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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo ene. 2013

 

ARTIGOS

 

Mito e paixão: o ciúme. Safo, Lupicínio, Caetano1

 

Myth and passion: jealousy. Sappho, Lupicínio, Caetano

 

 

Adélia Bezerra de Meneses*

Universidade de São Paulo
Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta é de uma abordagem do poema Parece-me igual aos deuses (séc. VII a.C.), de Safo, em confronto com as canções Nervos de Aço de Lupicínio Rodrigues e Dor de cotovelo de Caetano Veloso – textos que nos ensinam a "dizer" o amor, a dar forma verbal àquilo que todos nós confusamente vivemos e sentimos, e que, sem a poesia, ficaria inexpresso e não perduraria. Remontando ao mito, ou melhor, partindo da percepção da radical incompletude que nos estigmatiza, e que foi constelada em mitos de cepas culturais diferentes (o mito grego do Andrógino, em O Banquete de Platão, e o bíblico, de Eva tirada da costela de Adão, no Gênesis), flagra-se nos 3 poemas, com mais de 27 séculos de permeio, a mesma vibração passional: o ciúme. E embora se adote o princípio de que o homem é um ser histórico, e que todas as experiências humanas são moduladas historicamente, impõe-se uma dialética entre a historicidade da paixão e a presença de invariantes.

Palavras-chave: Lírica amorosa, Safo, Lupicínio Rodrigues, Caetano Veloso.


ABSTRACT

This work proposes to approach the poem It seems to me that he is like gods (VII Century BC), by Sappho, as compared with the songs Nerves of steel, by Lupicínio Rodrigues, and Love Jealousy, by Caetano Veloso – all these texts teaching us to "say" the love we feel, to verbalize that which we all live and feel in a confused manner, and, without poetry, would remain inexpressible and would not last. Referring to the myth, or better, departing from the perception of our stigmatizing radical incompleteness, which has been displayed in myths of different cultural sorts (the Greek myth of Androgynous, in Plato's Banquet, and the biblical one, of Eve being born out of Adam's rib, in the Genesis), in the three poems, with 27 Centuries in between, it is possible to witness the same passional vibration: jealousy. And, notwithstanding the adoption of the principle that man is a historical being, and that all human experiences are historically modulated, a dialectics prevails between historicity of passion and the presence of invariants.

Keywords: Amorous lyricism, Sappho, Lupicínio Rodrigues, Caetano Veloso.


 

 

No prefácio ao livro Eros, tecelão de mitos: a poesia de Safo de Lesbos, Benedito Nunes finaliza seu texto dizendo que "No confronto da distância temporal que as une e separa, a lírica de Safo e a lírica moderna se aclaram mutuamente. Eis até onde vai a interpretação problemática e aproximativa de Safo de Lesbos" (Nunes, 1991, p. 20).

É esta a proposta deste texto: um contraponto entre três peças literárias que ressoam a mesma vibração passional: o emblemático poema de Safo Parece-me igual aos deuses e duas canções da MPB, a saber Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues, e Dor de Cotovelo, de Caetano Veloso. Todas sob o denominador comum do ciúme, ingrediente da lírica amorosa de todos os tempos. Isso significaria – com as devidas desconfianças face aos anacronismos na abordagem – uma atenção ao "diálogo cultural" que os autores de diferentes épocas empreendem entre si, levando em conta seus diferentes contextos culturais, com 27 séculos de permeio.

Mais do que tudo, pretendo ilustrar uma experiência passional que a lírica registra, apontando um paradigma literário, num arco que se desdobra do século VII a.C. até a contemporaneidade: textos que nos ensinam a dizer o amor, dando forma verbal àquilo que todos nós, humanos, confusamente sentimos e percebemos, mas de uma maneira não articulada e que, sem a poesia, ficaria inexpressa e não perduraria.

