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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

EM PAUTA - FÉ E RAZÃO

 

Possibilidades e limites das teorias psicanalíticas: a questão da religiosidade1

 

Possibilities and limits of the psychoanalytical theories: the religiousness issue

 

 

Ilana Waingort Novinsky*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute as possibilidades e limites das teorias psicanalíticas, tomando como exemplo a questão da religiosidade tal como foi compreendida pela psicanálise, a partir das ideias de Freud, suas consequências, e como isto tem repercutido na prática dos psicanalistas hoje.

Palavras-chave: Teoria psicanalítica, Religiosidade, Freud, Winnicott.


ABSTRACT

This article discuss the possibilities and limits of the psychoanalytic theories, considering the issue of the religiousness as understood by psychoanalysis since Freud and the consequences to psychoanalytical practice today.

Keywords: Psychoanalytic theories, Religiousness, Freud, Winnicott.


 

 

Ao percorrermos a história da Psicanálise, podemos observar que a partir de vértices diversos originaram-se concepções e práticas psicanalíticas diferentes. Cada perspectiva teórica nasce sempre da singularidade do seu autor e dos impasses que a teoria e a técnica psicanalíticas encontraram em um determinado momento de sua história.

É fundamental procurar compreender os contextos nos quais surgem as formulações psicanalíticas para podermos fazer uma apreensão rigorosa do que os diferentes autores podem nos fornecer, explicitando o inédito de suas contribuições, que se originaram a partir de suas singularidades, e ressaltando também os limites de cada uma delas.

Toda teoria psicanalítica traz contribuições às questões colocadas pela prática clínica e também apresenta limites que serão ampliados por novas teorias. Através de um posicionamento crítico frente a elas podemos ampliar nosso conhecimento, com o objetivo de poder lidar com os novos sofrimentos que chegam aos nossos consultórios. Para isso, precisamos fazer a leitura de um autor em diferentes níveis, procurando ter claro as influências e características presentes em suas teorias, assumidas explicitamente ou não. Partindo deste ponto de vista, tomaremos, como exemplo para o tipo de análise proposta, Sigmund Freud e a teoria psicanalítica que nos ofertou, focando na questão da religião e da religiosidade como foi vista por ele e suas consequências para a prática psicanalítica.

 

Freud e a criação da psicanálise

Como sabemos, a Psicanálise surge a partir da experiência de Freud no tratamento das neuroses, em seu consultório de especialista em moléstias nervosas. Apesar de apresentar-se como um "judeu ateu", podemos reconhecer que determinadas facetas da "judeidade" de Freud foram vetores da elaboração de sua experiência clínica assim como de seus conceitos teóricos. Mesmo ao formular e teorizar sem nenhuma conexão com o Judaísmo, os temas fundamentais que Freud aborda e sobre os quais constrói o edifício teórico da psicanálise e da clínica psicanalítica, são temas aparentados às questões fundamentais do Judaísmo, entre as quais podemos destacar a questão da interpretação, a compreensão da História, a importância da palavra, entre vários outros (Safra, 2001).

Betty B. Fucks nos propõe pensar o vínculo de Freud com o Judaísmo a partir da categoria de "judeidade". Enquanto a condição judaica designa uma situação estática, definida pela filiação e pelo culto, a "judeidade" é um projeto subjetivo que tem o futuro como horizonte, transgride os modelos do passado e escapa às contingências do mero nascimento. A condição judaica é um estatuto, um enraizamento comunitário, uma origem. A "judeidade", pelo contrário, não está na origem, mas no fim. Não é uma identidade herdada, é uma construção permanente, a recusa de toda identidade fixa, a eterna busca do não-idêntico. A "judeidade" é o exílio, a errância, a travessia do deserto, a experiência de uma inelutável "estrangeridade" (Fucks, 2000).

O conhecido pensador e ensaísta americano Harold Bloom assim se expressou sobre esta questão: "a judeidade mais profunda de Freud, voluntária ou involuntária, foi sua paixão pela interpretação" (Bloom, 1989, p. 52).

Além da importância do Judaísmo na formação pessoal de Freud, também deve-se destacar a educação que recebeu no ginásio austríaco e na Universidade de Viena, que enfatizavam a cultura humanística e a ciência, ambas profundamente absorvidas por Freud. Podemos perceber a influência da cultura ocidental caracterizada pelo empirismo, incorporado pela Psicanálise. Como a cultura ocidental, a Psicanálise não é uma cultura do livro, da leitura infinita da tradição, mas da observação e da relação direta da natureza interna do ser humano com o mundo que o rodeia.

