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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo ene. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

A forma poética freudiana e as performatizações da histeria

 

The freudian poetic form and the performances of hysteria

 

 

Enrique Mandelbaum*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A forma poética freudiana e as performatizações da histeria Estudos sobre a histeria inauguram, mais do que uma compreensão teórica sobre a histeria, uma forma poética capaz de referênciastransbordar o texto e realizar-se em múltiplas performatizações na contemporaneidade, a ponto de transformar a histeria, como reconhecem Breton e Aragon, na maior invenção poética do século XIX. O texto acompanha as manifestações destas performatizações na dança de Loie Fuller, numa canção de Mercedes Sosa, nas pinturas de Paula Rego e na clínica psicanalítica.

Palavras-chave: Psicanálise, Formas poéticas, Histeria.


ABSTRACT

Studies on hysteria introduces, rather than a theoretical understanding on hysteria, a poetic form that has been capable to go beyond the text to take place in multiple performances in our times, to the point of transforming hysteria, as Breton and Aragon recognize, into the most important poetic invention of the 19th Century. The paper accompanies the manifestations of these performances in Loie Fuller´s dance, in a Mercedes Sosa´s song, in Paula Rego´s paintings and in the psychoanalytical clinic.

Keywords: Psychoanalysis, Poetic forms, Hysteria.


 

 

Do texto à realidade: o transbordamento das formas poéticas

Os Estudos sobre a histeria, de Freud e Breuer, foram publicados pela primeira vez em 1895. O livro inaugura um novo gênero literário. Normalmente, a novidade das formas literárias, isto é, dos modos de dizer o mundo e nomear o homem, são mais propícias a acontecerem poeticamente – aliás, é só no campo poético que a novidade da forma literária acontece. É este o território propício, se não para a fundação, para a tradução em forma – a mediação necessária para a manifestação, daquilo que foi fundado, em performatização na realidade concreta. Que a forma poética possa se aninhar no campo da Filosofia, isto já é bem antigo. Não nos faltam autores cuja forma urdida em nuanças histórico-filosóficas transbordaram na criação de materialidades da cena humana. E estamos falando de uma materialidade que não apenas funciona como vestimenta do corpo humano, mas que ganha até o estatuto de ser o corpo da vestimenta. Por exemplo, Dante: difícil dizer se Dante é mais poeta do que pensador, ou se é mais pensador do que poeta. O fato é que a sua Divina Comédia transbordou em realidade, o mundo se tornou dantesco e o homem, inclusive, aprendeu a se reconhecer dantesco. Assim ele se viu, assim ele se lia. Era dentro do enquadre dantesco que este homem ganhava as referências para o exercício de suas avaliações pessoais e suas avaliações sobre o mundo. Isto quer dizer que era dentro deste enquadre que ele se via em queda ou em elevação, rumo ao inferno ou em direção ao paraíso. Aqui, dentro desse enquadre, é que ele se deleitava, se aprazia, se pensava, se perdia, se protegia, fugia, enfim, realizava todas as manifestações capazes de urdir o território da existência humana. É que a Divina Comédia é a mais perfeita tradução da visão de homem e de mundo murmurada por uma multidão de homens – teólogos, filósofos, médicos, artesãos, artistas, soberanos, generais, camponeses, bêbados, iletrados, enfim, por cada um dos participantes humanos acolhidos nessa cena histórica, nesse aqui e agora que pavimenta de concretude o que estamos chamando de realidade histórica. E todo esse murmúrio se condensa na forma poética da Divina Comédia. Pode-se argumentar que Dante foi quem soube recolher em forma o que já estava performatizado em realidade concreta, nesse período histórico. Mas tudo indica que o processo é diferente, que a ordem dos fatores é outra. Tudo indica que foi a forma poética de Dante que transbordou do verso para tomar conta da realidade concreta, com tanta força e impacto que essa realidade se adjetivou na própria forma e pôde ser reconhecida como dantesca. Pode-se dizer que isto é impossível, que um livro, pelo menos para ser vivido, tem que ser lido. Mas isto também não parece ser verdade. A forma poética é tão poderosa que ela, para além de adentrar a vida humana em sua elaboração ideativa através da leitura dos seus versos ou de seus traços materiais, exala partículas e vapores, como as flores de Baudelaire, capazes de fluírem por entre as concretudes materiais, decantando-se em objetos cotidianos e podendo ser incorporados pelos cinco sentidos, de uma maneira ao mesmo tempo macro e microscópica. Como é que homens podem absorver um livro sem lê-lo, de forma tão poderosa a ponto de inclusive observar a presença do que é nomeado na constituição dos objetos cotidianos que compõem a sua vida? Isto é um profundo mistério. Mas que o mundo pode ser dantesco, como pode ser kafkiano, como pode ser quixotesco, como pode ser bruegueliano, redeglobalizado ou freudiano, disto não há dúvida. As formas poéticas se adjetivam em manifestações concretas. E as mais poderosas não se reduzem a ideologias com i minúsculo, como as da Rede Globo, por exemplo, mas a Ideologias com I maiúsculo, a visões de mundo e de homem mais penetrantes e problematizadoras de si e de sua condição. Aliás, talvez aqui encontremos uma possível área para sabermos diferenciar uma ideologia com i minúsculo de uma visão de mundo e de homem. Não me parece que são as mesmas coisas. Uma ideologia não ressoa na condição dos homens, isto é, não a desperta com inquietação. Ao contrário, uma ideologia com i minúsculo visa aquietar uma situação ou transformá-la. E, para isto, visa acomodar os homens, seja numa condição dócil ou como militantes mobilizados. A forma poética, ao contrário, pode desacomodar, ou melhor, demanda desacomodação, exatamente porque toca na condição dos homens e demanda-os desde ali.