Aliás, a questão do tempo há de ser colocada, pois se estabelece inevitavelmente uma dialética entre as invariantes do sentimento amoroso e a historicização da paixão, uma vez que, como todo elemento constituidor do humano, a experiência passional é modulada historicamente. Assim não se poderia considerar o amor – e sua expressão – como algo de imutável ao longo dos séculos: tudo que é humano é marcado pelo tempo, não se vivencia um afeto hoje como na Antiguidade. No entanto, a essa historicidade contrapõe-se a evidência de invariantes, que atravessam séculos, que cruzam espaços. Esse sentimento que é inexprimível, a não ser pela poesia, não mudaria, no espaço e no tempo? Mas mesmo com todas as disposições para se respeitar a dimensão histórica, temos que nos dobrar, por vezes, à percepção inequívoca de uma invariante amorosa. Os estudiosos são unânimes em afirmar que a nossa concepção de amor data da lírica trovadoresca. No entanto, no caso dos poemas elencados, a lírica grega do século VII a.C. faz inequivocamente ressoar em nós algo que integra a nossa experiência de seres humanos do século XXI.

Mas antes de entrar nas modulações da paixão atualizada no poema (e fragmentos) de Safo, bem como nas estrofes de "dor de cotovelo" dos nossos compositores da MPB, impõe-se uma questão preliminar, que diz respeito à própria etimologia da palavra paixão: o pathos grego, que significa sofrimento, é do mesmo radical da passio latina, (de onde se originou passivo, passividade) indicando algo que se sofre. E se é verdade que pathos designa qualquer emoção da alma (cólera, inveja, alegria, ódio, remorso, piedade etc.), é verdade também que o conceito se afunilou, e paixão, nos tempos atuais, passou a designar paixão amorosa, algo que sobrevém, que irrompe, como uma doença. Pathos, assim, é o que se experimenta, por oposição ao que se faz, isto é, tudo o que afeta o corpo ou a alma, no bem e no mal. Põe-se à luz a ligação entre afeto e afetado.

Em todo o caso, reitero que vou usar o termo "paixão" na sua acepção moderna, atual; neste momento não vou me debruçar sobre as questões delicadas da história do vocábulo pathos, um terreno rico (e minado). No entanto, umas rápidas pinceladas se farão necessárias para prosseguirmos: na Poética de Aristóteles, "pathos" enquanto "sofrimento" é o termo para denominar uma das partes do "mythos", do enredo da tragédia: o sofrimento cruento, que nunca era mostrado em cena aberta; na Retórica, quando discorre longamente sobre as paixões, é da amizade, "philia", que Aristóteles tratará, bem como na Ética a Nicômaco, em que o filósofo faz a tocante declaração de que a amizade é condição necessária para a felicidade. Mas será com Platão, em O Banquete, que Eros será apresentado em toda a sua grandeza. O nosso conceito usual de "paixão" seria recoberto por Eros, podendo ser traduzido ora por "amor", ora por paixão amorosa.

Em O Banquete de Platão, diz Aristófanes, à guisa de introdução à narrativa do mito do Andrógino:

Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem percebido o poder do amor (Eros), que se o percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe fariam, não como agora que nada disso há em sua honra, quando mais que tudo deve haver. É ele, com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano. (Platão, 1972, p. 28)

Mas se é verdade que o amor provê a cura para o mal de existir, nos grandes textos que tratam do amor-paixão, do amor passional, essa coisa que se experimenta é sentida como algo que faz sofrer. Por que sofrimento? Por que essa rima inevitável do amor com dor?

Uma primeira resposta nos levaria a algo com que a nossa experiência pessoal inevitavelmente já nos terá feito deparar: a percepção da radical incompletude que nos estigmatiza, impelindo-nos ao encontro com o Outro. E, evidentemente, a sensação da solidão, a nostalgia da Completude. Nostalgia do Um, que é radicalizada – e atualizada em termos de mutilação – nas separações. Foi ela que deu origem aos mitos do Andrógino em O Banquete de Platão e de Eva tirada da costela de Adão, no Gênesis bíblico: mitos de cepas culturais diferentes, mas de mesma etiologia. Com efeito, se tomarmos esses dois mitos "fundantes" de duas civilizações de cuja confluência se originou a nossa civilização, a grega e a judaica, (com a contribuição africana e indígena, no caso específico brasileiro), veremos que eles tentam dar conta dessa dolorosa percepção ligada à nossa experiência do amor.

