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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013

 

RESENHAS

 

Wild Thoughts Searching for a thinker: a clinical application of W. R. Bion’s Theories

 

 

Iliana Horta Warchavchik*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

López-Corvo, R. E. Wild Thoughts Searching for a thinker. A Clinical Application of W.R. Bion's Theories. Londres: Karnac Books Ltd, 2006. 229 p.

 

Rafael E. López-Corvo, analista venezuelano radicado no Canadá, se apropria de uma maneira criativa e original das concepções de Bion. Em Wild Thoughts Searching for a thinker, essas concepções são apresentadas de forma acessível ao leitor, com ilustrações clínicas, de forma que podemos acompanhar seu pensamento em ação. Representa uma valiosa sequência ao Dictionary of Bion's Work, e abrange a totalidade da complexa obra de Bion.

López-Corvo se propôs o desafio de explorar a continuidade clínica entre a psicanálise clássica e a nova episteme introduzida por Bion, pensando as conclusões das escolas como diferentes perspectivas para abordar a mesma verdade. A verdade estaria, afinal, disponível para qualquer mente que desejasse acessá-la. Além dos clássicos Freud, Klein e Winnicott, as concepções de Bion são analisadas à luz de contribuições de Lacan, Green, Laplanche, Rosenfeld, Meltzer, Racker, Reik, Matte Blanco e Grotstein, entre outros. López-Corvo amplia o alcance de sua reflexão explorando poemas, mitos, rituais antigos e contribuições de filósofos como Heráclito, Descartes, Kant, Nietzsche, Suzuki e Alan Watts.

Um importante eixo do livro gira em torno do "temor à verdade". Propondo mecanismos que nos protegem da violência implícita na verdade, López-Corvo compara duas condições humanas muito presentes mas pouco exploradas, que revelam a poderosa presença da natureza: a existência do hímen na mulher, e nossa incapacidade para compreender a linguagem do inconsciente.

A "cultura da dor" associada à virgindade e à penetração sexual, induz a menina a adiar a relação sexual, até ter condições para lidar com a "violência" sem precedentes produzida pela maternidade, e garante ao bebê, ao mesmo tempo, uma mãe melhor preparada. Na sua reflexão sobre a condição universal de analfabetismo em relação às mensagens do inconsciente, López-Corvo faz a ressalva de que o inconsciente é razoavelmente acessível na Investiinfância, perdendo sua clarividência com a socialização e o passar do tempo. Essa condição também nos protege da violência implícita na "verdade" continuamente revelada, sendo somente captada pelo consciente quando há o desejo e condições para lidar com as revelações. Não compreendemos a linguagem complexa e enigmática dos sonhos; precisamos de um tradutor, que pode ser um psicanalista, para ajudar a decifrar seus significados crípticos.

López-Corvo prossegue analisando algumas "confusões mentais" que interferem e destroem a possibilidade de pensar racionalmente, atrasando o desenvolvimento e obstruindo a capacidade de distinguir entre fantasia e realidade. Ele analisa a confusão entre objetos animados e inanimados, entre mente e cérebro (ou psicanálise e medicina), e entre a dimensão diacrônica e sincrônica na psicanálise.

Nesta, talvez por seus constructos abstratos, a sincronia subjuga a diacronia, e "diferentes modelos" são considerados únicos, negando o peso da diacronia progressiva. As diferentes contribuições são tratadas como contemporâneas, acarretando uma dificuldade de integrar as descobertas numa ordem histórica. A isso se soma outra complicação, gerada pela necessidade de defender um modelo em detrimento de outro, como se uma espécie de confusão de identidade narcísica estivesse em jogo.

O modelo "continente-contido" é proposto para compreender as diferentes interações no vínculo entre observador e objeto de observação, ou entre o psicanalista e a mente. No vínculo comensal, tanto continente quanto contido se beneficiam. O analista, ao fazer uma interpretação intuitiva, se beneficia porque se percebe como um pensador criativo, beneficia o paciente com sua contribuição, e contribui para a psicanálise como instrumento de investigação. Nesse caso, há uma certa independência entre o analista que pensa e o objeto de investigação, há um terceiro em jogo. No vínculo simbiótico, um elemento, continente ou contido, destrói o outro. O observador, dependendo da sua paixão, perde a neutralidade e fica contido por uma ideia, tornando-se um crente, como no fanatismo religioso ou na guerra. No vínculo parasitário, tanto o contido quanto o continente se destroem. Nas situações onde o temor à verdade é muito intenso, a consciência se fecha às revelações do inconsciente, e a medicação acaba sendo o único tratamento possível numa neurose.

"Truth is to the mind what food is to the body", afirma Bion. Com o sistema digestivo como modelo para pensar os mecanismos da mente, López-Corvo resume três caminhos para os "fatos da realidade":

– podem ser digeridos pela função-alfa e transformados em crescimento mental;
– podem se estocar (como gordura) na memória como pensamentos indigestos ou elementos beta, ou como pensamentos selvagens à espera de uma mente para digeri-los;
– são expelidos através dos emunctórios mentais (órgãos de sentidos) pelo uso de sonhos, mitos, alucinações, ou identificação projetiva.

As duas últimas alternativas resultam da falta de função-alfa, que tornaria possível a contenção da ameaçadora violência da verdade.

