um anel de 27 km de comprimento, enterrado a 175 metros de profundidade na fronteira franco-suíça, procura demonstrar a existência de uma partícula subatômica proposta pelo físico Peter Higgs em 1964 – o Bóson de Higgs –, que seria a chave para explicar a origem da massa nas partículas elementares. Brincando de Deus, os cientistas teriam descoberto como a energia se fez matéria. Depois de abertas as portas do conhecimento, outros cientistas ajudaram a construir o espetacular edifício da Mecânica Quântica e a relação entre energia e matéria se transforma na receita que permite a construção da bomba atômica.

Depois de duas guerras mundiais, período fértil em avanços tecnológicos, o homem perde a inocência que trouxe do século XIX para assumir um perigoso cientificismo, o mito da neutralidade científica. A faca, que tanto serve para passar manteiga no pão como para promover uma degola, não é um problema que os cientistas assumem como pertinente. Para a maioria deles, uma faca é uma faca.

Com essa possibilidade em mente e com os conhecimentos amealhados por cientistas como Einstein, Heisenberg e Oppenheimer, a faca fica cada vez menor e separa o átomo, recompondo-o de tal forma que se pode controlar a energia que mantém a ligação entre seus elementos e a bomba atômica passa a ameaçar o planeta. Atropelando a questão ética, o Homem julga, narcisicamente, que pode dominar o mundo ou, em última instância, destruí-lo.

Nos dias em que vivemos, o excesso de veneração pela tecnologia é tão grande que a morte do empresário Steve Jobs causou uma peregrinação de fãs inconformados às lojas Apple4, acendendo
velas e deixando flores em um dos, agora, literais templos do consumismo.

Uma das questões éticas fundamentais de nosso tempo é a destinação do conhecimento elaborado científica e tecnologicamente. Conhecimento para quê? Para quem? No século XVII, Rabelais já enunciava essa questão central sobre o conhecimento científico: "ciência sem consciência é a ruína da alma". Hoje, a questão de como vamos usar o conhecimento é decisiva para a sobrevivência da humanidade e da Terra. Inclusive, precisamos ter consciência clara de que muitas das maiores ameaças de destruição da espécie humana e de toda a vida planetária vêm dos poderes acumulados pela tecnociência. Hiroshima e Nagasaki assinalam a nossa capacidade de produzir a morte. (Antonio, 2010, pp. 20-21)

Até então, a filosofia kantiana dava conta das questões éticas nesse universo tecnológico, uma vez que todas as feridas na Terra eram curadas pela própria Terra. Kant estabelece um princípio de reciprocidade com seu imperativo categórico e isso era suficiente para contornar as questões que pudessem advir da evolução tecnológica. Era impensável a capacidade de causar uma ferida profunda no planeta, algo que pudesse destruir a Terra. A partir do momento em que o excesso de tecnologia deixa claro que o Homem pode, sim, aniquilar a casa em que habita, vem a necessidade de pensar em uma ética para os tempos tecnológicos e um filósofo alemão chamado Hans Jonas escreve um livro – O princípio responsabilidade – para tratar dessa questão. Nesse movimento, cristaliza-se o termo "tecnoética" para descrever a reação contra o excessivo poder tecnológico colocado na mão do Homem.

 

A Tecnoética

Hans Jonas nasceu em 10 de maio de 1903, na cidade alemã de Mönchengladbach, ponto médio entre a cidade de Düsseldorf e a fronteira holandesa. Morreu em 5 de fevereiro de 1993, em Nova York. A trajetória intelectual de Jonas, de origem judaica e sionista, apresenta três momentos marcantes – o primeiro deles é quando começa a frequentar as aulas de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg, em 1921. Heidegger exerce grande influência sobre Jonas, inclusive no questionamento do valor da filosofia, deflagrado quando Heidegger se junta ao partido nazista em 1933.

Impressionado com a violência nazista, Jonas deixa a Alemanha neste mesmo ano de 1933, indo à Inglaterra para, de lá, viajar ao protetorado britânico da Palestina no ano seguinte.