 

Estudos sobre a histeria e o transbordamento da forma poética freudiana

Os Estudos sobre a histeria inauguram o desdobramento da forma poética freudiana, que irá se transbordar em visão de mundo e de homem freudiano nos dias de hoje. Que a forma poética freudiana ganhou esta condição, é inegável. E que ela é performatizada em situações diárias, em grande parte das residências humanas, e mesmo naquelas em que não há um exemplar sequer de um texto freudiano na biblioteca do bairro, já me foi dado ver, e acho que muitos já presenciaram esse fenômeno. No meu caso, lá em Monsenhor Horta, uma vila 40 quilômetros distante de Mariana, em Minas Gerais, há mais de 20 anos, uma senhora analfabeta ralhava com a sua vizinha: "Para de gritar com o menino! Você vai deixá-lo com complexo!" Ela atuava como uma analista/didata. Não apenas interpretava, ela também ensinava e tentava organizar a sua vizinha a por sua vez também passar a funcionar como uma mãe que fosse ao menos suficientemente boa freudianamente, para não deixar complexos no menino. Não tive oportunidade de ver como esse menino cresceu, mas suponho que agora ele seja portador desses cuidados, isto é, formado por eles, o que quer dizer que ele agora vive e avalia a sua vida no interior desse referencial. Algo de seus complexos, que esperamos não tenham se complexizado em demasia, agilizam-se a partir dessas referências.