Vejamos o mito do Andrógino: o ser humano foi criado por Zeus como duas metades acopladas2, e estava se tornando muito forte: isso preocupou os deuses, que, para fragilizar essa criatura – repito: para enfraquecê-la –, resolveram dividi-la em duas metades – que hão de procurar-se, o resto da vida, inapelavelmente...

Essa mesma ideia será encontrada no seio de uma outra civilização, como já disse, na narrativa mítica da Criação no Gênesis bíblico, em que Eva foi tirada da costela de Adão. Em ambos os casos, alude-se à ruptura de uma unidade primordial e suas dolorosas consequências.

Se a Filosofia e também nos nossos tempos a Psicanálise tentam dar respostas – lógicas, racionais – a questões fundamentais do humano no nível do pensamento racional, da razão, o que faz o mito? O mito conta uma história, uma narrativa em que essas questões fundamentais são colocadas – a saber, a incompletude que experimentamos, a dor mutilante nas rupturas afetivas, a percepção da falha, da falta, da carência: isso tudo é figurado numa narrativa, constela-se num mito.

Reitero: tanto o mito grego do Andrógino, quanto o bíblico de Adão e Eva são criados a partir de uma vivência humana, e de uma perplexidade: a dor da incompletude. Mitos criados a partir da experiência da fugaz percepção de integração que as relações amorosas propiciam, infinitas enquanto duram. A paixão é flagrada sempre em momentos de clivagem; está sempre no registro da dor e não no registro da alegria. Paixão, desde a etimologia, reitero, está ligada a sofrimento. Será por isso que encontramos, num dos fragmentos de Safo:

os que são meu bem-querer, esses
me trazem dores (Fragmento 75)?3

Ou ainda, no mesmo diapasão, no fragmento 60:

a minha dor, que flui
gota a gota

Dor e sofrimento modulados o mais das vezes como solidão, como a que Safo expressa numa tocante simplicidade, em versos que conjugam o "estar sozinha" (no original: ego de mona – mas eu só) com a passagem implacável do tempo, um tempo mensurado pelo movimento dos astros:

A lua já se pôs, as Plêiades também;
É meia-noite;
A hora passa, e estou deitada, sozinha (Fragmento 31)

Nos textos a seguir, o poema Parece-me igual aos deuses (Phainetai moi) e em canções da MPB, de Lupicínio Rodrigues e Caetano Veloso, flagra-se a dor da perda do amor, ou da iminência da perda, numa situação em que o ser que nos completaria desvia seu olhar para um outro objeto amoroso: está instalada a situação de ciúme. De Otelo a Dom Casmurro, de Medeia às canções de dó de peito e de "dor de cotovelo" da canção popular, esse é um topos da Literatura. E pelo conhecimento que se tem da Lírica Ocidental (na medida em que se pode chamar de "ocidental" o que é grego), pode-se com tranquilidade dizer que temos na poeta de Lesbos uma de suas mais intensas manifestações.

Vamos ao poema, um dos textos de Safo que nos restaram praticamente completos – pois na realidade faltam os versos finais, encabeçados por um "mas" – o que, por sinal, nos deixa em suspenso, à beira do mistério4:

Parece-me igual aos deuses
ser aquele homem que, à tua frente sentado,
de perto, doces palavras, inclinando o rosto, escuta,
e quando te ris, provocando o desejo:
isso, eu juro,
me faz com pavor bater o coração no peito;
eu te vejo um instante apenas e as palavras
todas me abandonam;

a língua se parte; debaixo da minha pele,
no mesmo instante, corre um fogo sutil;
meus olhos não vêem; zumbem meus ouvidos;

um frio suor me recobre, um frêmito se apodera
do corpo todo, mais verde que as ervas
eu fico; e que já estou morta,
parece
Mas...

Esse famosíssimo poema tornou-se já na Antiguidade não apenas um topos literário do apaixonamento, mas um clichê da sintomatologia da paixão, como diz Fontes (1991, p. 148). Há um texto de Plutarco, comenta ele, em que são descritas as reações de um rapaz quando encontra uma mulher, e diz Plutarco que nesse homem podiam ser encontrados "todos aqueles sinais que Safo nos descreve em suas obras" (Fontes, 1991, p. 154).

