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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

EM PAUTA - FÉ E RAZÃO

 

Avatares da ressurreição dos mortos1

 

Metamorphosis of the resurrection of deaths

 

 

Patrick Merot*

Associação Psicanalítica da França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo sublinha a singularidade da invenção da crença na ressurreição dos mortos: esta é aqui examinada sob o ângulo das concepções freudianas do objeto perdido e do luto. A história dessa invenção é retomada desde sua emergência nos primeiros textos bíblicos, seguida de seu florecimento particular com as assombrações, na Idade Média, até seu desenrolar no período moderno e suas manifestações na clínica.

Palavras-chave: Ressurreição dos mortos, Espíritos, Assassinato, Luto, Incorporação, Idade Média, Bíblia.


ABSTRACT

This paper underlines the singularity of the invention of the belief in the resurrection of deaths: this one is examined here taking into consideration Freudian design of the lost object and mourning. The history of this invention is taken again since its emergence in the first biblical texts, its particular efflorescence, with the ghosts, during the Middle Age, until his becoming with the modern period and its expressions in the clinic.

Keywords: Resurrection of deaths, Spirits, Murder, Mourning, Incorporation, Middle-age, Bible.


 

 

A ressurreição dos mortos é a mais estranha invenção humana. Está presente em muitas religiões, e, particularmente, na religião cristã como ressurreição da carne.

A fantasia, o sonho, a alucinação podem produzir cenários em que será encenada, de maneira mais ou menos confusa, uma ideia dessa ordem. A psicanálise explica o mecanismo que constitui a fonte de tal crença pelo desejo de imortalidade e a recusa da morte do ser amado. No entanto, descrever o movimento que conduz ao surgimento dessa crença como expectativa, como abertura do homem, deixa intacta a questão da forma singular pela qual o desejo de superar a morte vai realizar-se e daquilo que é o agente desta causa: espírito, alma, sopro, princípio vital, carne, corpo glorioso...

O discurso religioso se apossa dos eventos psíquicos para introduzi-los em sua própria lógica. É na dialética entre o individual e o social que se constroem e se confirmam as crenças. Para compreender a forma peculiar que a ressurreição dos corpos tomou no imaginário cristão, é preciso seguir um duplo movimento. De um lado, do lado da história religiosa, determina-se de que modo, a partir de influências múltiplas e de uma lenta elaboração interna, formou-se um conjunto de crenças até chegar à afirmação definitiva de um dogma. De outro lado, identifica-se o quanto a ancoragem do dogma no corpo social depende da ressonância que ele pode manter com uma dimensão de fantasia.

Ao mesmo tempo em que o inconsciente se apropriou do discurso sobre a ressurreição para construir, como com um resto diurno, uma fantasia, um sonho ou um mito, a difusão do dogma como crença popular passou pela exploração, na Igreja, dos fenômenos psíquicos individuais e coletivos e pela amplificação deles através da narrativa. Um momento exemplar dessa dialética entre a fantasia e o mito encontra-se na Idade Média, com o uso dos sonhos sobre os mortos e a manipulação das crenças nos espectros.

Nossa época, por mais científica que seja, não aniquilou essas ilusões: os terrores ancestrais metamorfoseiam-se para sobreviver sob novas figuras.

 

Imaginar os espíritos

A crença inconsciente do homem na sua própria imortalidade, bem como a recusa da morte dos seres amados, são os termos freudianos de uma teoria da invenção da vida após a morte.

Sabe-se que Freud retomou várias vezes essa questão. Durante a grande matança da guerra de 1914-1918, ele escreveu algumas reflexões sobre a relação do homem com a morte, as quais vieram completar os desenvolvimentos sobre o animismo em Totem e tabu. Diante de seus olhos, Freud via então o trabalho de descivilização da guerra agir sobre os indivíduos. Sua desilusão, com a qual ele fez o título de um breve texto, está na descoberta da reversibilidade do trabalho da civilização. A remodelagem pulsional sobre a qual repousa nossa aptidão à cultura pode também ser desfeita pelas ações exercidas pela vida (Freud, 1915/1988a, p. 140).

Freud podia então observar o homem ocidental retornando ao estado de homem originário – era assim que ele designava o homem anterior à civilização –, que não conhece mais as regras que o próprio homem primitivo ainda respeita. Enquanto

o selvagem não é absolutamente um assassino que ignora o arrependimento; quando volta vencedor do caminho da guerra, ele não tem o direito de penetrar em sua aldeia, nem de tocar em sua mulher antes de ter expiado, [...] o guerreiro moderno, ao contrário, não hesita, depois do massacre, a apresentar-se sem remorso, "combatente vitorioso que volta feliz para o lar [...]". (Freud, 1915/1988a, p. 150)

Exaltando assim a conduta do selvagem, Freud não esquece que ela está ligada ao medo dos espíritos, mas faz questão de assinalar o quanto essa crença é uma construção cultural – "uma delicadeza ética" – que resiste melhor aos efeitos destrutivos da guerra do que os formidáveis sistemas religiosos e morais da civilização moderna.

O assassinato é a saída imediata para os sentimentos hostis que o homem originário tem pelo inimigo. Freud recusa vigorosamente a ideia de que o homem originário possa sentir outra coisa além de um afeto de satisfação diante do cadáver do adversário abatido: não se trataria absolutamente do esboço de uma reflexão sobre o seu próprio destino de mortal. O pensamento, de fato, só pode surgir de algum conflito interno; não pode nascer de uma experiência de satisfação. Precisamos lembrar aqui que, na teoria freudiana, o pensamento tem o status de um ato em relação à circulação da energia na psique. A satisfação da pulsão permite, de certa maneira, uma evacuação sem restos, enquanto o obstáculo à satisfação provoca uma estase energética que conduz necessariamente a um ato: ato motor às vezes, mas também ato de pensamento. Deste ponto de vista, e para manter o caráter incisivo da teoria de Freud, é preciso definir o pensamento como um assassinato suspenso.