Na sequência, fatores que obstaculizam o crescimento e resultam no assassínio da mente são discutidos: a parte psicótica que contém a não psicótica, o ódio à realidade, a identificação com o inanimado, mecanismos de autoinveja (ou inveja da consciência em relação ao ego sonhante), o terror sem nome e, principalmente, o uso de splitting e projeção da mente e do corpo, como defesa contra eventos traumáticos.

De forma criativa, López-Corvo descreve a fenomenologia do "objeto interno traumático", como um segredo esquizoide, resultante de experiências pré-verbais inacessíveis ao paciente mas encontradas em sentimentos e sensações, no material que estrutura os sonhos, a transferência e a contratransferência, e nas somatizações e passagens ao ato. Esse paciente que sofre de ansiedade, sintomas fóbicos, inibições e depressão, abriga dentro de si um objeto interno surdo/mudo. O trabalho analítico simplesmente desaparece entre as sessões. O objeto interno surdo/mudo representa um objeto pré-simbólico que não pode ser nomeado, porque evoca a experiência traumática. Sem simbolização, a experiência traumática penetra a cesura do tempo entre a dimensão primitiva pré-conceitual e a dimensão verbal presente, representando um anacronismo. O desafio é como fazer o caminho inverso – penetrar pelo lado verbal na direção do pré-conceitual, para nomear e conter essas experiências ao invés de ser contido por elas.

Citando Freud, "Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos faz acreditar", em Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926), López-Corvo analisa a expansão que Bion faz do conceito de cesura, ao incluir a presença de um limiar que une e separa diferentes dimensões, como o dia e a noite. Investiguem a cesura, não o analista nem o analisando, nem a sanidade ou insanidade, mas o elo, a (contra/trans)ferência, o movimento.

Para o autor, o inconsciente está sempre presente, mesmo quando estamos completamente acordados, de forma análoga às estrelas que durante o dia ficam invisíveis mas estão sempre presentes.

No capítulo "O Inconsciente", ele nos remete a uma nota da Elaboração Secundária (1925) em que Freud afirma que o sonho representa "uma particular forma de pensamento". Propõe que podemos inferir a partir dessa afirmação que, para Freud, o inconsciente, além de um "reservatório de desejos insatisfeitos", é um órgão capaz de pensar e se comunicar.

Em seguida, uma indagação: "Interpretar ou traduzir o inconsciente?" A partir do termo deutung, usado inicialmente por Freud, o autor discute para onde as interpretações do analista devem se dirigir, e as mudanças introduzidas pelo vértice kleiniano.

Para López-Corvo, a fenomenologia de um aparelho para pensar, introduzida por Bion em 1962, contribuiu para a compreensão das defesas psicóticas e da finalidade da interpretação. Quando o aparelho psíquico está cindido e projetado no mundo exterior, o paciente precisa tomar a mente do analista "emprestada", até poder lidar com seu medo da realidade e se dar conta dessa projeção.

Diferentes aspectos a respeito da interpretação são considerados, incluindo o silêncio. A interpretação é pensada em três dimensões, extratransferencial, a transferencial e a intrapsíquica, e López-Corvo enfatiza a interação dinâmica dos objetos internos parciais dentro do self e o trabalho intrapsíquico.

O capítulo "As três faces do pré-consciente" descreve as interações entre consciente e inconsciente, e a função do pré-consciente como receptor. Sua relação com o inconsciente é contraditória, já repudia as mensagens indesejadas mas as denuncia através de lapsos, sonhos ou pesadelos. Pode também facilitar a decodificação do texto dessas mensagens, possibilitando um contato com o 'O' de Bion, reconstruindo então o passado. López-Corvo explicita, nesse capítulo, conceitos como "tela beta" e "barreira de contato", e descreve com muita vivacidade as três faces do consciente: o funcionamento psicótico, o funcionamento borderline e neurótico, e a visão binocular e barreira de contato.

Os últimos capítulos tratam de 'O', da contratransferência, do uso da grade, e dos sonhos, como pensamentos desgarrados em busca de um pensador. O autor retoma a afirmação de Bion, em Atenção e Interpretação (1970), de que qualquer que seja a situação analítica, 'O' está continuamente presente como possibilidade, tanto para o analista como para o paciente. Bion conclui que se não for comum aos dois não estando disponível para transformação, deve ser ignorado como irrelevante; não há condições no momento para investigação. López-Corvo conclui com a recomendação de uma escuta aberta à dimensão da intuição, não muito bem compreendida pelos pensadores ocidentais mas semelhante ao que os mestres Zen advogam na prática zazen.

Esse livro instigante lança uma perspectiva interessante e original para a compreensão das concepções de Bion. Mereceria uma cuidadosa tradução para o português para que a contribuição desse autor latino-americano, pouco difundido entre nós, seja conhecida. Ao fazer uma análise dinâmica e abrangente da teoria de observação bioniana, em diálogo com outras escolas psicanalíticas e áreas do saber, ele representa, a meu ver, uma expansão para o pensar.

 

 

Endereço para correspondência
ILIANA HORTA WARCHAVCHIK
Rua João Lourenço, 683/122
04508-031 – São Paulo – SP
tel.: 11 3846-8827
E-mail: ilianaw@uol.com.br

Recebido em: 15/10/2012
Aceito em: 26/10/2012

 

 

* Psicanalista, Membro Associado da SBPSP.