O estado de apaixonamento e sua conturbação revela-se no corpo, marca-o profundamente, sensorialmente. A emoção é percebida no nível corporal: o coração bate com pavor, a cor muda, os sentidos comparecem na sua quase totalidade. Com efeito, 4 dos 5 sentidos são violentamente convocados e atingidos, como que desatinando o sentido do gosto (a língua se parte), o sentido do tato (o fogo sutil sob a pele; o frio suor), a visão (os olhos não vêem) e a audição (os ouvidos zumbem). O único sentido que não aparece explicitamente é o olfato. E, finalmente, o corpo na sua totalidade é atingido: "um frêmito se apodera do corpo todo", vem a palidez (verde como as ervas) e o símile é a morte.

Emil Staiger, ao falar da lírica, transcreve esse poema em seu Conceitos fundamentais da poética, como um exemplo insuperável de sensações ou sentimentos que são realidade corpórea, ratificando, diz ele, a sentença de Schleiermacher: "ser alma quer dizer ter corpo" (Staiger, 1993, p. 62). Efetivamente, aqui é o corpo, sede da emoção, o lócus da dor, do sofrimento. Não há uma "análise psicológica" em pauta: há um sofrimento, um pathos, uma emoção intensa que é exteriorizada no corpo. Emoção: etimologicamente, emoção pressupõe movimento: de ex-movere = mover a partir de.

Não por acaso, Otto Maria Carpeaux, para quem "A expressão de paixões violentas parecia aos antigos a verdadeira tarefa da poesia lírica" (Carpeaux, 2008, p. 56), fala de uma verdadeira "psicofisiologia erótica" desses versos. Efetivamente, a paixão aí se mostra na sua violência, através dos efeitos corporais que provoca. Estamos de tal maneira no plano físico que o "coração" que aparece é, no original grego, "cardia", e não o termo "frenes" (traduzido no mais das vezes como "espírito", ou "alma", ou coração mesmo, mas enquanto sede de sentimentos); aqui se trata do coração fisiológico, aquele que bate no peito, do qual se ocupam os cardiologistas.

E tudo isso provocado pela visão, por parte do eu lírico, da amada dando atenção a um outro: ciúme. Está instaurada a situação clássica, um triângulo amoroso. Ou: um triângulo supostamente amoroso, uma vez que uma das personagens deduz dos gestos das outras duas uma ameaça (real?) de perda amorosa. Pois nesse poema nada é interpretado das personagens, nada é narrado, só descrito. E aqui, tem-se que dar razão aos helenistas que, unanimemente, falam da ausência de análise psicológica na poesia grega. Mostra-se uma cena, um "clima" entre duas personagens, um homem e uma mulher; e alude-se a uma terceira, espectadora, que é o eu lírico, por detrás de quem estaria a autora5. Uma cena, sua espectadora, e mais todas as suas consequências: um vórtice.

Há um outro poema de Safo, ou melhor, um fragmento de poema que se pode dizer que daria conta de explicitar o potencial devastador dessa cena; nesse fragmento (62) nomeia-se o medo, a possibilidade virtual a que essa cena alude:

Tu me lançaste no esquecimento
[ ]
ou existe outro homem
que a mim tu preferes?

Mas aqui, como já referi, nada se nomeia; apenas se mostra. Toda essa emoção intensamente corporal, no poema de Safo, é provocada por gestos corporais; tudo é desencadeado pelo fato de um homem sentar-se à frente do ser que é objeto da paixão do eu lírico, numa situação de proximidade e de intimidade; apenas: sentar-se próximo, inclinar o rosto, e escutar. Não se sabe quais as palavras que ele escuta; seriam "doces" pelo efeito que causam. E também, da parte da outra protagonista da cena, somente os signos corporais, os signos da gestualidade estão presentes. Não se está às voltas com o que pensa, diz ou sente esse homem; nem com o que sente ou pensa a jovem com quem ele contracena; mas registra-se o efeito devastador que a sua presença provoca numa terceira personagem, que vem a ser o eu lírico. Gestualidade corporal do homem, e, do lado da amada, ou melhor, do objeto dos cuidados do eu lírico, além das "doces palavras" aludidas, também um gesto corporal, o sorriso:

