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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

Gritos e sussurros dos excessos

 

Screams and whispers excesses

 

 

Maria Regina Henrique Branco Volpe*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho com jovens, sobretudo com adolescentes grávidas de um Posto de Saúde, mostrou a dificuldade das mesmas em pensar, julgar e desejar. Dificuldades essas incrementadas pelas leis da informação, do mundo virtual e do controle. Uma escuta analítica voltada para o processo de inverter a experiência de projeção da interioridade revelou-se importante.

Palavras-chave: Sociedade de controle, Regime do atentado, Interioridade, Excessos.


ABSTRACT

Working with young people, especially with pregnant young girls being cared in a public Health Center, made me aware of their hardship in thinking, judging and desiring. What enhances their bad living is the lack of personal information, the guidance made through virtual communication and the burden of the numberless social controls. A listening-oriented analytical process of reversing the projection experience of interiority proved to be important.

Keywords: Social control, Regime´s attack, Interiority, Excesses.


 

 

Havia acabado de atender a jovem Cristiane, paciente acometida de depressão e pânico. Vinha 4 vezes na semana... acabara sua pós-graduação em Arte e Teatro.

Volta e meia muito triste, irritadiça, sempre inconformada consigo mesma. Como tivesse facilidade de arrumar receitas médicas, tomava antidepressivos sempre que sentia medo e pavor, sobretudo no trânsito... Parecia não haver um conflito neurótico em Cristiane, lembrava-me dos tópicos teóricos de que falara Freud sobre as "neuroses atuais".

Atuais enquanto resposta à exigência da contemporaneidade, acentuando-se nas situações em que teria que desempenhar um papel profissional ligado às artes cênicas, por exemplo. E também no sentido de que se atualizava e se expressava diretamente na via somática, ou em alguma angústia difusa. Não havia caminhos que conduzissem a um sintoma psiconeurótico. Sua angústia era impregnada de uma carência de elaboração psíquica; de simbolização. Era "mais tensão do que conflito, mais estase e descarga do que crise, mais expressão do que criação, mais agir no corpo e no exterior do que deslocamento", afirma Pontalis (1991, p. 23).

Tinha dores abdominais, vômitos, sudorese, interrupção de menstruação. Uma paciente que trazia um grande sofrimento, que vivia cansada por "nunca alcançar a meta desejada". Um excesso de cobrança do trabalho bem feito, do corpo perfeito, da arte e da beleza... Apesar de tudo isso, em algumas sessões dizia com certo sarcasmo que chegaria um dia "lá no corpo caveira que queria ter". E na cena "bombante" que apresentaria. Eu também ficava aflita querendo saber como atingi-la com meus gestos ou palavras, pois a arte da interpretação com ela tinha que ser outra.

A mesma sensação eu tinha quando trabalhava com pacientes meus "não-neuróticos" e também com as pacientes grávidas da Dra. Elisa. Esta médica pediatra e hebiatra me surpreendera por seus excessos. Para se ter uma ideia, ela fora pediatra de conhecidos e de pacientes meus no decorrer dos últimos 30 anos e algumas vezes nos falamos por causa de questões profissionais comuns. Numa noite, ela me liga perguntando se tinha alguns colchonetes, cobertores ou outras roupas disponíveis, pois um dos quarteirões da favela onde trabalhava no Posto de Saúde havia pegado fogo. Ao chegar à sua casa, o marido, já estava com uma caminhonete S10 lotada de colchões, cobertores e roupas para serem entregues. Isso existe? Que excesso é esse, indaguei? Será que ela é louca?! Bem... Como dizia, ela me surpreendera pela totalidade e outros excessos com que vivenciava seu compromisso médico e humano. Demasiadamente humana! Diziam no Posto que tratava suas adolescentes grávidas de 14-15 anos com seriedade e respeito. Ela mesma me dizia que buscava fazê-las mais conscientes e responsáveis por si próprias e por seus bebês.