A experiência da morte de uma pessoa amada é totalmente outra. É marcada pela complexidade por ser da ordem de uma ambivalência essencial que permite o nascimento do pensamento: foi "o conflito de sentimento, diante da morte de pessoas amadas, ao mesmo tempo estranhas e odiadas, que desencadeou a busca entre os homens" (Freud, 1915/1988a, p. 183). Não deixa de nos espantar o fato de que Freud não situa a eficácia do movimento psíquico que se efetua nesse momento do lado do luto, da perda objetal ou da hemorragia narcísica, mas do lado de um conflito interno ligado a um momento de prazer-desprazer. Assim, nessa experiência originária da relação com o outro, o que vem simetricamente ao prazer do assassinato daquele que é odiado não é o sofrimento ligado à morte do ser amado, mas o prazer-desprazer que tal morte suscita. De fato, se a experiência do amor é desde muito cedo misturada com a do ódio não é por causa de uma inversão na qual bastaria mudar o signo de uma para encontrar a outra. O "prazer no assassinato" é primeiro, o amor é uma experiência segunda (Freud, 1915/1988a, p. 147). Esta é uma ideia que Freud desenvolve em Pulsões e suas vicissitudes, escrito nesse mesmo ano de 1915: assinalando a primazia do ódio sobre o amor, ele enuncia ali a diferença de natureza entre os dois. Se o amor pertence à

esfera da pura relação de prazer do eu com o objeto e fixa-se finalmente nos objetos sexuais, os verdadeiros protótipos da relação de ódio, ao contrário, não são oriundos da vida sexual, mas da luta do eu pela sua conservação e pela sua afirmação. (Freud, 1915/1988b, p.182)

Assim, quando o objeto amado desaparece, geram-se o reforço da ambivalência essencial da relação com o outro e, ao mesmo tempo, o ódio contra um objeto que se tornou fonte de desprazer: "O eu odeia, execra, persegue, com intenções destrutivas, todos os objetos que se tornam para ele sensações de desprazer" (Freud, 1915/1988b, p. 183).

É desse conflito interno entre prazer-desprazer, que é também conflito entre pulsão sexual e pulsão de autoconservação, que vai surgir uma invenção psíquica que será a resolução imaginária de tal conflito.

Em torno da perda do objeto amado produz-se um evento psíquico que tenta tirar o sujeito do insuportável, donde a invenção do além. O que é então gerado como pensamento produz o efeito da resolução da tensão interna. A hipótese freudiana descreve perfeitamente o movimento que se efetua. Mas, paralelamente ao movimento, o que pode ser dito do próprio conteúdo que o pensamento adota sobre os mortos? Se, por um lado, o pensamento é eminentemente singular e ao mesmo tempo necessariamente comum – a experiência da perda de um ser amado é universal –, as palavras e as representações que vêm responder ao conflito psíquico provocado por essa morte são, por outro lado, infinitas. É aí que surgem, nos diz Freud, os espíritos: "Perto do cadáver da pessoa amada, [o homem] imaginou os espíritos, e sua consciência de culpa, relativa à satisfação que se misturou ao luto, fez com que os espíritos, uma vez criados, se tornassem maus demônios [...]" (Freud, 1915/1988a, p. 148). Começa então toda uma parte da história das religiões.

O mecanismo não vale somente para o homem imaginário – que, na teoria freudiana, é estritamente homólogo ao inconsciente do homem civilizado –, vale também para o homem contemporâneo. Sabe-se o quanto, na provação da morte – de um ser próximo, de uma criança – ou na experiência da doença, o movimento descrito é exatamente aquele que pode afetar qualquer ser humano. Na intimidade das famílias, são comuns os depoimentos que dizem observar manifestações de religiosidade sumária da parte de alguém que se declarava ateu convicto ou, ainda mais seguidamente, o retorno à fé da infância por parte de outro que dela se desinteressara completamente. A morte continua sendo, para o homem, o escândalo irredutível, e a religião se alimenta disso. Numa época em que o enquadramento religioso da sociedade perdeu o rigor que ainda possuía há não muito tempo, assistimos à proliferação de formas religiosas que nada mais são que a aplicação, em discursos reinventados, do momento de pensamento descrito por Freud.

 

O Luto e suas doenças

Os mecanismos assim descritos permitem que o homem supere a provação da perda. No entanto, esses mecanismos, às vezes, fracassam em sua finalidade. O confronto com a morte cai então numa outra dimensão.

A mais frequente dessas formas psicopatológicas é provavelmente a doença do luto. Notável entidade clínica, tão identificável em suas múltiplas ocorrências. Mas convém ressaltar que a doença do luto não é a recusa pelo sujeito do acontecimento que a morte do ser amado representou para ele. É, ao contrário, uma posição que mantém num tipo de paroxismo interminável a constatação irrecusável da morte do outro: a doença do luto é a recusa de realizar o trabalho de luto. Ela mantém intacta a dor provocada pela descoberta da morte do outro. Mas que mistério é essa inconsolável perda! O trabalho psicanalítico encontra ali uma rocha, e a extraordinária resistência dessa organização defensiva desencoraja todas as empreitadas. A culpa, na maioria das vezes, é totalmente mascarada: não há nada melancólico, ao que parece, na posição adotada pelo sujeito, no entanto, ele é tão fortemente dominado pelo objeto que se faz necessário reconhecer que uma dimensão narcísica está em jogo. Trabalhar para o reconhecimento da perda, para a separação do objeto, talvez seja expor o sujeito a se ver tragado por isso: se ele viesse a largar, por fim, o objeto morto que carrega nos braços, provavelmente perderia o equilíbrio e seria arrastado com esse objeto para o abismo.