E quando te ris, provocando o desejo

No mundo grego, o sorriso é um atributo fundamental de Afrodite, a deusa do amor. Ela recebe o epíteto de "Philomeidés"6, a "amiga dos sorrisos", ou "aquela que ama o sorriso". No Hino Homérico a Afrodite, como diz Joaquim Brasil Fontes (1991, p. 138), ela atiça o desejo no coração dos animais, instigando-os a se acasalarem, numa manifestação poderosa de sua ação, força irresistível que submete os humanos, os animais e os deuses. É um poder que encontra seu símile na natureza: "Como o vento que se abate sobre os carvalhos na montanha, / Eros me trespassa", diz um outro fragmento (17) de Safo.

Mas volto ao Hino Homérico, que nos provê de ricas informações sobre Afrodite, a deusa de quem Safo, especificamente, é a "Servidora" – "Tu e Eros, meu Servidor", diz Afrodite dirigindo-se a Safo, em versos registrados por Máximo de Tiro7 (Fontes, 2003, p. 49); aqui a deusa aparece não apenas em todo o seu esplendor (sua beleza, seus adereços são descritos pormenorizadamente), mas também como a senhora da Persuasão (Peithô), aquela que dispõe de palavras persuasivas8. Assim, temos com Afrodite a sedução pelo sorriso, a que vem se somar a sedução pela palavra – o que leva a redimensionar as "doces palavras" que a jovem dirige ao rapaz "semelhante a um deus".

É interessante observar que o desejo provocado pelo riso atinge não somente o rapaz, a quem evidentemente o sorriso é dirigido, mas também atinge a espectadora da cena. E o efeito é devastador, semelhante àquele que se encontra no Fragmento 18:

de novo, Eros me arrebata,
Ele, que põe quebrantos no corpo,
Dociamaro, invencível serpente

A caracterização de Eros como aquele que "põe quebrantos no corpo" tem uma tradição consagrada no mundo grego, como se pode verificar na Teogonia de Hesíodo, em que fica registrada a força poderosa do deus Amor, que atua no corpo e no espírito:

[...] Eros, o mais belo dentre os deuses imortais,
que amolece os membros9
e, no peito de todos os deuses e de todos os homens,
domina o espírito e a vontade ponderada.
(Hesíodo, 1928, Teogonia, vv. 120-122)

Efetivamente, o Amor aí, seja figurado como Eros, ou como Afrodite, é uma força externa, invencível, que pouco tem a ver com a interioridade da pessoa. É por isso que na tragédia Hipólito, de Eurípides, o Coro assim se pronunciará:

Eros, Eros,
Que instilas pelos olhos o desejo
E volúpias infundes
N'alma daqueles a quem dás combate,
Oxalá nunca
Te reveles a mim com a desdita,
Nem me ataques além de minhas forças.
Dardos não têm o fogo e os astros
Iguais aos que dos braços de Afrodite
Desfere Amor, filho de Zeus. (Eurípedes, 1989, p. 107)

Essa força, "doce e amarga", como vimos também no fragmento 18, é uma figuração do caráter contraditório do amor. É assim que na tragédia Hipólito, Fedra, essa grande figura passional da literatura grega, apaixonada pelo enteado Hipólito, filho de seu marido Teseu, tem com a ama um diálogo revelador:

– Fedra: Na linguagem dos homens, o que é amor?

– Ama: Tudo o que há de mais doce e mais amargo.

Continuemos a leitura do poema10: na terceira e na quarta estrofes, recortam-se outras imagens paradigmáticas para se dizer a paixão:

[...] debaixo da minha pele,
No mesmo instante, corre um fogo sutil
[...].
Um frio suor me recobre...