Numa grande sala do Posto de Saúde, ela há anos reunia as jovens mães para uma conversa sobre suas necessidades ou para aprofundamento de algum tema, ou alguma técnica de embelezamento, ou aprimoramento de saúde, delas e do bebê. Elas chegavam, algumas já com seus bebês no colo. Vinham ali do entorno ou da periferia mais próxima. Ou convidadas de alguma colega que frequentava o Posto de Saúde. Vinham e aproveitavam depois das reuniões para pesar o filho.

A médica não era "freira"! Nem de nenhum "apostolado"! Morava e gostava de sua agradável casa, bem como do conforto intelectual, mas dizia querer um pouco mais disto para sua clientela: "eles precisam e merecem!"

Estava feliz com seu trabalho mas pensava que uma psicóloga psicanalista poderia ajudá-la mais no seu grupo... Ela sabia que eu havia defendido uma tese cujo tema era a criança, sua doença e sua família. Sabia que já trabalhara bastante tanto em consultório quanto com diferentes grupos institucionais e que eu concordava com as ideias de Herrmann sobre a clínica extensa:

É a aplicação do método psicanalítico a situações exteriores ao consultório, tais como, o hospital, a clínica universitária, a consulta médica, a escola, e, de modo geral, a prática junto à população desprovida de recursos. [...] A recuperação daquilo que constitui o patrimônio original da psicanálise em parte abandonado com o tempo. Como a atenção analítica é sempre clínica, a psicanálise da cultura e da sociedade, a correlação de mão dupla com a literatura e as artes, a própria integração com o reino das ciências, tudo isso é clínica extensa. (Herrmann, (2005, p. 23)

A "doutora" com certeza suspeitava (ou sabia) que um convite seu não iria passar em branco por mim, ia me ocasionar turbulências. Ocasionou. Suscitou. Desejo, medo, curiosidade, empenho... Então, fui. Várias vezes.

Começo a falar dos excessos que vivi, de minhas transferências, contratransferências, reminiscências... bem como da Teoria Extensa, de Herrmann (2005), sobretudo das barreiras internas e externas a enfrentar junto "aos desprovidos de recursos". Na primeira vez, a médica veio me buscar em casa. No caminho comprou sanduichinhos para o grupo. E lá chegamos. Um lugar distante! A sala do Posto fora feita pela Equipe Multidisciplinar.

Num primeiro momento, pareceu-me uma sala improvisada. Umas 30 cadeiras e carteiras em círculo. Ao redor, em todos os cantos, macas, armários e outros objetos amontoados uns sobre os outros. Na parede central, uma tela para apresentação de PowerPoint que a médica providenciara, bem como seu laptop sobre uma mesa. Havíamos combinado de passar um curta-metragem do Anima Mundi, caso nada emergisse do próprio grupo.

Aos poucos, as jovens foram chegando... aproximadamente 25, muitas já com seus bebês. Começamos o grupo, depois das devidas apresentações de ambas as partes. A proposta foi de falarem o que estava mais difícil na relação com seus bebês. Assim surgiram algumas queixas que pareciam imperativos não cumpridos:

"Não dá mais para ir em baladas!"

"O bebê chora demais. Dá vontade de bater!"

"Mãe não ajuda, ninguém ajuda!"

"Não dá para trabalhar, não dá para estudar!"

"Pensava que com a gravidez, muita coisa boa poderia acontecer, mas não aconteceu!"

Entre essas principais queixas, a conversa foi se desenvolvendo e ficando mais em torno de dois "desabafos": "o moleque ou marido que vai para a balada e me deixa só" e "bebê cansativo que não para de chorar e dá vontade de bater". Falavam com raiva tanto do marido quanto do bebê, como se elas mesmas não tivessem nada a ver com isso!

Enquanto isso, alguns bebês choravam mas eram sacudidos e consolados pelas mães ou por outra amiga que os pegava no colo. O bebê da mãe que queria "bater", além de não parar de chorar, mostrava um rostinho absolutamente amargo e tensionado e só parou de chorar quando a pediatra o pegou no colo.

