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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

EM PAUTA - EXCESSO

 

Baixio das Bestas e Febre do Rato – dois filmes de Cláudio Assis – diferentes caminhos para os excessos de viver

 

Baixio das Bestas and Febre do Rato – two films of Cláudio Assis – different paths for the excess of living

 

 

Rodrigo Lage Leite*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Instituto de Psiquiatria da FM-USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de dois filmes de Cláudio Assis, Baixio das Bestas e Febre do Rato, o autor apresenta algumas reflexões acerca dos possíveis excessos da pulsão sexual, e das diferentes vias de escoamento destes excessos. Observa conceitos como sublimação e perversão, pensando-os dentro do universo particular deste cineasta brasileiro.

Palavras-chave: Pulsão sexual, Sublimação, Perversão, Cinema e psicanálise.


ABSTRACT

Baixio das Bestas and Febre do Rato – Two films of Cláudio Assis – Different paths for the excess of living Based on two films of Cláudio Assis, Baixio das Bestas and Febre do Rato, the author presents some reflections about possible excess of sexual instinct, and its different flow paths. Concepts like sublimation and perversion are observed through the particular cinematographic universe of this Brazilian film maker.

Keywords: Excess, Sexual instinct, Sublimation, Perversion, Cinema and psychoanalysis.


 

 

"Sabe o que é o melhor do cinema? É que no cinema, tu pode fazer o que tu quiser." Com esta frase, o cineasta pernambucano Cláudio Assis insere em meio à aridez do seu filme Baixio das Bestas (2007), uma das poucas saídas para a violência e o desamparo de seus personagens ambientados na Zona da Mata Pernambucana. Em Febre do Rato (2012), a poesia marginal de um poeta anarquista é que ventila possibilidades de uma existência menos erma para personagens errantes, em uma Recife tomada pela miséria material, e também pelos enigmas da existência humana. Cinema e literatura postos como saídas possíveis para o convívio com faltas e excessos, numa intrigante inter-relação destas duas situações intrínsecas ao viver.

Cumpre ressaltar na trajetória desse cineasta a contundência das cores. Em Amarelo Manga (2003), seu primeiro longa-metragem, chamava a atenção o vermelho vivo do sangue de gado escorrendo no chão de um matadouro. Em Baixio das Bestas, o vermelho vivo aparece no batom da menina-prostituta, que foge do jugo do avô abusador e encontra como saída a prostituição de beira de estrada. Por fim, o preto e branco alucinante de Febre do Rato traduz a inequívoca capacidade do artista de se aproximar, sem medos ou pudores, do excesso, e de pensar seus destinos.

Se por um lado, contundência e despudor são marcas dos três filmes, por outro, entre os dois últimos, Baixio das Bestas e Febre do Rato, a dinâmica entre falta e excesso, vazio e violência, ausência e extravasamento e, sobretudo, os caminhos de escoamento dos excessos encontrados pelo artista e por seus personagens, tomam rumos diferentes.

 

Baixio das Bestas – a usina em chamas

A miscelânea de imagens orquestrada por Assis em Baixio das Bestas nos lança no âmago da região da Zona da Mata Pernambucana. Ali, a decadência das usinas de cana-de-açúcar, a miséria e o abandono social servem de cenário para o encontro de personagens marcados pelo desamparo e pela total falta de lei. Auxiliadora, uma adolescente órfã, vive com o avô que a explora durante os dias no trabalho doméstico, e à noite num posto de gasolina, de beira de estrada, onde, por alguns trocados, caminhoneiros e bêbados podem vê-la nua e tocá-la, numa situação humilhante e violenta.

Paralelamente a esse eixo central, jovens da "elite rural" da região vivem seu vazio e desocupação em repetidas orgias sexuais regadas à vodca e maconha, e com irrestrita atuação de sua agressividade. "O pau vai comer, cadelada!", é o anúncio de Everardo às prostitutas. Anúncio de estupros, espancamentos e da primazia de uma sexualidade bruta, em que o outro é mero objeto de satisfação imediata e irrestrita do instinto.

O excesso de violência amortecido e aplacado, vivido pelas prostitutas do bordel e registrado em diálogos repletos de cinismo e de um convicto sentimento de desesperança, contrapõe-se ao excesso "agudo" de violência, vivido por Auxiliadora de maneira silenciosa no ambiente machista e perverso de sua própria família.

A crueldade do avô ao justificar o (ab)uso da neta como fruto de necessidade – "A necessidade faz o cavalo e o cavaleiro" – ou a manipulação do corpo dela por ele próprio – "Você sabe que eu faço isso para o seu bem" – são alicerces de uma dor solitária, expressa com delicadeza na letra da música tema da menina que diz:

O que é que tu quer de mim?
Que voz é essa?
Que silêncio é esse?
Por que tu não falas o que estás pensando?

A falta absoluta de um lugar de fala ou de escuta traumatiza e emudece. Cria um excesso de dor e silêncio, que engendra sobreviventes mutilados em busca de saídas pra suas vidas miseráveis.