As figuras contrastantes do fogo e da água, do calor e do frio nos remetem – mesmo fora de um quadro de ciúme – aos extremos do sentimento amoroso que, 9 séculos depois de Safo, encontrarão guarida num dos mais belos sonetos de Camões, tecido de antíteses e paradoxos:

Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer (Camões, 1984, p. 123)

Nesse quadro de realidades paradoxais é que também se estriba a comparação com o fogo (símbolo do amor e da libido), pela polaridade de seus efeitos: fonte de vida e de calor, de um lado (que o digam os povos do frio!), e de morte e destruição, de outro; aquece e queima. E paradoxalmente, o fogo do amor é acalmado pela presença do ser amado, como diz o fragmento 58 de Safo:

Vieste: eu esperava por ti,
Escorres, como água fresca, no meu coração ardente

Vamos ao final do poema que estamos analisando:

e que já estou morta,
Parece
Mas...

Essa adversativa final nos deixa... à beira do abismo. Já se falou que seria preciso incorporar a fragmentação, a incompletude, à nossa percepção dos poemas de Safo. Um poema é, séculos depois, ele próprio e tudo aquilo que o tempo aí agregou (ou desagregou). Nesse caso, são as incompletudes que, paradoxalmente, se agregam ao corpo do texto, dando-lhe uma nova dimensão, abrindo-o para o inconcluso, para o não definitivo – como é o conhecimento tateante que temos das coisas.

Mas volto à ideia de morte com que finaliza esse poema passional. A sensação de já estar morta comparece em outro fragmento de Safo, o de número 9:

não sinto mais o gozo deste mundo
[...]
E um desejo da morte

Apaixonados de todos os tempos já sentiram assim, poderão sentir isso, e assim se expressam.

***

Vamos então dar um pulo de séculos e aterrizar na década de 30 do século passado, numa canção paradigmática da MPB, Nervos de Aço11 de Lupicínio Rodrigues. Composta em 1936, não por acaso, como se verá, ela conclui com essa mesma imagem de desejo de morte recorrente em Safo:

Você sabe o que é ter um amor
Meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor
Meu senhor
Nos braços de um outro qualquer?
Você sabe o que é ter um amor
Meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do seu pode ser?
Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias
E sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhe venha qualquer reação
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, despeito, amizade ou horror
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor.

Essa composição de Lupicínio Rodrigues, que interpela diretamente o leitor, colocando-o dentro da canção, "Você sabe o que é ter um amor / Meu senhor", retoma os tópoi da crise amorosa provocada pelo ciúme.

Também aqui se trata de uma cena que foi flagrada: a amada nos braços de um outro. O autor poupa seu ouvinte/leitor da descrição de sua "reação". Mas já se esboça aqui – afinal, estamos com essa canção em pleno século XX! – uma análise que poderíamos chamar de psicológica, e que vai além da descrição das sensações, tentando esquadrinhar os sentimentos:

Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, despeito, amizade ou horror

Aqui também se desdobra uma triangulação amorosa, em que o eu lírico, ao mesmo tempo que atualiza a sede de completude que o marca, tem a percepção da perda do único ser que o completaria. Daí, o "desejo de morte ou de dor", ecoando a mesma imagem – que atravessa séculos – do final do poema de Safo (bem como do fragmento 9), como vimos.

Embora não seja necessária para a interpretação que venho empreendendo (e apesar de sabermos que o "eu lírico" não se identifica com o Autor), creio que lhe daria mais colorido uma informação biográfica fornecida pelo próprio compositor: o fato de que essa mulher que foi objeto de "loucura" do eu lírico tenha tido um referente na vida real, existia em carne e osso, e chamava-se Iná: "A Iná foi a primeira mulher que eu tive. E a primeira desilusão" – diz Lupicínio numa entrevista ao Pasquim em 1973 (Souza, 2009, p. 98). Conta o compositor que essa mulher, com quem foi casado por 6 anos, e de quem se separou porque ela intentou traí-lo, é a inspiradora de Nervos de Aço e é "a Iná de muitas músicas". É uma informação interessante porque possibilita que se faça aqui um paralelo invertido com Safo, cuja produção literária se confunde com a sua biografia lendária: o que sabemos dela é aquilo que se pode deduzir de seus poemas e fragmentos (alguns referidos indiretamente por outros autores da Antiguidade, como, por sinal, esse poema de que estamos tratando, preservado na íntegra por Longino); e confunde-se o tempo todo o chamado "eu lírico", como eu já disse, com a Poeta, deduzindo-se, a partir de seus poemas, sua vida amorosa.