A recusa da morte, que é recusa do acontecimento em si, leva a figuras psicopatológicas diferentes. Em sua forma principal, será a alucinação.

Dez dias após a morte de seu pai, um médico foi chamado [...] quando voltei, vários dias depois, achei que o estado de minha paciente havia se agravado [...]. Suas ausências alucinatórias eram cheias de figuras aterrorizantes, de caveiras e esqueletos [...]. Certa vez, inclusive, o tratamento foi interrompido por um período porque uma determinada lembrança não conseguia ressurgir: tratava-se de uma alucinação que aterrorizava a paciente: ela vira o pai, de quem cuidava, como uma caveira. (Freud & Breuer, 1895/1973, pp. 27-29)

Trata-se de Anna O., que inaugura, com o encontro do fantasma de um pai, a história da psicanálise. A aparição apresenta todos os traços ameaçadores dos maus demônios referidos por Freud acerca dos espíritos. Realizando o retorno do morto, a alucinação consegue anular, de certa maneira, a morte do outro.

A aparição pode tomar uma forma menos fantástica. Em outra observação clínica, uma mulher conta uma época de sua vida em que foi confrontada com falecimentos sucessivos na família. Depois de hesitar por um momento, ela acrescenta:

– Um ano após a sua morte, e quando minha tia estava doente, minha avó apareceu. Ela chamou minha tia. Disse-lhe para não ir [...]. Eu estava no quarto. E via as duas.

– No dia seguinte, minha tia acordou do estado de coma. Viveu ainda um ano.

A lembrança é muito precisa e claramente distinta de um sonho. O instante foi vivido com o sentimento intenso de uma presença. Para essa mulher, a experiência não foi totalmente isolada. Um ano antes da cena evocada, ela havia vivenciado algo semelhante: "– Quando minha avó faleceu – continua ela –, no dia seguinte, eu estava no quarto ao lado e a ouvi levantar-se e apoiar-se no aquecedor. Ela fazia seguidamente esse gesto no fim de sua vida".

Esse testemunho remete àquilo que Nicolas Abraham e Maria Torok (1972) descreveram acerca da metapsicologia da perda, como recusa de incorporação. O destino do objeto perdido é a incorporação, operação instantânea da ordem de uma realização alucinatória quando o objeto é narcisicamente indispensável e a natureza do vínculo com ele, inconfessável. Mas "em qualquer outro caso, a incorporação não teria sua razão de ser" (Abraham & Torok, 1972, p. 115). São situações em que a recusa do luto ou a negação da perda não levam à incorporação, mas a uma alucinação. O morto permanece presente, ou prosseguindo sua vida anterior num companheirismo imutável, espetacular para quem pode testemunhá-lo, ou vindo assombrar as noites por uma presença misteriosa e inquietante.

Paralelamente a essas formas psicopatológicas maiores, a presença dos mortos no mundo pode se dar através da experiência discreta de uma presença, através da dominação perturbadora de uma lembrança. Assim, Henri Michaux escreve no posfácio de Plume:

Senti mais de uma vez em mim "passagens" de meu pai. Eu logo me curvava. Vivi contra o meu pai (contra a minha mãe, o meu avô, a minha avó e os meus bisavós); e por não ter conhecido antepassados mais distantes, não pude lutar contra eles.

Fazendo isso, que antepassado desconhecido eu deixei viver em mim?

[...] Eu variava constantemente, eu os fazia correr, ou então eles, a mim. Alguns apenas tinham tempo de piscar, e depois desapareciam. Um aparecia somente em determinado clima, em determinado lugar, nunca em outro, em determinada posição. (Michaux, 1963, p. 215)

 

A invenção da vida eterna

Dentre todas as respostas possíveis ao desamparo dos que sobrevivem, a ressurreição dos mortos, em seu enunciado canônico, é aquela cuja radicalidade garante a eficácia: a sobrevivência anunciada realiza uma completa compensação da perda; a morte é apenas uma separação transitória; o além será para todo mundo o lugar de reencontros definitivos. Assim, como se observa clinicamente, a crença na sobrevivência após a morte às vezes facilita, de forma espetacular, o trabalho de luto. Ela preserva também da doença do luto, que se manifesta, ao contrário, quando a ideia de reencontros com o objeto é inalcançável: a doença do luto é luto da sobrevivência após a morte. Para o sujeito, diante de sua própria morte, a promessa da felicidade da vida eterna vem refletir a fantasia originária de retorno ao seio materno2. A ressurreição dos mortos remete ao fundamento materno da religião, antes de referir-se ao seu núcleo paterno. As imagens que surgem para evocá-la, poderíamos dizer, são repletas de metáforas maternas: a morte, pela ressurreição, torna-se um renascimento ou um segundo nascimento; a morte é uma passagem para a luz; o paraíso, lugar de morada feliz, é evocado como um continente, espaço harmonioso em que o alimento e a água são abundantes, lugar último, que é também retorno à origem para uma felicidade inefável e eterna na contemplação da divindade.

As asserções religiosas sobre a vida eterna que apresentamos são provavelmente esquemáticas, e os teólogos podem oferecer versões mais sofisticadas; são as primeiras, no entanto, que alimentam os discursos comuns e o imaginário coletivo. A vida no além talvez seja o terreno das crenças em que se desenvolvem as mais fantásticas invenções da imaginação. Mas formulações tão radicais e tão articuladas quanto as da religião cristã não podem ser compreendidas se não forem reinseridas em sua história. Se, por um lado, o fato de o homem ignorar a sua própria morte e recusar a morte dos seres amados são dados compartilhados pela experiência humana, por outro lado, a tradução num enunciado teológico singular daquilo que, em seu surgimento, é uma intuição confusa, não pode se efetuar a não ser através de uma lenta construção na história humana.