Após a guerra, voltou para Mönchengladbach para reencontrar sua mãe, mas descobriu que ela havia sido morta em Auschwitz. Não suportando mais a ideia de viver na Alemanha, Jonas retorna à Palestina para lutar na guerra árabe-israelense de 1948. O apelo, porém, ao ensino de filosofia foi maior do que o de ser um soldado sionista, e Jonas começa a ensinar na Universidade Hebraica de Jerusalém, antes de transferir-se para o Canadá em 1949, onde ensinou na Universidade de Carleton, e mais tarde mudar-se para Nova York, em 1955.

O segundo grande momento da vida intelectual de Jonas ocorre em 1966 com a publicação do The Phenomenon of Life Toward a Philosophical Biology. Essa obra abre um novo caminho sobre a precariedade da vida e mostra o grande alcance filosófico dessa abordagem, reconduzindo a vida a uma posição privilegiada e distante dos extremos do idealismo irreal e do limitado materialismo.

Na década de 1970, interessou-se pelos problemas éticos que poderiam surgir a partir dos avanços da tecnologia e, em 1979, dá-se o terceiro grande momento de sua produção intelectual com a publicação de sua principal obra – O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilisation).

A preocupação de Jonas tem seu foco no futuro. O que importa agora é o futuro da humanidade, com as gerações que estão por vir e com a sobrevivência delas. Não é de maneira nenhuma o futuro entendido como eternidade, mas o tempo que virá imerso na ciência e na tecnologia, cuja responsabilidade será o princípio que orientará a manutenção das formas de vida.

O imperativo categórico kantiano é revisitado por Hans Jonas. O livro de Hans Jonas, O princípio responsabilidade, traz o texto do imperativo categórico de Kant: "Age de tal modo que tu também possas querer que a máxima se torne lei geral" (Jonas, 2006, p. 47).

Jonas detalha que a partir da suposição da existência de seres racionais em ação, essa ação deve existir de modo que possa ser concebida sem contradição, como exercício geral da comunidade. O uso do verbo "poder" expressa, segundo Jonas, uma questão de compatibilidade e não uma aprovação moral ou desaprovação. Ao imaginar-se que a felicidade da geração em que vivemos venha causar uma infelicidade ou mesmo a inexistência de uma geração futura, não se pode dizer que haja uma contradição nisso. Essa suposição pode ser objeto de uma desaprovação moral, mas de contradição não. Baseado nessa constatação, Hans Jonas sugere um novo imperativo categórico:

Um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: "Aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra"; ou, expresso negativamente: "Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida"; ou, simplesmente "Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra"; ou, em uso novamente positivo: "Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer". (Jonas, 2006, pp. 47-48)

Em Kant, Jonas sublinha que é possível querer o fim da humanidade ao se desejar o próprio fim. No novo imperativo pode-se arriscar a própria vida, mas não a da humanidade. Nesse ponto, Jonas faz referência ao mito do herói grego Aquiles, cuja vida seria tão mais longa quanto mais obscuro fosse. Aquiles, porém, optou por uma vida gloriosa e curta e tinha o direito a esta opção, não necessariamente fazendo com que o exército grego se esfacelasse quando a flecha de Páris o acertou no calcanhar.

A ética de Kant, segundo Jonas, serve para lidar com aspectos de simultaneidade e imediaticidade e é válida em seu domínio, mas é questionada quanto à sua suficiência para as novas dimensões do agir humano.

O compromisso com o futuro não pode, segundo Jonas, se basear na ideia tradicional de direitos e deveres, "segundo a qual o meu dever é a imagem refletida do dever alheio, que por seu turno é visto como imagem e semelhança do meu próprio dever" (Jonas, 2006, p. 89). Assim, a partir do estabelecimento dos direitos do outro, também se estabelece o próprio dever de respeitar esses direitos. Essa postura é absolutamente válida numa dimensão espacial, mas não funciona em uma dimensão temporal, porque a ética almejada lida com o que ainda não existe e o princípio da responsabilidade deve ter uma independência tanto da ideia de um direito quanto da ideia de uma reciprocidade.

A origem genuína de uma ideia de responsabilidade com essas características vem do sentimento para com os filhos. A progenitura é um sentimento altruísta plantado pela Natureza nos seres que procriam, embora existam tantos casos de rejeição da prole pelos pais. A própria consternação causada quando se toma conhecimento do fato da rejeição dos filhos pelos pais é uma demonstração do altruísmo desse sentimento.

A ética para o mundo tecnológico que cada vez se impõe mais na sociedade atual traz ainda dois outros princípios – a esperança e o medo. Certamente o medo e a esperança estão contidos, ambos, na responsabilidade.