Ao presenciar tudo isso, eu, psicanalista e naquele momento coordenadora do grupo, também me senti incapaz... uma tristeza enorme. Minhas entranhas contorcidas, meu coração apertado, minha respiração parada, tudo em mim suspenso, em excesso, meio atônita, sem ação! Parei. Esperei. Aguardei uns minutos, respirei fundo... Pensei em Freud, Klein e suas crianças, Moreno e a dramatização, em Herrmann e a clínica extensa. Pensei no futuro da humanidade, no mal-estar da civilização!

Era preciso prosseguir. Como? Apresentei-lhes uma proposta: solicitei aos integrantes do grupo que construíssem uma "imagem", uma "fotografia", na qual aparecesse essa mãe, esse "moleque ou marido" e esse "bebê cansativo e chorão", e ainda, na mesma foto, se possível, os sentimentos envolvidos.

No início, certo constrangimento, timidez. Na sequência, o grupo se uniu, a "foto" saiu, bem como um diálogo entre seus componentes. Nos diferentes papéis que ocupavam foram declarando a quase total separação entre o exercício e a execução dos mesmos e a escolha desses lugares que estavam ocupando. Foi ficando cada vez mais clara a quase total ausência de uma antecipada pesquisa ou escolha própria das funções dos papéis a serem assumidos e desempenhados.

No papel de "mãe" diziam que não tiveram outra saída, ou que tinham "aceitado a gravidez porque a vida podia melhorar"; "porque gravidez deixa mais bonita"; "porque o rapaz poderia sustentar"; "porque a gravidez segurava o rapaz"; "teriam um bebê com roupas bonitinhas!"

O "pai", de acordo com quem o representava, achava que:

"Estando com a mina grávida, poderia tê-la na hora que quisesse, ela seria SUA mulher!"

"Não quero o bebê! Você que inventou isso, o problema é seu!"

Por sua vez, quem fazia o papel do "bebê" dizia:

"Eu vou ser lindo! Vou ser o boneco da mamãe!"

"Vou ser bonzinho, não vou chorar muito!"

Nos comentários e discussões depois da "imagem" ou "foto", as mães diziam que a "vida estava muito chata e difícil, que até chegaram a pedir à Doutora que tirasse logo o bebê de dentro delas... para poder ir à balada!" Sentiam-se muito sozinhas e a única pessoa que lhes dava importância e as ouvia, era essa Doutora. Por isso, traziam outras colegas de bairros mais distantes. Por isso, as mães se sentiam mais atendidas e reconhecidas. Seus bebês bem cuidados. E elas ficando "espertas" para não engravidar novamente "sem querer".

Depois desse primeiro encontro, voltei lá. Sempre com tantas questões e reflexões... fiquei pensando no bebê que chora... em sua feição... na não afeição da mãe... na aparente falta de sensibilidade e de percepção das consequências de seus atos.

Quando lhes perguntei um dia sobre seus sonhos e expectativas em relação ao futuro, disseram que não tinham sonhos! Diziam ter necessidade de conseguir comprar o hidratante ideal, uma roupa chique para a balada, o tiptop da melhor marca...

"Como assim, qual é seu sonho?" E me responderam: "Até tive um sonho que com a gravidez tudo iria mudar, mas nada aconteceu! Agora para meu filho, desejo que tenha dinheiro, uma profissão, coisas boas..." E, com um ar de muito sofrimento, sarcasmo e ao mesmo tempo dor e ironia: "É... para ter dinheiro, só tendo marido chefe do tráfico!"

Na total aparência de descompromisso pessoal, eu conseguia entrever e entreouvir nas brechas dessas falas uma fagulha, outra forma de subjetivação, um resquício de "intencionalidade". Outro jeito de singularização? Como tentativa de resistência, ainda que irônica, à homogeneização, ao universal?

E aí, volto a pensar na compra do ideal universal inatingível de Cristiane, na globalização e imposições da contemporaneidade. Volto a fazer algumas reflexões.