A novidade de Estudos sobre a histeria não está tanto nas explicações que são veiculadas. Claro que estas têm muita força, e não esqueçamos que estamos no campo da Medicina do século XIX, o que quer dizer no domínio da saúde, do funcionamento do corpo humano e da doença. É aqui que a forma poética freudiana se instala originalmente, em paralelo ao Projeto para uma Psicologia Científica. Mas se fossem só ideações, talvez mais do que uma forma poética, o que lá foi registrado se esgotaria em murmúrio. O intenso de Estudos sobre a histeria é que o estudo é uma apresentação de casos clínicos de uma forma tão inusitada e original, que algo novo na forma dos homens se nomearem e nomearem o seu entorno estava nascendo. É isto que Berta Pappenheim, a famosa Anna Ó., o marco zero da Psicanálise, deu à luz na última cena de seu encontro com Breuer. O caso já tinha se dado muitos anos antes. Em 1882, Breuer comunicou-o a Freud, isto é, três anos antes da residência de Freud no QG da histeria, em Salpêtrière. Dizem que Breuer nunca quis assumir a paternidade daquilo que surgiu das entranhas do "Oh" de Anna. Isto é apenas em parte verdade. Breuer fez o parto e ele próprio o registrou em seu caso clínico. Verdade que falta a cena do parto, ao menos literalmente narrada. Mas me parece que Breuer não reprimiu esta cena, ele a sublimou em texto. Amparado por Freud, ele registrou o caso clínico, isto é, o modo como lidou com Berta e permitiu que ela se comportasse de forma a lembrar que essas suas estranhas ocorrências – suas rígidas paralisias de braços e pernas e até dos nervos musculares, suas enxaquecas e sonambulismo, as contraturas que foram tomando conta dela, sua surdez intermitente, o vesguear convergente de seu olhar, seus momentos de total afasia e desorganização da fala –, enfim, a lembrar a ela que todas essas suas manifestações de si eram realizações de uma chaminé entupida. Ou seja, Breuer deixou que ela se visse realizada mimeticamente no funcionamento de uma chaminé, com suas lenhas, seu fogo ardente e fumaça. Mas estamos nos equivocando se dissermos que ela se mimetizou em chaminé. Ela, na verdade, mimeticamente se viu como sendo a casa por inteiro. Porque o problema do entupimento de uma chaminé não se faz sentir exclusivamente na chaminé. Os transtornos de uma chaminé entupida transbordam para todos os quartos, e é nestes que se vive sufocado pelo acúmulo de fumaça, de vapores ideacionais nebulosos, fugidios e às vezes ruidosos, que podem tornar insuportável viver nesses quartos. Berta vivia tão hipnotizada, isto é, num estado tão próximo ao estado do sonho, que precisou ser clinicamente hipnotizada para despertar. Não esqueçamos que ela, para cuidar da convalescença do pai, tinha se proposto a não dormir, a fim de permanecer 24 horas por dia, isto é, com a completude de sua existência, a serviço dessa tarefa. Poderíamos dizer que como ninguém consegue ficar de guarda por inteiro 24 horas por dia, Berta passou a dormir dissociadamente, o que quer dizer que, conscientemente, nada podia se intrometer que fosse atrapalhar sua condição de vigília. Esse era o único calor que podia ser aproveitado, o único lampejo de fogo que devia iluminar a realização de Berta. Todos os demais calores, todo o resto de fogo que se urdia em sua chaminé pessoal, devia permanecer tamponado, distanciado. E este imperativo se realiza na chaminé entupida, bem como na toxicidade da fumaça que toma conta dos aposentos. As estranhas ocorrências de Berta nada mais são do que transbordamentos de tudo aquilo que ela acreditava que podia retirá-la de sua função de cuidadora do pai. E toda essa fumaça, essa toxicidade, plasmava-se no corpo de Berta, como uma forma poética esquisita, uma espécie de pantomima descolada do sentido, uma forma poética em exílio de si própria: uma vicissitude das formas poéticas da alienação.

 

Performatizações da histeria em dança, música e pintura

As loucas de antigamente dançavam mais. Por isto, tinha-se certeza de que eram possuídas. Claro que dizer que as loucas dançavam mais é um anacronismo. Dança era outra coisa na época em que as loucas dançavam mais. Tratava-se muito mais de uma manifestação aloprada de gestos, ou da falta de gestos, que mais assustava do que encantava, mais atemorizava do que permitia a contemplação. Esse agito era muito violento e sem sentido para ser chamado de dança. E se todo esse agito corporal fizesse algum sentido, aí então seria rito religioso, possessão demoníaca, hora do orgasmo, tudo menos dança. Só virou dança quando a genial coreógrafa e dançarina Loie Fuller (1862-1928) incorporou algo desses espasmos da histeria no interior de suas coreografias.