A esperança ligada à responsabilidade é uma condição implícita em toda ação, uma vez que ela, a esperança, supõe que seja possível realizar alguma coisa, e o medo ligado ao princípio responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas, sim, aquele que nos convida à ação.

Nessa ética do futuro, a tecnoética, a responsabilidade é o cuidado entendido como obrigação em relação a outro ser e que se torna "preocupação" quando há uma ameaça concreta à sua vulnerabilidade.

O conceito de reciprocidade tem sido entendido através dos tempos como fundamental à questão ética. A preocupação de filósofos como Hans Jonas extrapola esse conceito para uma situação em que a reciprocidade responde bem ao aspecto de necessidade, mas não ao de suficiência. Quem conferirá o critério de suficiência desta nova ética será o conceito de responsabilidade, uma vez que o compromisso dessa nova ética é com o futuro. As gerações que virão, pelo impedimento temporal, não conseguem retribuir o bem que possa ser feito. Por isso Hans Jonas baseia toda a sua tecnoética no conceito de responsabilidade.

Jonas discute a liberdade humana e a capacidade que o homem, no âmbito individual, e a sociedade, num contexto coletivo, têm em reificar seus próprios feitos de tal forma a determinar a humanidade pelo seu passado, glorificando suas tradições. O movimento tecnológico, segundo Jonas, inverte o sentido imposto pela tradição na medida em que as tradições têm uma força inercial inibidora, ao passo que as criações da técnica são, por natureza, propulsoras, conferindo um ponto de inflexão importante à história da liberdade. O que aparece aqui, como uma ameaça à liberdade, é o elemento tirânico que transforma as obras dos humanos em seus senhores.

Essas reflexões procuram mostrar o vínculo entre o bem e o mal causados pela tecnologia e ressaltar a magnitude espaço-temporal de seus efeitos. Num artigo de Hans Jonas5, traduzido pelo professor Giacoia, da Unicamp, o discípulo de Heidegger resume a questão dos papéis desempenhados nesse cenário:

Enquanto o malvado irmão Caim – a bomba – jaz atado em sua caverna, o bom irmão Abel – o pacífico reator – continua discretamente a estocar seu veneno para futuros milênios. (Jonas citado por Giacoia, 1999, p. 415)

Pela ambivalência contida nas questões tecnoéticas, os atores desse mundo da tecnologia ainda não conseguem se mostrar suficientemente bons ou definitivamente maus.

 

Referências

Antonio, S. (2010). A Irmandade de todas as coisas – diálogo sobre Ética e Educação (1ª ed.). Lorena: Ed. Diálogos do Ser.

Benito, E. Jr. (2004). A Oferta de Afrodite (1ª ed.). Campinas, SP: Editora Komedi.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
EUGÊNIO BENITO JÚNIOR
Rua Piolim, 490
13091-510 – Campinas – SP
tel.: 19 3307-5760
E-mail: eb.j@uol.com.br

Recebido: 20/09/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Eugênio Benito Júnior criou e coordena o GEMEG (Grupo de Estudos sobre Mitologia, Enologia e Gastronomia). É engenheiro (Poli-USP), consultor internacional para negócios em Telecomunicações, mestre em Educação (UNISAL), professor universitário e escritor. Autor do romance A Oferta de Afrodite (2004), do conto No ônibus em Roma (2006) e do romance O criador de borboletas (2008). Nasceu em Pindorama (SP) em 1955.
1 "Melhor morrer de vodca que de tédio!" – verso do poema escrito pelo poeta russo Vladímir Maiakóvski a Serguei Iessiênin, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva, no livro "Maiakóvski - Poemas", com tradução de Boris Schnaiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos.
2 Ver http://www.if.ufrgs.br/tex/fis142/fismod/mod06/m_s03.html. Acesso em: 05 set. 2012.
3 Idem.
4 Ver http://blogs.estadao.com.br/rodrigo-martins/2011/10/06/fas-de-steve-jobs-vao-a-lojas-da-apple-prestar-homenagens/. Acesso em: 02 nov. 2011.
5 A versão em inglês deste trabalho – Technology as a Subject for Ethics – foi publicada na revista americana Social Research, 49(4), 1982 (disponível em: www.socres.org/new_site/contact.html. Acesso em: 10 jan. 2012).