A proclamação de uma vida após a morte formulou-se na Bíblia ao longo dos séculos. Forjou-se primeiramente a ideia da existência de um Deus, ideia essa capaz de responder à expectativa de um lugar no mundo para o homem entregue à derrelição. Porém, o homem, não contente de imaginar deuses que podiam explicar o curso das coisas e livrar sua frágil existência da ameaça de uma natureza não controlável, buscou junto às forças sobrenaturais aquilo que podia remediar sua condição de mortal. No entanto, supor a sua imortalidade representava uma etapa mais complexa do que a simples afirmação da existência da divindade, alimentada por imagens paternas ou maternas. Tal audácia de pensamento não era óbvia; originariamente, somente a divindade era dotada de imortalidade. Para que o homem pudesse atribuir-se tal esperança e determinar-se a encontrar um enunciado para ela, um profeta, certo dia, precisou imaginar que o Deus de Moisés fora tomado pela compaixão por sua própria criatura e lhe prometera compartilhar a vida eterna. Para chegar à adoção dessa crença, foi preciso uma legião de profetas e sacerdotes, uma sucessão de discursos inspirados, uma longa história de conversões e apostasias.

É necessário, de fato, contar com a reticência dos homens em mudar aquilo que lhes serve para construir sua verdade. Os grilhões do sistema de pensamento que se impõe a eles constituem-se de forma progressiva. Se, por um lado, "crer é crer no incrível" (Rosolato, 1978), por outro, as crenças não se impõem por si mesmas. Os homens podem escolher dentre uma infinidade de sistemas explicativos que as religiões oferecem. Cada um destes sistemas desenvolverá o seu poder de persuasão para convencer que ele é verdadeiro, e não o outro; muitos fracassam, alguns se tornam um dia Igrejas instituídas.

Por outro lado, se assinalamos aqui tudo o que pode contribuir para a construção das crenças no sobrenatural, não se deve desprezar a existência de uma resistência do pensamento a esses movimentos, resistência essa baseada na razão e a única capaz de livrar do domínio dos funcionamentos psíquicos arcaicos: trata-se de um ato de fé de um gênero diferente, que deve poder assumir a ilusão que ele também traz consigo.

A ideia de uma vida após a morte graças a uma ressurreição, tal qual uma primeira formulação encontrada na Bíblia (Dictionnaire Encyclopédique de la Bible, 1987), antes de se tornar central no cristianismo, tem provavelmente seu modelo originário nas religiões baseadas numa transposição dos ciclos da natureza. Ao mesmo tempo em que é confrontado com o desaparecimento irrevogável de seu semelhante, o homem experimenta, na natureza, uma forma de eternidade através do ciclo indefinidamente renovado dos astros ou da sucessão de morte e renascimento ritmada pelas estações. Na origem de tal corrente religiosa encontram-se as crenças das antigas religiões do Oriente (Histoire des religions, 1972): Tamuz, na Mesopotâmia, entre os assírio-babilônicos, que renasce três dias depois; Adônis, no mundo greco-sírio, que o culto proclama morto num dia e vivo no dia seguinte; Osíris, entre os egípcios, que veem nas cheias do Nilo os humores do cadáver do deus prometido à ressurreição, ao mesmo tempo que o anúncio do renascimento da primavera3. Todos esses são deuses cujos mitos contam a morte e a ressurreição, em grande proximidade com a experiência humana dos ciclos da natureza. A religião da antiga Pérsia, que também pode ter exercido uma influência sobre o deus bíblico, professava uma ressurreição geral: "O esqueleto de Gayarmatan, o primeiro homem, levanta-se primeiro, enquanto os outros mortos o seguem mais tarde" (Dictionnaire Encyclopédique de la Bible, 1987, p. 1107).

É mais fácil conceber a vida no além quando a eternidade não diz respeito aos corpos, mas a um princípio imaterial, sopro, espírito, alma para os gregos, "ba" e "ka" para os egípcios, "âtman" entre os hindus, ser entre os budistas... Falando do animismo, Freud interroga-se sobre o caráter de imaterialidade da alma, diretamente ligado à experiência da coisa ausente. A noção de alma imaterial não viria apoiar-se na experiência da representação psíquica? Existe alguma coisa do ser do objeto, enquanto este está ausente. É justamente porque podemos ter presente na mente uma coisa sem que ela esteja presente na realidade, que "poderíamos dizer que o 'espírito' de uma pessoa ou de uma coisa se reduz, em última análise, à sua aptidão para ser rememorada e representada quando subtraída da percepção" (Freud, 1912/1993, p. 216).

Não é de espantar que, para sustentar a esperança de uma ressurreição material dos corpos, a conservação indefinidamente perpetuada destes possa ser uma condição necessária. Com os egípcios, a sobrevivência só pode ser concebida se o cadáver se tornar imputrescível graças à mumificação, mas, sem isso, realiza-se o verdadeiro aniquilamento, que é a "segunda morte"4.