 

 

Todo dançarino precisa outorgar plasticidade ao seu corpo para torná-lo lugar de uma manifestação simbólica, mais concreta ou abstrata. Expressar sem falar não é fácil. Quando a gente vê um espetáculo de dança, impressiona a agilidade, mas há espetáculos cuja agilidade também revela a violenta disciplina que comanda toda essa agilidade. Em certos espetáculos, essa disciplina ganha a qualidade de um autoritarismo, de um processo de repressão ou censura gigantesca. Em outros, essa disciplina revela um árduo trabalho de elaboração. E o modo como a disciplina é incorporada ao todo do espetáculo – uma disciplina imprescindível para que um corpo se transforme em dançarina ou dançarino –, não é meramente a outra cena do espetáculo. Estudos sobre a histeria revelam que são sempre os bastidores os organizadores da dança. Não por acaso são do mesmo período do livro as obras de Stanislavski e Meyerhold, dois grandes teóricos da escola russa de formação de atores. Todos eles – Loie Fuller, Stanislavski e Meyerhold – de alguma maneira foram leitores de Estudos sobre a histeria e suscitaram uma expressividade corporal que, distanciada da tácita contenção, pudesse significar, mais do que exclusivamente um corpo manipulado, a verdade de que os corpos são manipulados, para instigar os corpos dos espectadores. De acordo com Felicia McCarren (1995), Mallarmé escreveu que os espetáculos da dançarina Loie Fuller, mais do que promover a agilização da vulgar mania do olhar, abriam lugar para a reflexão, isto é, para, ao olhar a dançarina, dar de encontro consigo. Em inglês fica bonito isto que Mallarmé ressalta. No lugar do sight, da visão de espectador, o que a dança de Loie Fuller fazia surgir era o insight, isto é, o olhar para dentro. Mallarmé diz que as imagens da dançarina de fato cegavam o espectador, para que pudessem surgir nele as revelações dessa dança.

Claro que não é por acaso que estamos falando de dança, de corpos em performatizações e da formação de atores. Loie Fuller dançava em solo parisiense no mesmo período em que as histéricas performatizavam em Salpêtrière suas choreachorea é a palavra grega utilizada para dança e é também o nome atribuído na Medicina aos transtornos neurológicos que promovem movimentos desordenados e involuntários. O próprio Charcot continuava a usar a palavra chorea para enfatizar a natureza performática de suas histéricas. Freud o apresenta como um genial observador. E o próprio Charcot diz, em seu texto Histeroepilepsy: a young woman with a convulsive attack in the auditorium, que faz parte do livro Charcot the clinician: the Tuesday lessons: "Que coisa maravilhosa seria se eu de fato pudesse fabricar as doenças de acordo com meus caprichos ou fantasias. Mas, de fato, tudo o que eu sou é um fotógrafo. Eu descrevo o que vejo" (Charcot, 1987, p. 107). Nunca vi Loie Fuller dançando, apenas uma fotografia em que um corpo revoluteia, lembrando-me as danças dervixes. Parece um caracol, como aquele que Mercedes Sosa deixa surgir em Alfonsina y el mar. Esta interpretação, sim, eu escutei. Diz Mercedes:

Sabe D´os que angustia
Te acompaño
Que Dolores viejos
Calló tu voz
Para recostarte arrullada en el canto
De las caracolas marinas.
La canción que canta
En el fondo oscuro del mar
La caracola.