Em Baixio das Bestas, os destinos são trágicos. Cortar a cana, cavar o buraco de uma fossa, aprisionar aranhas num vidro, dar tiros a esmo, abusar e ser abusado. Personagens à deriva. Corpos em chamas. Almas esvaziadas. Fantasmas abandonados. Os breves respiros vêm em duas belas metáforas: um cinema abandonado, ambiguamente o local escolhido para atuação absoluta do sadismo do grupo de rapazes, mas também para projeção fantasiosa das loucuras ou desventuras, possibilidade de algum sonho, de algo para além de crimes e perversões, e o maracatu rural, festa colorida, dançante, musical dos nativos da região, que os permite sonhar e pairar para além do concreto de suas vidas desgraçadas:


Sei que Recife me espera,
Com prazer e alegria,
E se Jesus ajudar,
Dou um show de poesia.

Após ser covardemente violentada por um jovem rico da região, e também por seu avô, Auxiliadora foge de casa, enquanto o velho é atacado pelas figuras enigmáticas do maracatu rural, que numa cena onírica e ritualística invadem a casa do patriarca e vingam a neta violentada e massacrada por ele. Dança, música e poesia são os ingredientes da libertação, embriões das saídas que seriam propostas por Cláudio Assis em seu filme seguinte, Febre do Rato, para as dores e tristezas da vida.

Auxiliadora escapa do avô, mas não da marginalidade, da prostituição e da aridez do Baixio das Bestas. Em sua última aparição está maquiada e vestida como prostituta, completamente inserida no ambiente sombrio do posto de gasolina. Baixio das Bestas não poupa ninguém, exceto os artistas do maracatu, em alguma medida, dos excessos criados por tantas faltas, da usina em chamas, de escassas saídas e possibilidades.

 

Febre do Rato – e quem foi que disse que poesia não embala?

A expressão "febre do rato" significa estar fora do controle, perder as estribeiras. Consolidou-se no uso popular nordestino como expressão de algo extravagante e tornou-se uma típica exaltação, seja para algo muito bom ou ruim. No filme, a "febre" aparece em diferentes situações da vida do poeta anarquista Zizo e de seu grupo de amigos, seja no discurso político libertário, seja no tumulto da paixão não correspondida de Zizo pela jovem Eneida, ou ainda nas angústias existenciais e sexuais dos demais personagens. A febre do rato pode ser entendida como o protótipo dos excessos vividos por cada um desses indivíduos, o que os tira do controle, exigindo movimento.

Assim como em Baixio das Bestas, os personagens recorrem ao álcool, à maconha e ao sexo para amortecer as dores da existência. Entretanto, em Febre do Rato, a via de escoamento para o excesso não é a da agressão e da crueldade. Vai em direção à escolha de um modo diferente de se viver, mais livre, alternativo às regras e prescrições sociais, e impregnado pelas ideias e versos do poeta.

Por um lado, a autonomia dos personagens quanto à vida afetiva e sexual funciona como um caminho para o escoamento dos excessos, por outro, a pergunta do poeta, "Quem foi que disse que poesia não embala? Que poesia não embriaga?", relança a ideia da arte como outra importante via deste escoamento.

O desfecho de Febre do Rato é mais otimista no tocante à construção de saídas pessoais para o " existir". Após ser morto pela polícia, durante uma manifestação político-poética, Zizo parece deixar instalado no mundo interno dos amigos a semente de suas ideias de liberdade e autonomia. Ao invés de gerar melancolia e vazio, ele permanece vivo no jeito de viver do grupo, na espontaneidade de suas escolhas e na legitimação de uma sexualidade livre, sensual e terna, diferente do registro perverso e bruto marcado sem rodeios nos destinos sombrios dos personagens de Baixio das Bestas.

 

Excesso e sublimação

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud introduz a ideia fundadora do conceito de sublimação, segundo a qual " as excitações hiperintensas provenientes das diversas fontes da sexualidade encontram escoamento e emprego em outros campos" (Freud, 1905/2006, p. 225). Não se trata de dessexualizar a pulsão, mas de criar outro caminho, não exclusivo ou preferível, mas que contemple o excesso pulsional, e atenda também exigências diferentes, oriundas de outras partes do aparelho mental.

Essa possibilidade de deslocamento, característica da atividade sublimatória, alicerça a ideia de que boa parte das fontes da atividade artística provém da pulsão sexual. Segundo Freud, a produção artística revelaria " uma mescla, em diferentes proporções de eficiência, perversão e neurose" (Freud, 1905/2006, p. 225).

Se em Baixio das Bestas o maracatu rural oferece aos artistas um renovado lugar no mundo – apresentar-se no Recife em seu possível show de poesia –, em Febre do Rato o verso do poeta questiona: " quem foi que disse que poesia não embriaga?". Embriagar-se significa embebedar-se, alcoolizar-se, mas também pode significar inebriar-se, exaltar-se. Embriagar-se " de poesia" está em relação direta com a ideia proposta por Shakespeare, em Rei Lear, acerca de algum excesso necessário para existir.