A influência que exerceram as religiões orientais sobre a Bíblia se depara, quanto à ressurreição, com o fato de que Javé é o Deus vivo por excelência e de que qualquer ideia de morte referida a ele é excluída: ele se distingue, assim, dos deuses das religiões da natureza. Explicita-se muito tardiamente a ideia de uma ressurreição individual e acessível a cada um, muito mais precisa do que as concepções anunciadas pelas religiões antigas e diferente da ideia que tem a nação de Israel da ressurreição, como anunciada nos textos mais antigos. Os exegetas identificam o momento decisivo em que acontece essa evolução. As perseguições de Antíoco (167-164 a.C.), fazendo surgir uma série de mártires, obrigam a conceber a retribuição das condutas humanas diferentemente da realidade terrestre imediata: a morte desses justos é incompreensível em relação às suas vidas. Os profetas (especialmente Daniel, 12, 2) inventam então uma nova esperança: a morte passa a ser apenas um longo sono do qual todos despertarão um dia para a vida eterna ou para o horror da danação. Para os eleitos, a vida após a morte passa a significar a beatitude eterna. Deus cumpre a tripla tarefa que os homens esperam dele: "Exorcizar os horrores da natureza, reconciliar com a crueldade do destino – principalmente, do modo como se mostra na morte – e recompensar pelos sofrimentos e pelas privações" (Freud, 1927/1994, p. 158).

Essa nova ressurreição, cuja ideia é recebida de maneira variável pelo povo judeu – os saduceus, principalmente, a rejeitam5, e os essênios lhe atribuem grande importância –, insere-se então na tradição dos textos sagrados. A crença permanecerá marginal na religião judaica, que se apegará mais à esperança da terra prometida, entendida em sua dimensão histórica6. Ela se tornará central, em contrapartida, com os Evangelhos, nos quais Cristo vem cumprir as Escrituras.

Vencer a morte é a prova mais convincente da divindade. Cristo o provará várias vezes através de seus milagres. Ele o fará principalmente com a ressurreição de Lázaro, seu amigo, à cabeceira do qual – paradoxalmente, quando se sabe o que seguirá – se sente desamparado e chora. O milagre do "levanta-te e anda" vem antecipar e anunciar a própria ressurreição de Cristo, pela qual ele se tornará o primeiro nascido dentre os mortos.

O espantoso em relação à crença na ressurreição foi mais a resistência que a ideia pôde encontrar. Toda a energia de são Paulo foi necessária para impor uma interpretação radical e fundadora da vitória sobre a morte. Sabe-se que, se os textos evangélicos reservam um lugar central à ressurreição de Cristo, eles são, por outro lado, muito sucintos em relação à consequência desse acontecimento para o futuro dos crentes no além. Num texto notável, Alain Badiou (1997), sem nada transigir quanto ao que ele chama de "fábula", destaca a extraordinária energia retórica que são Paulo soube desenvolver para que a ressurreição fosse reconhecida pela comunidade cristã primitiva em toda a sua dimensão de acontecimento que concernia a cada discípulo da nova fé. E foi nessa dimensão de acontecimento que Paulo se apoiou para dar toda a força à novidade dessa religião nascente: a invenção do universalismo.

Com a ressurreição dos corpos, devido à audácia do que é prometido, encontramo-nos no cerne daquilo que Borges evoca quando define a metafísica como "um ramo da literatura fantástica". No entanto, essa crença vai acabar por se integrar ao universo cultural do mundo cristão. Será uma longa história até ela encontrar as formas que dela conhecemos. A Igreja precisa explorar o encontro entre o movimento subjetivo dos crentes perante a morte e a forma radical dos enunciados das Escrituras. Diversos caminhos lhe serão abertos para isso.

 

Crer nos espectros

Aqueles que Freud denomina os "espíritos" e que se manifestam após a morte serão reconhecidos pela Igreja da Idade Média nas manifestações dos mortos como espectros nos sonhos e nas visões. De acordo com o imaginário comum da nossa época, aquela época foi um período fasto para os espectros. A explicação não pode limitar-se à invocação de um arcaísmo social qualquer e deve levar em conta a existência de questões de sociedade que contribuíram para lhes dar toda essa importância. Contrariamente aos estereótipos que certas imagens difundiram – primeiramente com o Romantismo, no século XIX, e com o cinema mais recentemente – os espectros nem sempre corriam pelos campos. A posição da Igreja não se consolidou de imediato, e, na alta Idade Média, as formas religiosas populares em torno da morte, tanto quanto podiam ser reconstituídas, estavam intricadas com restos das religiões antigas e davam espaço para a manifestação de todos os tipos de formas do duplo (Vovelle, 1993). Nos primeiros séculos, inclusive, as crenças nos espectros eram identificadas, de acordo com o ensinamento de santo Agostinho, como um sinal de paganismo e, por isso, combatidas. Posteriormente, a situação passou a ser diferente: depois de ter encarado com suspeição as crenças nos espectros, a Igreja as utilizou em seu benefício7. Do século XI ao século XIII, foi sistematicamente explorada uma aproximação entre fantasia e dogma para fins ideológicos.

Os espectros inserem-se numa história social cujas grandes articulações podem ser identificadas. Segundo um dado antropológico constante, é quando os rituais praticados em torno da morte não podem se desenrolar de maneira satisfatória para um membro que faleceu dentro do grupo, que este membro pode retornar para junto dos vivos. No mundo cristianizado da Idade Média, as aparições marcam a intervenção do defunto junto aos vivos para obter destes os rituais, as preces e os sacrifícios que faltam para a sua salvação. Jean-Claude Schmitt (1994) constatou que, na Idade Média, a crença nos espectros pode ter sido instrumentalizada pelos clérigos a fim de fortalecer as crenças e desenvolver estratégias políticas.