Nos últimos 20 anos, as invenções científico-tecnológicos foram em número muito maior do que os novos eventos que ocorreram no último século. Acompanhar tais invenções, informar-se a respeito delas e elaborá-las tornou-se tarefa impossível, dados seus desdobramentos e a intensidade de suas repercussões no dia a dia. Tudo isso tem nos arrastado por vezes a agir e não pensar!

Lembremos também da internet, do mundo real e virtual, de sua grande contribuição, valores/desvalores, benefícios/perigos... Real e imaginário a nos convocar continuamente ao discernimento. Tais situações constrangem pelo fato de nos encontrarmos nesses momentos nos limites confusos de continuidades e descontinuidades, entre fantasia e realidade.

Herrmann (2001) critica essa distinção atribuindo-a a um "perceptualismo" ingênuo que considera as representações psíquicas como cópias do mundo. A percepção, por seu vetor emocional, também participa da criação do percebido, por isso, com os pés fincados na fenomenologia, a Teoria dos Campos toma as representações de desejo (no âmbito do sujeito) e real (no do mundo) – identidade e realidade.

Não é nosso objetivo neste trabalho discorrer sobre a constituição do desejo ou da subjetividade, apenas enfatizar quanto os excessos da atualidade estão levando o homem a ser agido e não agir, a substituir a experiência pela informação, num mundo onde a realidade se declara virtual. Isso pode impedir o discernimento e a apropriação até mesmo das menores decisões ou compromissos do dia a dia.

São criadas falsas representações do cotidiano e da vida humana que levam ao engodo, ao simulacro, o que aparta o ser humano de sua própria substancialidade. Como consequência, esse mundo torna-se cada vez menos crível. Para compreender esses excessos, o homem necessita de intérpretes que carregam também essa desconfiança de credibilidade. Essa característica de incredibilidade do mundo contemporâneo retira de seu homem a própria capacidade de interrogá-lo. Assim, não é ele que pensa o mundo, antes é por ele pensado. Temos, pois, um paradoxo: ao mesmo tempo que o homem de hoje é levado pela correnteza do agir e da credibilidade acéfala, é também levado pela desconfiança.

O sociólogo Ehrenberg (1998) mostra como a patologia da depressão ocupa um lugar central na psiquiatria atual. Num momento em que há o declínio do modelo disciplinar e dos interditos (o que originava as neuroses), evidentemente acontecem mudanças significativas no modo de se subjetivar. O sofrimento não vem mais do desejado x proibições ( "sociais") mas, sim, da pressão social que chega ao indivíduo de modo excessivo e maciço, sem que se possa pensar sobre ela. Ao invés de nos culparmos por termos um desejo, nos culpamos por não alcançá-lo. E, sobretudo, por não alcançá-lo sozinhos. Vigora sempre um sentimento de solidão e vazio. Como afirma Fortes, "se, por um lado, a atualidade não tem a culpa como motor da produção de subjetividade, o vazio subjetivo se delineia hoje como um dos efeitos do próprio excesso" (Fortes, 2008, p. 64). Nesse sentido, se a neurose era a tônica de um indivíduo dividido, marcado pela separação entre o permitido e o proibido, a depressão é a marca da separação entre o possível e o impossível.

Gondar diz que, tanto Foucault como Deleuze, denominam essa nova sociedade de "sociedade do controle" (2003, p. 82). A passagem de uma sociedade disciplinar para sociedade de controle se caracteriza inicialmente pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições. Estas mediavam relações entre os indivíduos e o socius, disciplinando-os e fazendo-os dóceis, favorecendo subjetividades submetidas a marcos definidos. Hoje as lógicas disciplinares das instituições se traduzem como formas fluidas atravessando todo campo social. Existem cada vez menos distinções entre dentro e fora, natural e social, público e privado, eu e outro.

Nessa sociedade começam a se produzir relações às quais Herrmann (2001, p. 251) chama regime do atentado. Um conjunto de fatores concorre para sua ocorrência, com consequências iguais ou semelhantes à psicose da ação. A potência individual é "desconfirmada", bem como qualquer ideia, expressão e gesto pessoal. Há uma sensação de completa fragilização por parte do indivíduo.