Como nos diz Paulo Sergio Rouanet, filósofo estudioso de Freud e da Psicanálise:

O freudismo não é fruto do Judaísmo, mas da relação instaurada entre o Judaísmo e o pensamento ocidental. É dessa relação que a psicanálise advém. A psicanálise não é judia nem goy, é o resultado da confluência e do conflito entre as duas culturas. Não é uma síntese dos dois polos, é a impossibilidade de toda síntese, e ao mesmo tempo, a impossibilidade de uma separação. (Rouanet, 2002, p. 18)

Nos escritos de Freud encontramos inúmeras citações da literatura poética, dramática e novelesca, que conhecia bem, admirava os clássicos gregos e latinos, como W. Shakespeare, M. Cervantes, J. Goethe, H. Heine, J. Schiller, além de seus contemporâneos como Stefan Zweig, Arthur Schnitzler e Thomas Mann, entre outros. Com eles partilhou de grande prazer estético e também as inquietações universais. As obras destes grandes autores foram modelos para seu estilo de escrita, além de descreverem os processos mais obscuros da alma humana, que prefiguraram para Freud muitas das descobertas da psicanálise (Mezan, 1982, p. 33).

Freud desejava ser um homem de ciência, seu objetivo era criar uma ciência sobre a alma humana, que possuísse um objeto próprio – o inconsciente e suas leis; uma metodologia específica – a interpretação do discurso dos pacientes na "situação analítica"; que se baseasse na descrição dos fenômenos observados na situação analítica e na formulação de leis gerais a partir deles; que constituísse um corpo de conhecimentos acumulados por meios adequados, transmissíveis a quem desejasse se apropriar deles, verificáveis e retificáveis. Como afirma Freud em uma de suas conferências, a psicanálise é fundamentalmente uma disciplina científica, partilha da visão de mundo da ciência e deve ser avaliada pelos critérios aceitos de cientificidade.

Tudo isso acontecia na Viena dos fins do século XIX, onde ocorriam profundas transformações na sensibilidade e no pensamento até então vigentes e à volta com movimentos de renovação em todas as áreas. A psicanálise freudiana é contemporânea destas transformações fundamentais nos ensinando que o racional mergulha no emocional, que a inteligência também é governada pelas paixões, que o conteúdo manifesto de uma ideia se ancora numa complexa rede de desejos e de pensamentos latentes.

O método psicanalítico pretende ser científico e racional. Otto Fenichel institucionalizou esta compreensão melhor que qualquer outro, quando disse sobre a psicanálise: "O assunto é irracional, não o método" (Fenichel, 1941, p. 13, tradução do autor). Em outras palavras, Freud herdou do Romantismo o objeto de estudo, a irracionalidade, o inconsciente, os sonhos, a feminilidade, a sexualidade, as profundidades obscuras do espírito humano, mas criou um método e uma teoria baseados na racionalidade iluminista, objetiva e científica. Entre as grandes realizações de Freud está o fato de ter aproximado a racionalidade iluminista da subjetividade romântica, as influências grega e judaica, Atenas e Jerusalém (Strauss, 1967/1997). Mas ele o fez aproximando-as para separá-las, entre o método e o objeto de investigação, entre o analista e o paciente.

Do ponto de vista metodológico, Freud pretendia eliminar o "fator subjetivo", e a "judeidade" era definitivamente um fator subjetivo, o analista-cientista devia portanto observar com um olhar neutro, universal, e não com um olhar único, idiossincrático. Segundo sua visão, para a psicanálise ser uma ciência objetiva, a singularidade do analista individual não devia interessar2.

O ideal iluminista freudiano de ciência via a Psicanálise como aquela que libera o indivíduo da ilusão da religião. A Psicanálise oferecia a Verdade em substituição da religião, considerada uma fantasia regressiva. A crença religiosa era considerada "uma causa perdida", "uma neurose infantil", e Freud homenageava apenas o "Nosso Deus, Logos" (Freud, 1927/1996a, pp. 53-54).

 

Freud, a psicanálise e a religião

Como sabemos, Freud escreveu vários trabalhos sobre religião e ao longo de suas obras encontramos numerosas referências a esse tema. Não é nosso propósito aqui aprofundar a análise destas ideias, mas vale destacar que ele apresenta o fenômeno religioso como uma defesa contra o desamparo, como uma necessidade da civilização e como uma ilusão, na medida em que a religião não defende o homem da natureza (estamos sujeitos a terremotos, inundações, vulcões... a natureza é inexorável, majestosa, cruel, impessoal); não retifica a cultura (permanece o mal-estar, embora o atenue com promessas de um mundo melhor); e não defende o homem de seu destino (embora o console com promessas e afirmações não verificáveis). Em outras palavras, a religião iludiria o homem porque, baseada em uma hipótese dominante, uma verdade universal, propõe-se a não deixar nenhuma pergunta sem resposta, a fornecer uma "Weltanschauung", uma visão de mundo. Desse modo, tudo o que inquieta o homem teria uma solução.

Contrapondo-se às ilusões religiosas, Freud propõe a ciência. A grande contribuição da Psicanálise, segundo ele, era ter estendido a pesquisa científica à vida mental.

