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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

CARTA-CONVITE

 

 

Caros colegas e colaboradores

Completando mais uma etapa de preparação da ide, desta vez para o número 56, escolhemos o tema Fé e Razão – tema que toca na relação entre dois universos, que ora se opõem, ora se complementam.

O tema da religião e da religiosidade acompanha Freud em vários momentos de sua obra. Em Totem e tabu (1912), nos mostra como o homem atribui características humanas às forças da natureza, fazendo delas deuses, segundo um modelo infantil e filogenético. Em 1927, com O futuro de uma ilusão, Freud se debruça sobre o sentido psicológico profundo da religião, atendo-se às religiões da tradição judaico-cristã ocidental. A leitura hoje desse texto fundamental nos coloca diante de uma concepção extremamente complexa, sutil e atual das relações entre Ciência e Religião, assim como entre Psicanálise e Religião. Nessa obra, Freud fala do "tesouro de representações" criado pelas tradições religiosas. Esse tesouro psíquico nasceria da necessidade de "tornar suportável o desamparo humano, [representações que são] edificadas a partir das lembranças do desamparo da própria infância e do gênero humano" (Freud, 1927/1994, p. 159). No final de sua vida, o criador da Psicanálise deixa como legado seu magnífico texto sobre a questão do monoteísmo – O homem Moisés e a religião monoteísta (1939). Com o desenvolvimento da noção de um núcleo paterno que estaria por detrás de toda concepção de Deus, Freud aprimora sua reflexão.

Gostaríamos de propor algumas questões para estimular nossos autores a trazerem sua colaboração, tendo em vista a atualidade desse tema.

Fé e razão albergam em si as relações entre a religião/religiosidade/espiritualidade e ciência/saber/conhecimento.

Como podemos pensar atualmente a questão, considerando a decadência das religiões ao lado da proliferação dos fanatismos religiosos com suas guerras santas? Hoje a globalização, a economia capitalista de mercado, o excesso de consumo, a tecnologia, o anonimato urbano e o desenraizamento generalizado com o declínio das autoridades públicas e religiosas deixam os indivíduos confusos, sem os referenciais estáveis que lhes permitiam encontrar respostas para suas questões. Como reinventar então novas inscrições dotadas de valor humano? Como dar valor à experiência espiritual dos indivíduos, sem cair nas interdições do pensar praticadas pelas diferentes instituições religiosas? É possível a construção de uma cosmogonia atual que leve em conta todas as últimas descobertas da ciência?

Em seu texto de 1927, Freud coloca a atitude científica diante do mundo como a única possibilidade de encararmos nosso desamparo. Em uma carta para Marie Bonaparte ele deixa clara sua visão crítica do trabalho dos homens de ciência: "Os espíritos medíocres exigem da ciência um tipo de certeza que ela não pode dar, uma espécie de satisfação religiosa" (Souza, 1998, p. 55).

A apreensão de Freud se atualiza se considerarmos a dimensão religiosa que a Ciência e a Tecnologia vêm tomando nas últimas décadas em nossa civilização. Num artigo, intitulado "Fé e Razão", um importante crítico literário britânico, Terry Eagleton, faz uma análise aprofundada da relação entre ciência e fé por meio de uma leitura crítica de dois autores neoateístas muito em voga atualmente: Richard Dawkins (zoólogo evolucionista radicado nos EUA e autor de Deus: um delírio) e Christofer Hitchens (jornalista e polemista inglês, com coluna quinzenal na revista Época). O crítico britânico mostra a relação complexa entre conhecimento e crença. "Uma crença, por exemplo, pode ser racional", diz Eagleton (2010, p. 109). Ele cita Slavoj Žižek (In defense of lost cause), que defende a ideia de que os fundamentalismos confundem fé e conhecimento.

O fundamentalista é como aquele neurótico que não consegue acreditar que é amado, mas com espírito pueril pede alguma prova irrefutável do fato. Ele não é de fato um crente. Os fundamentalistas não têm fé. Eles são, na verdade, a imagem especular dos céticos. Num mundo de extrema incerteza, somente verdades incontroversas absolutamente seguras promulgadas pelo próprio Deus podem ser confiáveis. (Eagleton, 2010, p. 110)

A ideia de fé atrai a reflexão dos psicanalistas por articular a noção de um compromisso amoroso antes de uma descrição de como as coisas são e funcionam. Para Kierkegaard, um crente é alguém apaixonado. Seria preciso acreditar para compreender, como afirma santo Anselmo? Podemos afirmar que todo o raciocínio é conduzido por alguma espécie de fé? Para a ortodoxia cristã, como mostra Eagleton, a fé é o que torna possível o verdadeiro conhecimento. O crítico inglês aproxima essa ideia da noção de Lênin, segundo a qual "a teoria revolucionária só pode se tornar completa se tiver como base um movimento revolucionário de massa" (Eagleton, 2010, p. 115). Dessa maneira, "o conhecimento é colhido mediante o engajamento ativo, e o engajamento ativo implica fé" (Eagleton, 2010, p. 115).

Por fim, para trazermos ao campo da clínica e da teoria psicanalíticas, lembramos que a entrada na transferência se estabelece num ato de fé: é somente por ter fé no analista que corremos o risco de nos revelarmos plenamente a ele. O conhecimento que uma análise pode proporcionar ao analisando e ao analista se relaciona com o amor e a fé no analista e na análise. Concluímos nossa carta com a citação de Shakespeare (Medida por medida, ato 3, cena 2) citada por Eagleton, que fala dessa correlação: "O amor conversa com melhor conhecimento, e o conhecimento, com amor mais querido" (Eagleton, 2010, p. 116).

Caros colegas, esperamos que esta carta os estimule a nos enviar seus artigos!

 

 

José Martins Canelas Neto
Editor

 

Referências

Eagleton, T. (março de 2010). Fé e razão. In Serrote, 4, 106-128.         [ Links ]

Freud, S. (1994). L'avenir d'une illusion. In S. Freud. Oeuvres complètes (vol. XVIII, pp. 141-197). Paris: P.U.F.. (Trabalho original publicado em 1927).         [ Links ]

Souza, P. C. (1998). As Palavras de Freud. São Paulo: Editora Ática.         [ Links ]