***

Mas, continuemos: quase 28 séculos depois de Safo, no registro da contemporaneidade, temos, entre mil outros exemplos, na MPB, a canção Dor de Cotovelo, de Caetano Veloso:

O ciúme dói nos cotovelos
Na raiz dos cabelos
Gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
E o estômago vão / e sem fome.
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço
Acende uma luz branca em seu umbigo
Você ama o inimigo
E se torna inimigo do amor
O ciúme dói do leito à margem
Dói pra fora na paisagem
Arde ao sol do fim do dia
Corre pelas veias na ramagem
Atravessa a voz e a melodia

Da raiz dos cabelos à sola dos pés, da flor da pele ao pó do osso, de um cotovelo a outro, do cóccix até o pescoço12: coordenadas de uma geografia corporal, imagens da totalidade para se pensar um corpo humano totalmente atravessado por um sentimento. E o sinal do perigo está no centro (centro do corpo, centro exato do poema, o verso 8): "acende uma luz branca em seu umbigo". Dividido exatamente em duas partes, os 7 primeiros versos dizem da extensão totalizadora dos estragos que o ciúme provoca no ser humano, corporalmente considerado, tomando o corpo no seu eixo vertical (dos pés à cabeça, ou melhor, do cóccix ao pescoço), e no seu eixo horizontal (de um cotovelo a outro); na sua superfície (sola dos pés, raiz dos cabelos) e no seu interior (osso, estômago): o corpo está totalmente ocupado, totalmente atravessado pela emoção.

Mas uma observação que se impõe sobremaneira, no confronto entre essas produções poéticas, diz respeito ao 4º verso, "Faz os músculos ficarem moles", que surpreendentemente retoma os termos do fragmento 18 de Safo, "Eros... que põe quebrantos no corpo"; bem como os da Teogonia de Hesíodo (1928): "Eros... que amolece os membros". Como também se evidencia a instigante retomada da fisiologia erótica, intensamente corporal.

Depois do verso central, "acende uma luz branca em seu umbigo", a segunda parte da canção se divide em: primeiramente, dois versos que, semelhantemente ao que se passara com a canção de Lupicínio Rodrigues, esboçam uma introversão psicológica:

Você ama o inimigo
E se torna inimigo do amor

Caetano Veloso aí avança, em relação a Lupicínio, em complexidade e sutileza, naquilo que diz respeito a uma análise de sentimentos, que a antiga lírica grega não expressaria. Na sua formulação condensada, esses versos 9 e 10 talvez revelem mais sobre a natureza do ciúme do que sonha a nossa vã filosofia.

Mas na sequência, os versos finais da canção nos apresentam o ciúme se espraiando pela Natureza externa ao homem, literalmente: "dói pra fora na paisagem". E em detalhes: "dói do leito à margem / arde ao sol do fim do dia / corre pelas veias na ramagem". Estamos em pleno universo da analogia; e será inevitável que, com o filósofo Giambattista Vico, a gente não veja aí uma "transposição do corpo humano e das humanas paixões" (Vico, 1979, p. 48) sobre a realidade circundante, sobre a paisagem. A imagem de um rio em que o ciúme dói "do leito à margem", figura um total abarcar; a do "sol que arde ao fim do dia" metaforiza o ardor da paixão; e a das "veias na ramagem" mostra o sistema venoso do ser humano duplicado nas formações arbóreas e na estrutura das plantas. Aliás, é através dessa alusão ao sistema circulatório que o "coração" (nomeado literalmente nos textos de Safo e de Lupicínio) se faz presente nesta canção de Caetano Veloso. Em suma: o corpo humano aí comunga com uma dimensão cósmica, de que plantas, árvores, rios e astros participam.