No seu inventário cronológico dos escritos religiosos sobre as aparições de espectros, Jean-Claude Schmitt mostra que foi primeiramente em narrativas de sonho que se desenvolveu a temática da visita dos mortos junto aos vivos. Trata-se então de relatos autobiográficos. O cristão da Idade Média encena primeiramente sua culpa perante um pai, uma irmã, um irmão que volta. Essa é a história emocionante de Giovanni Morelli, rico florentino, que conta, em seu diário, o sofrimento que sentiu quando da morte de seu filho de nove anos de idade. "Pai, não vês que eu estou queimando?" – eis o grito, numa simples transcrição, que a criança solta no sonho do pai adormecido. Mas, neste caso, é o fogo do inferno. Seu filho, pensava Giovanni, morrera por causa do pecado dele, o pai. E, ainda por cima, sem ter recebido os últimos sacramentos, devido à negligência paterna. Após longo tempo de desespero, de culpa e de reparações, um novo sonho, por fim, vem aliviá-lo: ele consegue então conversar longamente com o filho, que lhe agradece por ter podido alcançar o céu graças às preces do pai dirigidas a Deus.

Paralelamente a esses relatos de sonho, e num segundo momento, desenvolveram-se, ao ponto de constituírem uma verdadeira "invasão de espectros", relatos de aparições. Estas aparições acontecem no estado de vigília, podendo então dispor da confirmação de múltiplas testemunhas. É interessante observar que a diferença entre sonho ou vigília importa pouco quanto ao significado sobrenatural do acontecimento em questão. Tanto num caso como no outro, trata-se incontestavelmente de uma manifestação do além. Sabe-se perfeitamente que a concepção que faz do sonho um momento de contato com o sobrenatural é defendida por uma tradição imemorial – desde Jacó, no livro do Gênesis, que sonha com uma escada que vai da terra ao céu, a Bíblia é costumeira do fato. Avalia-se o quanto o relato de aparições observadas no estado de vigília faz com que as coisas se inclinem para o lado da realidade do espectro. Às vezes, quando o efeito buscado pode encontrar ali algum proveito, o mesmo relato poderá sofrer um deslize e passar da condição de sonho à visão em estado de vigília. Mas o termo visão tem, para nós, uma ambiguidade. Sem dúvida, devem-se contar como origem desses relatos não só sonhos transpostos – única hipótese considerada por Jean-Claude Schmitt –, mas também verdadeiras alucinações.

Muitos relatos insistem na materialidade da experiência. Pode-se citar, por exemplo, embora tardia, a história de um ressuscitado bretão cuja aparição aterroriza a família. No entanto, esse padeiro que, no dia seguinte à sua morte, vem ajudar na fornalha, parece benevolente. Quando seu túmulo é aberto, seu corpo é encontrado com as botas cobertas de lama dos caminhos percorridos durante seus passeios noturnos. Para acabar definitivamente com suas andanças, decidem quebrar suas pernas. Poder-se-ia pensar que tal iniciativa tenha pouco efeito sobre alguém que venceu a morte. Porém, é esse gesto que interrompe as peregrinações inquietantes. Parece-nos surgir aqui uma nova dimensão, que é a manifestação explícita – quebrar as pernas – da vontade dos vivos de que os mortos permaneçam mortos.

Não seria uma etapa crucial do trabalho de luto deixar expressar a dimensão agressiva da relação com o outro, num verdadeiro levantamento do recalque que libera da culpa?

No sucesso popular dessas narrativas, convergem a culpa dos sobreviventes em relação ao morto, por quem se teme ter sido morto em pecado, e a finalidade dos pregadores em relação aos seus fiéis. Trata-se de conduzir o povo cristão pelo caminho certo, não só para a santificação, a modificação das práticas sociais condenadas, mas também para a submissão aos rituais que garantem rendas materiais para a instituição (as missas, as ofertas). A narrativa é, então, tanto recurso político quanto pastoral (Schmitt, 1994, p. 174).

Os espectros passam então a fazer parte do imaginário ocidental, mesmo que tenham perdido posteriormente muito da sua importância. Com a Reforma – e depois, com a Contrarreforma –, eles adquirem cheiro de enxofre e passam a ser tidos mais como manifestações do diabo. Na época das Luzes, eles entram definitivamente no terreno das superstições, o que não significa que tenham desaparecido das crenças, mas deixam de ter direito a qualquer reconhecimento nos discursos dominantes. A religião perde aí cômodos aliados, que se manifestarão apenas esporadicamente. A última invasão de espectros, com o espiritismo, no final do século XIX, não se fará em nome da religião, mas em nome da ciência e do experimento.

 

Destinos atuais da crença

O que resta hoje da ressurreição dos mortos como resposta à expectativa inconsciente do ser humano e qual eficácia esta solução religiosa manteve? Nesse combate milenar para reduzir as formas pagãs e impor suas próprias representações, a Igreja ganhou o essencial. O imaginário religioso ocidental impregnou-se de seu discurso sobre a ressurreição, que, do tímpano esculpido da abadia de Conques aos afrescos de Signorelli, em Orvieto, continuará sendo, provavelmente durante muito tempo ainda, uma referência essencial. Mas será que se trata agora de algo diferente de um fundo imaginário capaz de oferecer ao jogo do espírito o desenvolvimento colorido de todas as suas quimeras? Este imaginário ainda é capaz de gerar uma crença? Uma resposta em vários níveis pode ser aqui considerada.

Em primeiro lugar, existem campos em que, de maneira bem localizada, as crenças – e principalmente a adesão à ressurreição dos mortos – persistem em suas formas tradicionais. As práticas religiosas populares mantêm intacto o dogma do modo como se apresenta no seu enunciado oficial, invariável; pode-se inclusive observar que se desenvolvem alguns polos de reconquista que encontram formas ingênuas de expressão da fé, com os movimentos pentecostais no mundo protestante e os movimentos carismáticos na Igreja católica (Cox, 1995). Além disso, persistem aqui e ali, nos limites do campo religioso e transmitidos de geração em geração, fora dos usos reconhecidos, arranjos e compromissos com as formas mais "medievais" das manifestações dos espíritos (Favret-Saada, 1977).