Outro fator diz respeito à tendência à humanização do mundo, no qual o modelo de ser é o próprio ato humano. As nações, o Estado, as classes sociais são pensadas como indivíduos, com desejos, aspirações, projetos, ordenando resposta, atendimento, gratificação. Só há prestígio ontológico onde houver a conexão de um intuito com resultados e sucessos condizentes.

Colaborando com a construção desse estado patológico entram os sistemas eficientes de comunicação de massa e de propaganda penetrando nas intenções individuais, difundindo a representação obscurecedora do real que reconhecemos como realidade. Com isso, a consciência só pode aspirar a sobreviver perdida na massa, se não será desprezada. Deverá, portanto, identificar-se ao todo; agir e resultar, não importando os meios, mas os fins.

Quando está morta a eficácia individual, cria-se a grande personalidade, que é erigida em representante das instâncias sociais. O pequeno poder da personalidade é inversamente proporcional à majestade da representação a ela dada. Nesse sentido, ela representa exatamente a sociedade. Ela também não difere da propaganda que a criou e a sustenta. E que se encarrega de opacificar o processo de formação no real e homogeneizar as realidades diversas sob uma aparência comum.

Toda essa reviravolta, contudo, vai também acontecendo de uma forma por vezes sutil e subliminar, redundando na depressão, adicção, compulsão, nas manifestações que alguns chamam de "patologias do ato", e outros "psicose da ação" (Herrmann, 2001).

Da mesma forma que Cristiane, pelo menos em muitos momentos, parecia não conseguir fazer uma crítica aos imperativos e ordens que "engolira" sem elaborar, a respeito do corpo e da arte perfeita, assim as meninas grávidas sofriam igualmente sentindo-se incapazes de ter e ser em vários aspectos. Nem sabiam que poderiam ter um sonho. Um sonho maior que ter a gravidez como única forma de se tornar alguém, um sonho de ter um bebê bem vestido, como única forma de chamar a atenção. Um sonho maior do que terem um marido envolvido no tráfico, como único caminho para chegar à ascensão econômica. Tudo isso sob os imperativos do não pensar.

Então, em termos psicanalíticos, como pensar esse imperativo vigente na sociedade com esse regime? Em 1930, Freud levantou uma hipótese sobre uma vertente do supereu, que em vez de estabelecer limites para um bom funcionamento psíquico, segundo os ditames do princípio do prazer, impõe um modo de agir que desconsidera o prazer, os desejos e as inclinações singulares do indivíduo. Essa vertente do supereu, sádica e cruel, em vez de estabelecer barreiras à satisfação pulsional desregrada, fortalece-a e incita-a.

Acontece aí um imperativo superegoico. Os indivíduos a ele submetidos, além de não terem opiniões próprias, também não conseguem perceber e respeitar as opiniões e peculiaridades do outro. Qual o interesse da psicanálise nos diferentes pontos de resistência à modernização homogeneizante? Qual seu agudo olhar para todo esse sofrimento?

Como disse inicialmente, esse trabalho é difícil por vários motivos. Sobretudo porque os pacientes dos quais estamos falando apresentam desinteresse pela própria vida emocional, descrédito nas aspirações em relação ao futuro e, às vezes, descrédito em relação ao próprio analista. A grande dificuldade, contudo, é que se trata de inverter uma experiência de projeção da interioridade, única garantia da identidade do paciente.

O que falamos até agora – sobre Cristiane e as meninas grávidas –, pode ser visto não só de uma única perspectiva a respeito da aquisição de uma percepção mais interiorizada de si mesmas e do mundo circundante. Existem, sim, outras formas de chegar a essa aquisição que um olhar processual pode nos ajudar a encontrá-las. É importante que possamos adotar também essa forma de olhar processual para não correr o risco de negativizarmos as formas de sofrimento dos doentes ou clientes de que falamos.