O termo sublimação é "derivado das belas artes (sublime), da química (sublimar) e da psicologia (subliminar), para designar ora uma elevação do senso estético, ora uma passagem do estado sólido para o gasoso" (Roudinesco & Plon, 1997/1998, p. 734). Pode-se pensar que a pulsão sexual, apoiada em um corpo biológico, mas transcendente a ele, quando transformada em obra de arte, poesia, ou escultura, ou filme, adquire aspecto etéreo e simbólico, e serve de modelo útil para um dos caminhos possíveis para o desejo.

Ao final de seu primeiro longa-metragem, Amarelo Manga, após apresentar variados desfechos para os pungentes conflitos emocionais e sexuais de seus personagens, Cláudio Assis apresenta uma inquietante sequência de imagens, em close, de anônimos moradores do Recife. Homens, mulheres, crianças, velhos, todos, podemos pensar, possuidores de uma história de vida marcada pelo desejo, por um registro único, uma " digital sexual" constituída por conflitos singulares, e que, por conseguinte, terão inexoravelmente que encontrar saídas individuais para o que lhes é intrigante, aflitivo, prazeroso ou excessivo. Enquanto artista o cineasta cria, através de seus filmes, para si e para o público, algumas saídas dentre inumeráveis possibilidades.

 

"Digital sexual" e caminhos possíveis

Outra forma de lidar com os excessos pulsionais diz respeito às escolhas conscientes ou inconscientes relacionadas à vida sexual. Partindo-se dos filmes e do cineasta em questão, podemos nutrir nossa reflexão com a observação de duas perspectivas diferentes quanto a essas escolhas:

Baixio das Bestas é pródigo em exemplos de uma sexualidade em que não se encontra, no essencial da experiência, qualquer consideração ao outro enquanto ser inteiro. Everardo e sua turma, num paralelo inevitável a Alex e sua turma, do filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, extravasam toda sua pulsão sexual e agressividade de maneira direta, sem intermediários. O outro, em si, não importa, e pode ser atacado, ou mesmo destruído, para obtenção do prazer.

Em Febre do Rato, o sexo é apresentado sob outra óptica. A princípio não segue um modelo de sexualidade convencional. A experiência escapa de ideias normativas como monogamia e heterossexualidade, assim como de padrões estéticos óbvios. Entretanto, há na prática sexual a inclusão e valorização do outro na experiência erótica. A despeito do comportamento em si, o outro e seu prazer não estão de fora do essencial da experiência.

Só por esta diferença de perspectiva já se pode observar entre os dois filmes maneiras singulares e, talvez, antagônicas de lidar com excessos pulsionais. Deve-se ainda considerar que numa abordagem psicanalítica, discutir o comportamento sexual ou a agressividade sempre passará por um rastreamento dos seus sentidos inconscientes. Escapando-se da perspectiva moral, sempre restará uma interrogação acerca do papel que um ato em si ocupa no todo da vida do sujeito.

Ferramenta útil nestas observações, a psicanálise oferece modelos teóricos e clínicos, que se não dão conta de todos os "enigmas" da pulsão sexual e seus excessos, pelo menos oferecem pontos de partida convidativos para pensá-los.

Numa destas tentativas de "observar a imaginação erótica", a psicanalista francesa Joyce McDougall, por exemplo, compara os conceitos de sublimação e perversão e aponta aspectos idênticos de suas definições, sobretudo quanto à ideia de um desvio da pulsão sexual em relação aos seus alvos originais. Segundo ela, nas duas situações haveria um componente de inventividade, independentemente da diferente valorização social atribuída à criação artística ou à pornografia (McDougall, 1978/1989).McDougall extrapola sua comparação de conceitos para os sujeitos envolvidos, refletindo também sobre artistas e perversos. Num paralelo interessante, explora similitudes e diferenças entre ambos, e nos atos de criação artística ou de "roteiros sexuais" perversos (McDougall, 1978/1989).

Em Baixio das Bestas e Febre do Rato, caminhos de sublimação se misturam a caminhos de perversão, e provavelmente a outros, para além de nossas teorias. As duas obras também fazem pensar sobre a ideia de normatizações em psicanálise. Abrem perspectivas de reflexão para além do campo da moralidade ou do comportamentalismo, e nos instigam a sonhar com os caminhos que cada ser percorre, no convívio íntimo e solitário, com suas faltas e excessos.

 

Referências

Freud, S. (2006). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 7, pp. 225-340). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).         [ Links ]

McDougall, J. (1989). Em defesa de uma certa anormalidade (C. E. Reis, trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1978).         [ Links ]

Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1997).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
RODRIGO LAGE LEITE
Rua Dr. Seng, 235
01331-020 – Bela Vista – São Paulo – SP
tel.: 11 3285-3053
E-mail: rlageleite@uol.com.br

Recebido: 15/10/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Médico psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria da FM-USP.