E a ação mais reiterada do ciúme se desvenda pelo martelar dos verbos mais presentes: dói, dói, rói, dói... Mas ao final da canção, há ainda um outro universo que é atingido pelo ciúme: o universo da poesia, mais especificamente aquele que articula "voz" e "melodia", o mundo da canção: "Atravessa a voz e a melodia". Efetivamente, o Poeta e Eros são servidores de Afrodite.

E assim, finalizo essa tentativa de "interpretação problemática e aproximativa de Safo de Lesbos", retomando e reiterando o pensamento de Benedito Nunes, com que iniciei este texto: "No confronto da distância temporal que as une e separa, a lírica de Safo e a lírica moderna se aclaram mutuamente" (Nunes, 1991, p. 20).

 

Referências

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Fontes, J. B. (1991). Eros, tecelão de mitos: a poesia de Safo de Lesbos. São Paulo: Estação Liberdade.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
ADÉLIA BEZERRA DE MENESES
Rua Batatais, 523/161
01423-010 - São Paulo - SP
tel.: 11 3521-1776
E-mail: adeliabm@terra.com.br

Recebido: 03/09/2012
Aceito: 26/10/2012

 

 

* Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP e na UNICAMP. Publicou, entre outros, os livros: Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque (Ateliê – Prêmio Jabuti); Do Poder da Palavra. Ensaios de Literatura e Psicanálise (Duas Cidades); As Portas do Sonho (Ateliê); Cores de Rosa: ensaios sobre Guimarães Rosa (Ateliê).
1 Palestra proferida na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a convite de Jassanan Amoroso D. Pastore, coordenadora da Revista Ciência&Cultura, Temática Psicanálise e Linguagem Mítica – publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) –, por ocasião de seu lançamento no dia 31.04.2012.
2 Esse ser "completo" podia ser formado ou de duas metades de sexos diferentes, ou de duas metades do mesmo sexo.
3 As traduções de todos os fragmentos de Safo que cito são de Joaquim Brasil Fontes (2003), Safo de Lesbos. Poemas e Fragmentos. A tradução do poema analisado, Parece-me igual aos deuses [Phainetai moi] encontra-se no livro anterior do mesmo tradutor, Eros, tecelão de mitos.
4 Os poemas de Safo têm tido seu corpus ampliado por conta de novos achados arqueológicos, sobretudo dos papiros recentemente descobertos no Egito. No caso deste poema famoso, Phainetai moi, ele foi preservado praticamente na íntegra por ser citado no tratado Do Sublime de Longino. A tradução de Giuliana Ragusa (2005, p. 440) apresenta uma complementação para o último verso, a saber: "Mas tudo é suportável, já que [mesmo um pobre]" – que no entanto não altera a interpretação aqui empreendida.
5 Aqui cabe uma observação, porque este é um item que se presta a equívocos sem conta: o "eu lírico" é diferente de "Autor" enquanto pessoa. Como diz Giuliana Ragusa: "muito embora predomine uma intensa atmosfera erótica na lírica de Safo – de forte presença feminina – trata-se de literatura, não de biografia" (Ragusa, 2005, p. 73).
6 Hino Homérico a Afrodite, v. 17; v. 65, p. 157.
7 Dissertações 18 e 19.
8 Diz Safo num dos versos do Poema 1, referindo-se a Afrodite: "Quem, de novo, a Persuasiva deve convencer para o teu amor?" (Fontes, 2003, p.19).
9 Na tradução de Jaa Torrano (1986): "solta-membros". Em todo o caso, o termo grego lysimeles`, como observa Joaquim Brasil Fontes (1991, p. 169) é um epíteto tradicionalmente atribuído a Eros.
10 Para a análise do poema Parece-me igual aos deuses de Safo (e sua ressonância em demais passagens da literatura grega), ver Meneses (2002, pp. 40-62).
11 Uma vez que a melodia é também produtora de significados, eu gostaria de apelar agora para a memória musical do leitor, que certamente terá na sua bagagem cultural de brasileiro os acordes dessa interessantíssima canção da MPB, bem como da que se seguirá, de Caetano Veloso.
12 "Do cóccix até o pescoço": essa expressão, pela sua contundência e expressividade, tornou-se o nome de um show de Elza Soares, no Rio de Janeiro.