La caracola: Anna Ó, Berta Pappenheim, Loie Fuller, Mercedes Sosa, la caracola. Uma pintora contemporânea parece retomar os gestos da chorea de Salpêtrière. Estou me referindo a Paula Rego, essa incrível pintora que expôs parte de sua obra na Pinacoteca do Estado de São Paulo entre março e junho de 2011. Ela realizou uma série de pinturas que chamou de Possessão1. Paula Rego trabalha quase sempre com um modelo real, cuja expressividade corporal, ou melhor, a relação dela, pintora, com a expressividade corporal da modelo é expressa em suas pinturas. Nessa série, trata-se de uma coreografia íntima em que parece se dar a total abstração dos elementos imperativos atuantes na performatização do corpo. Em outros trabalhos dela, a presença desses imperativos performatizadores está sempre manifesta. Quase sempre, trata-se de algo assim como uma exteriorização ilustrada dos objetos que aguilhoam, para ações ou cristalizações, a especificidade da presença do corpo da mulher exposta. Estes objetos, híbridos de uma subjetividade real ou de um real subjetivado, são carregados de elementos que suscitam uma reflexão por parte do observador, ao mesmo tempo subjetiva, cultural e política, colocando em evidência que o corpo da mulher, em sua manifestação cotidiana, é uma realização da intersecção dessas áreas. É uma mulher ao mesmo tempo originária do patriarcado de sua libido, do matriarcado, do silêncio de todas essas referências, do feminismo, da história da pintura, de Portugal. Uma paciente me dizia:

Minha família é de origem portuguesa. Você conhece as mulheres portuguesas, né? À medida que o tempo passa, elas vão encolhendo. Fui à casa da minha tia, não via ela faz tempo. O que me surpreendeu é que eu agora olhava para baixo para vê-la. Eu sempre me achei baixinha. Mas a minha tia parecia ter centímetros. As mulheres portuguesas encolhem.

Na série Possessão, a cenografia se encolhe à coreografia de uma única cena pictórica: uma mulher em contorções, deitada no divã. Em uma outra série sua, A mulher cão, a expressividade corporal ganha significado nessa espécie de hibridismo entre mulher e cão. Aqui também se dá o apagamento da exteriorização dos objetos aguilhoadores. Nessa série, o aguilhão, o que há de cão na mulher, de cão domesticado a cão selvagem, atua diretamente a partir do corpo, sem necessidade de outra referência ilustrativa. A ação do pai bem como da mãe, da libido bem como da História, de Portugal bem como do mundo, está posta de manifesto nesses corpos mulher-cão. Possessão é mais radical. Aqui a coreografia toca a literalidade da chorea e, então, todos esses elementos que aguilhoam ganham ainda maior abstração, o que quer dizer aqui maior corporalidade, a um ponto quase que pleno e total, como se História e libido tivessem ganho tamanha integração no corpo que o sentido, tal como na cena originária da Salpêtrière, tivesse se evaporado completamente. A figura se contorce diante de nós, e sabemos que o faz pelas possessões que o nosso olhar lança a ela. A libido e a História aguilhoam desde o interior do encontro do espectador com a obra. Diante desses quadros, tudo se dá como se nosso esforço de tentar captar ou nomear o que está expresso nada mais produzisse do que uma maior agilização da chorea. E os espasmos agilizados reverberassem, através da visão, a nossa própria chorea, nossos movimentos involuntários, nossos movimentos alienados de sentido, o que não quer dizer sem sentido, ao contrário, profundamente demandados, mas a partir de sentidos para além de nós.

 