Paralelamente às práticas que podem ser ditas tradicionais, aquelas do maior número de fiéis, encontra-se a reflexão daqueles que, mesmo dentro das Igrejas, procuram diferenciar-se dos discursos mais obscurantistas. Para os crentes mais esclarecidos, abertos à pesquisa teológica, o confronto com o progresso da ciência não pode ser recusado. Esse confronto os leva a considerar a realidade dessas descobertas em relação a tudo o que seja verificável. Para manter ao pé da letra os enunciados fundadores das crenças, tal atitude – não podemos deixar de ver nela uma dimensão paradoxal – obriga a modificar o sentido deles. Nesta linha, alguém como Teilhard de Chardin reinsere os fins últimos do homem numa cosmologia grandiosa que vê como ponto final da evolução a vitória do Espírito – "uma espiritualização total do cosmos" –, na qual a ressurreição da carne ocupa um lugar problemático. Do mesmo modo, desenvolveram-se correntes de pensamento no cristianismo que chegam a interrogar-se sobre a historicidade da ressurreição e propõem deslocar a questão de sua realidade para aquela da realidade histórica do surgimento da fé dos primeiros cristãos (R. Bultmann, K. Barth). O evento da história de Cristo não está mais no fato de que a morte tenha sido vencida, mas que uma comunidade tenha fundado sua fé nessa crença. Vê-se que o preço a pagar para manter um diálogo com o mundo moderno é elevado: o que fora dado como fato histórico torna-se figura metafórica. Aliás, não se tem certeza de que a sobrevivência das religiões ao advento do mundo moderno precise de tais sacrifícios. Lembremo-nos das palavras de Freud quando ele observou que os homens esperam das religiões que elas prometam "que a felicidade comece logo após a morte" e destacou que, se o discurso religioso se dilui em afirmações mais prudentes, na simples "afirmação de um ser espiritual cujas propriedades não são determináveis [...], [as religiões] se veem abandonadas pelo interesse dos homens" (Freud, 1927/1994, p. 195).

A evolução do fato religioso no mundo ocidental é complexa, mas é evidente que o domínio do cristianismo está enfraquecendo. Esse fenômeno, no entanto, insere-se num duplo movimento. Por um lado, há uma real descristianização, tanto mais que, para muitos daqueles que se afirmam crentes, a religião resume-se a uma fina camada de verniz sociológico. As pesquisas realizadas nos países europeus mostram que a crença na ressurreição é justamente a mais posta em dúvida, ou pelo menos muito mais que a crença em Deus8. Por outro lado, esse recuo das religiões instituídas mantém intacto o temor ante o desconhecido da existência e de sua finitude. Assiste-se até mesmo – eis o outro aspecto desse movimento – à proliferação de novos grupos religiosos, que vêm corresponder a uma expectativa de crença confusa, mas manifesta9. Profetas elevam-se, gurus reúnem discípulos em grande número e prometem um novo além para novos eleitos. Esses movimentos religiosos contemporâneos que recomeçam a história encontram muitas vezes as formas mais obscurantistas das religiões, desprezando as aquisições culturais destas. Não deixa de causar espanto a força da adesão que essas novas crenças podem suscitar, a ponto de levar, às vezes, ao suicídio em massa, suposto apressar da libertação e do acesso à vida eterna. Assim, quando os grupos fogem às grandes religiões instituídas não é necessariamente para fugir ao religioso ou ao irracional.

Por fim, existem formas positivistas de aspiração à imortalidade nas quais as crenças antigas se metamorfoseiam em expectativa de uma ressurreição sem deus, de uma ressurreição que deixa de ser nomeada e se dá em nome da ciência. Faz muito tempo que a medicina tem tido muito mais êxito em vencer a doença do que todos os taumaturgos juntos, mas a morte continua sendo um limite irredutível. Por isso, a loucura do mundo moderno não está mais no fato de o homem esperar ser imortal um dia, mas no fato de querer ser agora não mortal. Os discursos antigos transformam-se, tomando empréstimos dos sonhos modernos: o controle da vida torna-se o novo mito. A narrativa na qual este mito alcançou sua forma exemplar é, sem dúvida, a história de Frankenstein, cientista romântico aterrorizado por sua própria criatura. E o mito vem hoje flertar com a realidade: assiste-se à multiplicação de Frankenstein, que promete serenamente a clonagem a todos os adeptos de uma imortalidade científica.

Ao percorrermos algumas metamorfoses da ressurreição dos mortos, não nos surpreende a resistência da aspiração à imortalidade diante das objurgações da razão: o que se manifesta aí é a força do desejo inconsciente. Devemos antes esperar metamorfoses infinitas desse desejo. A interrogação que se formula, então, diz respeito ao lugar que pode ocupar o desejo quando se sabe que não há esperança, e ao reconhecimento que se pode ter de uma expectativa quando se sabe que ela é vã. Negar esse desejo, ignorar essa expectativa seria outra mentira, uma ilusão que se referiria, para esquecê-la, à própria ideia de que o ser humano é fundamentalmente um ser falho.

Podemos aceitar indulgentemente essas crenças, querer nos posicionar como Henri Michaux, que, ao descrever as manifestações dos espíritos, situa a desmedida do pensamento humano do lado do "poder da insubordinação". Colocando lado a lado a dança de objetos de Poltergeist e as mistificações demoníacas do cura de Ars, o autor define esses fenômenos como "poder de oposição, de rebelião, de contestação" do sujeito (Michaux, 1986, p. 212). Henri Michaux os reconhece como uma tentativa de dar lugar, em resposta a pressões muito fortes, às forças do inconsciente. Assim, referindo-se ao demônio de nossas paragens, oposto aos demônios coloridos encontrados na Ásia, o autor observa: "Na Europa, mesmo o demônio é puritano, melancólico, futuro psicanalisado" (Michaux, 1986, p. 212).