Podemos olhar esse sofrimento dando-lhe outro significado. Ao invés de vermos o indivíduo sem nenhuma intenção ou resistência, podemos valorizar os esboços e "ensaios" de atitudes por meio dos quais o processo de reversão no sentido da interiorização pode estar acontecendo silenciosamente. Nesses ensaios, poderemos entrever a semente de uma forma de resistir à modernização homogeneizante. A esse respeito, uns versos de Adélia Prado, em Leitura:

Eu sempre sonho que uma coisa gera,
Nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

Nas situações clínicas mencionadas, tentativas de dizer não às injunções superegoicas – por exemplo, Cristiane devendo ter "um corpo de caveira" ou representar "uma cena bombante"; ou a jovem grávida que queria ter um "marido chefe do tráfico" –, pode-se identificar algo importante: a expressão forte/frágil de uma denúncia. Um contorno do desejo da Vida, não da Morte, nem da Caveira, nem do Tráfico. Não poderia ser uma forma contemporânea de resistência à sujeição? Não poderia ser algo que "parece morto mas que está vivo... parece estático mas gera e espera", na fala de Adélia Prado? A própria sala de atendimentos construída pela equipe multidisciplinar que é, para meu espanto inicial, aproveitada como território de despejo de objetos em desuso, é passível de outro olhar. Uma sala retangular que acolhia 25 jovens em círculo com um excesso de dor, em busca de escuta e de novos olhares.

E a clínica? Nesses casos, de dor das adições, bulimias, anorexias e todas essas formas contemporâneas de sofrimento, lançamos mão dos "toques interpretativos". Pequenos toques verbais, ou não, que possibilitarão em algum momento a interpretação propriamente dita.

Para esses pacientes que assim se apresentam, é menos importante interpretar do que construir um espaço de intimidade e confiança. Assim, temos que ir vagarosamente criando um campo transferencial no qual eles possam "deitar no divã" da entrega e da confiança, no qual o pensar emerja; no qual as mínimas manifestações de interioridade e de encontro consigo mesmo possam acontecer, tomar consistência. Nesse campo transferencial, estaremos buscando menos o desvelamento do oculto ou o derretimento do congelado, do que o berço do nascimento de um novo ser

Nossa clínica pode se comprometer com a busca do si mesmo e dos interesses, com a ética e com a função política que daí decorrem. Essa intensa busca e perscrutação nas brechas das possibilidades das jovens grávidas tem sido o excesso da Dra. Elisa e de sua equipe, excesso esse que me surpreende, me atrai, me faz concordar com Shakespeare, em Rei Lear: "compreendes, por acaso, que necessitamos de um pequeno excesso para existir?"

 

Referências

Ehrenberg, A. (1998). La fatigue d´être soi: depréssion et societé. Paris: Odile Jacob.         [ Links ]

Fortes, I. (2008). A dimensão do excesso no sofrimento contemporâneo. Pulsional – Revista de Psicanálise, 21(3), 63-74.

Gondar, J. (2003). Sociedade de controle e produção de subjetividade. In M. Arán (Org.). Soberanias. Rio de Janeiro: Contracapa.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Sobre a teoria psicanalítica do real. In F. Herrmann. Andaimes do real: psicanálise do quotidiano. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2005). Clínica extensa. In L. Barone (Org.). A psicanálise e a clínica extensa – III Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos por Escrito. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Herrmann, L. (2007). A interpretação do ponto de vista da Teoria dos Campos: sua eficácia, sua idealização. Jornal de psicanálise, 40(73), 83-90.         [ Links ]

Pontalis, J.-B. (1991). Atualidade do mal-estar. In J.-B. Pontalis. Perder de vista: da fantasia de recuperação do objeto perdido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
MARIA REGINA HENRIQUE BRANCO VOLPE
Rua Antero Mendes Leite, 155
04028-020 – Aclimação – São Paulo – SP
tel.: 11 5571-6574
E-mail: mariareginavolpe@hotmail.com

Recebido: 05/10/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica (PUCSP). Membro associado da SBPSP.