Uma performatização da histeria na clínica

"Você sabe o que querem as mulheres?", me perguntava um paciente, Osvaldo, que eu tenho quase certeza de que não retirou essa pergunta diretamente do texto de Freud. Chamo esse meu paciente de Osvaldo para incluí-lo no mesmo O de Anna Ó. Sua queixa mais sentida era contra o pai. A cena que voltou repetidamente, anos a fio em sua análise, era a de ele tendo conseguido realizar uma experiência de um kit à venda quando ele tinha 11 anos, da coleção Os cientistas. Ele ficou mais do que entusiasmado com a experiência, maravilhado com sua realização. A experiência bem feita parecia ser uma manifestação dele próprio se realizando na vida. Mas o pai não olhava, continuava a jogar cartas com os amigos, sem dar a mínima para a sua realização. Mais tarde Osvaldo virou cientista, mas ainda se mantinha fixo nessa cena de desprezo paterno: ninguém olhava para ele. Osvaldo tinha problemas seríssimos de visão, sendo obrigado a usar óculos de grau gigantesco. Contou ter sido descoberto pela esposa olhando revistas pornográficas. A mulher não entendia que a beleza feminina era para ser admirada. Ela achava que era uma traição. Mas ele só queria admirar o belo. Osvaldo gostava de comprar lingeries para a sua esposa. Diante das dificuldades do dia a dia, costumava parar tudo, ir até uma loja de lingeries e passar um bom tempo olhando essas peças, vendo ou imaginando ou pensando a sua esposa nelas. Queixava-se de que a esposa não dava a devida importância aos seus presentes e normalmente frustrava suas delicadas intenções. Mas Osvaldo se considerava um grande amante. "Você sabe o que as mulheres querem? Eu sei", ele disse uma vez. "Na hora da transa, eu sei o que uma mulher deseja." O chato, para Osvaldo, é que ele ejaculava precocemente. Após algum tempo de análise, surgiu nele uma certeza: sua mulher o traía. Esta certeza o incomodava mais nas horas difíceis do dia a dia, naquelas em que antes ele sentia vontade de comprar lingeries. Em torno dessas crises, Osvaldo pôde perceber que algo nele queria atrair o pai, como uma bela mulher atrai um homem. Que o gozo prematuro na relação sexual com a esposa era o gozo dele identificado com uma mulher – que a mulher que ele sabe o que quer é a mulher que ele construiu internamente para demandar o amor do pai. E que o gozo era algo assim como uma chorea em conversão no falo. Podemos deduzir do texto de Freud Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908) o quanto a elaboração do feminino impinge a chorea masculina. Se neste texto, para tratar da histeria, utilizamos arte, dança e pintura, é porque defendemos a ideia de que o tratamento da histeria freudiana saltou de seus textos para realizar-se em múltiplas performatizações no cotidiano. Sonia Curvo de Azambuja afirma que os surrealistas, mais do que os psicanalistas franceses da primeira geração, "reivindicam a herança de Salpêtrière e fazem da histeria um ato poético" (Azambuja, 2000, p. 71). De fato, André Breton e Louis Aragon diziam em 1928, em um de seus manifestos surrealistas, que a histeria é a maior descoberta poética do século XIX (citado por Rabaté, 2007, p. 157). Muito teríamos a dizer sobre a histeria do analista, ou seja, de todos aqueles que, identificados com Freud e Breuer, pretendem dar conta da chorea de Anna Ó. Nessas identificações, contorcemos nossos corpos, na tentativa de deixar surgir a pantomima de um analista em trabalho. Mas isto fica para uma outra oportunidade.

 

Referências

Alighieri, D. (1998). A divina comédia. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Azambuja, S. C. (2000). Buñuel: o Surrealismo a serviço da Psicanálise. ide, 32, pp. 70-74.         [ Links ]

Charcot, J.-M. (1987). Histeroepilepsy: a young woman with a convulsive attack in the auditorium. In J.-M. Charcot. J.M. Charcot the clinician: the Tuesday lessons: excerpts from nine case presentations on general neurology delivered at the Salpêtrière hospital in 1887–88 by Jean-Martin Charcot. Nova York: Raven Press.

Freud, S. (1976a). Projeto para uma psicologia científica. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. I). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1895).         [ Links ]

Freud, S. (1976b). Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. IX). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908).         [ Links ]

Freud, S & Breuer, J. (1976c). Estudos sobre a histeria. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. II). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1895).         [ Links ]

McCarren, F. (1995). The "Symptomatic Act" circa 1900: Hysteria, Hypnosis, Electricity, Dance. Critical Inquiry, 21(4), 748-774. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1344066. Acesso em: 04 set. 2012.         [ Links ]

Rabaté, J. M. (2007). Given: 1o. Art 2o. Crime: modernity, murder and mass culture. Eastbourne: Sussex Academic Press.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
ENRIQUE MANDELBAUM
Rua Maranhão, 554, cj 14
01240-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3661-9837
E-mail: eimande@terra.com.br

Recebido: 05/09/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Psicanalista, autor do livro Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (São Paulo: Perspectiva, 2003).
1 Para quem tem interesse, pesquisar pela internet, imagens das obras desta autora e, particularmente, de sua série Possessão.