Mas a partir do momento em que o discurso religioso é submetido à crítica, resta tentar enfrentar a realidade da morte. Bataille esteve obcecado por essa questão, que ele abordou mantendo uma tensão entre dois polos contraditórios: manter algo do religioso, quando sabia que Deus estava morto; e querer que a morte seja feliz, mesmo sabendo que a religião não ajudaria em nada. À beira da loucura quando buscava uma nova forma religiosa (Surya, 1992) e, ao contrário, alcançando o maior domínio quando, tão pouco tempo depois – no intervalo em que sua companheira Colette Peignot morrera –, escrevia "A prática da alegria diante da morte": "A alegria diante da morte significa que a vida pode ser glorificada desde a raiz até o topo. Ela priva de todo e qualquer sentido aquilo que está além, intelectual ou moral, substância, Deus, ordem imutável ou salvação" (Bataille, 1939, p. 11).

Trata-se, sem dúvida, de um novo ideal, cuja discrepância em relação às crenças consoladoras nós podemos avaliar. Nada resta para a ressurreição. Permanecem então as formas de imortalidade que correspondem à medida do homem. Para alguns, é a arte, uma obra; para outros, o poder, na esperança de marcar a história. Outros ainda se contentam com pobres substitutos ("o cemitério, repleto de pequenas glórias: lápides enormes", Renard, 1990, p. 843). Resta, sobretudo, a memória. Ela é o que os homens têm à sua disposição para continuarem a fazer existir aqueles que eles conheceram e também, infinitamente mais numerosos, todos aqueles que não conheceram, mas que construíram o mundo tal como é. Em Interpretação do sonho (1900), Freud fala do que o guiava na escolha dos nomes que dava a seus filhos: "Eu fazia questão de não escolher nomes de acordo com a moda do momento, mas determinados pela lembrança de pessoas queridas. Seus nomes fazem dos filhos almas que retornam" (Freud, 1900/1973, p. 415). Aliás, ele logo acrescenta: "Afinal, o único meio de alcançarmos a imortalidade não é tendo filhos?"

 

Referências

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Endereço para correspondência
PATRICK MEROT
13 avenue Charles V
94130 – Nogent sur Marne – França
tel.: 00331-4873-4017
E-mail: pmerot@yahoo.fr

Recebido: 15/04/2013
Aceito: 03/05/2013

 

 

* Psicanalista, membro titular da Associação Psicanalítica da França (e atualmente presidente dessa mesma associação); durante trinta anos, médico diretor de uma instituição médico-psicológica para crianças.
1 Tradução: Vanise Dresch.
2 A respeito de uma correspondência entre os mitos religiosos e as fantasias ver Rosolato (1996).
3 Sabe-se que, em Moisés e o monoteísmo, Freud formulou a hipótese de uma relação direta entre a religião egípcia e a religião judaica. Mas nós adotamos um ponto de vista diferente daquele de Freud nesse "romance histórico", uma vez que ele não se interessa pela influência da religião egípcia popular – principalmente a de Osíris – sobre a religião judaica, mas, ao contrário, por aquela da religião aristocrática de Akhenaton, como inventor do monoteísmo. Ele destaca o desinteresse do judaísmo pela ideia de sobrevivência após a morte, desinteresse esse no qual ele vê também uma influência das ideias de Akhenaton: "Espantou-nos, com razão, o fato de que a religião judaica não quisesse saber nada do além, nem da vida após a morte [...]. A convergência entre a religião judaica e a religião de Aton constitui, nesse ponto, o primeiro argumento forte a favor da nossa tese [...]. Tal recusa veio daí, pois, para Akhenaton, ele era indispensável para combater a religião popular na qual Osíris tinha um papel..." (Freud, 1939/2010, p. 92).
4 É impressionante observar que, na religião cristã, o cadáver sempre recebeu uma consideração muito pequena. Os trabalhos de Philippe Ariès mostraram notavelmente esse paradoxo: nenhum culto dos corpos se desenvolve na sociedade totalmente cristianizada. Eles são rapidamente abandonados. A ressurreição da carne não se incomoda absolutamente com o desaparecimento dos corpos. Deve-se ver aí o traço de uma hesitação, de uma última ambivalência do pensamento, disfarçada sob a afirmação de um mistério do "corpo glorioso" do além? Durante muito tempo, a Igreja se desinteressa dos corpos, cuja ressurreição futura ela proclama, e é mais aos positivistas que se deve a reinvenção dos cemitérios e dos rituais que ali se desenvolveram (Ariès, 1975).
5 Esta especificidade da crença dos saduceus é lembrada em Mateus 22 e 23.
6 Para uma compreensão contemporânea dessa questão da redenção, ver Gueoula (1998).
7 Freud havia destacado a força dos elementos irracionais na religião cristã: "A religião cristã [...] não se fechou, como a religião de Aton e a religião de Moisés que a sucedeu, para a intrusão de elementos supersticiosos e místicos, que deviam representar uma grave inibição para o desenvolvimento espiritual dos dois milênios seguintes" (Freud, 1939/2010, p. 181).
8 Uma pesquisa realizada em 1981 por J. Stoetzel revela, em nove países europeus, 43% de respostas afirmativas (mais de 35% na França) à pergunta sobre uma vida após a morte, e 75% de indivíduos que creem em Deus.
9 De acordo com Guy Rosolato, essas seitas "constroem-se sobre um fundamento místico, ou melhor, não existiriam sem ele" (Rosolato, 1980).