Oscar Pfister, pastor protestante e psicanalista, grande amigo e interlocutor de Freud, se contrapunha às suas ideias sobre a religião e a religiosidade, e em uma carta dirigida a ele assim se expressou:

O senhor sorrirá ao saber que acho que o método psicanalítico que o senhor criou é uma maneira esplêndida de esclarecer e promover o desenvolvimento da religião [...]. Seu livro foi resultado de uma necessidade interna, um ato de honestidade, e de tom confessional. Seu colossal trabalho de toda uma vida não teria sido possível sem o aniquilamento de falsos deuses, estivessem eles nas universidades ou nas paredes das igrejas. Qualquer pessoa que tenha tido o prazer de ter convivido com o senhor sabe que o senhor serve a ciência com a admiração e o fervor que elevam o seu gabinete de trabalho a um templo. Falando francamente: tenho uma forte suspeita de que o senhor batalha contra a religião a partir de um sentimento religioso. (Pfister, 1928/1993, pp. 557-579, tradução minha)

Nesta carta, Pfister chama a atenção de Freud para o fato de que ele não está levando em conta a diferenciação entre o sentimento religioso, a experiência do sagrado que reconhece e aponta no próprio Freud, na sua relação com o seu trabalho, chamando o seu consultório de um templo, e a religião como conjunto de práticas e rituais institucionalizados e organizados ao redor de todo tipo de igrejas.

As críticas mais contundentes que Pfister fazia a Freud eram sobre sua postura materialista, uma visão filosófica derivada do Iluminismo do final do século XVIII, e também por considerar a realidade e a ética como algo evidente, às quais a ciência não podia responder (Argelazi, 2008).

Outro amigo de Freud, Romand Rolland (1866 – 1944), prêmio Nobel de literatura que também discordava das suas ideias sobre religião, assim se expressou numa linda carta:

Sua análise da religião é muito justa. Porém, eu gostaria muito de vê-lo fazer uma análise do sentimento religioso espontâneo ou, mais exatamente, do sentir religioso, que é completamente diferente das religiões no sentido estrito do termo, e é muito mais duradouro. O que eu quero dizer é: independentemente de qualquer dogma, de qualquer credo, de qualquer Igreja organizada, de qualquer Livro Sagrado, de qualquer esperança na sobrevivência pessoal etc., simplesmente o sentimento do "eterno" (que pode muito bem não ser eterno, mas simplesmente sem limites perceptíveis, tal como o sentimento oceânico). Esta sensação, admite-se, tem um caráter subjetivo. Mas o fato de ser comum aos milhares (milhões) de homens que existem atualmente, com seus milhares (milhões) de nuances individuais, torna-o passível de análise, com uma exatidão aproximada.

[...]

Eu mesmo posso dizer que essa sensação me é familiar. Ao longo de minha vida, ela nunca falhou; e sempre encontrei nela uma fonte de renovação vital. Nesse sentido, posso dizer que sou profundamente "religioso" sem que esse estado constante (como uma fonte de água que sinto fluindo sob um barco) afete de alguma maneira as minhas capacidades de crítica e a minha liberdade para exercê-las – mesmo que isso vá contra a imediatez da experiência interior. Desse modo, sem desconforto ou contradição, eu posso levar uma vida "religiosa" (no sentido desse sentimento prolongado) e uma vida de razão crítica (que é sem ilusão)... Eu devo acrescentar que esse sentimento "oceânico" nada tem a ver com minhas aspirações pessoais. Pessoalmente, aspiro por um descanso eterno; a sobrevivência não tem nenhum atrativo para mim. Porém, o sentimento que experimento se me impõe como um fato. Ele é um contato. E o fato de eu reconhecê-lo idêntico (com múltiplas nuances), em um grande número de almas viventes, ajudou-me a compreender que essa era a verdadeira fonte subterrânea da energia religiosa a qual, subsequentemente, foi coletada, canalizada e sugada pelas Igrejas, embora possamos dizer que é no interior das Igrejas (quaisquer que elas sejam) que o verdadeiro sentimento "religioso" é menos encontrado. (Rolland, citado por Ancona-Lopez, 2005, pp. 147-159)

O próprio Freud comenta essa carta em O Mal-Estar na Civilização:

As opiniões expressas por esse amigo que tanto respeito [...], causaram-me não pequena dificuldade. Não consigo descobrir em mim esse sentimento "oceânico". Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus sinais fisiológicos. Onde isso não é possível – e temo que o sentimento oceânico desafie esse tipo de caracterização –, nada resta senão cair no conteúdo ideacional que, de forma mais imediata, está associado ao sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo [...] trata-se de um sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo. Posso observar que, para mim, isto parece, antes, algo da natureza de uma percepção intelectual, que, na verdade, pode vir acompanhada de um tom de sentimento, embora apenas da forma como este se acharia presente em qualquer outro ato de pensamento de igual alcance. Segundo minha própria experiência, não consegui convencer-me da natureza primária desse sentimento; isso porém não me dá o direito de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas. A única questão consiste em saber se ele está sendo corretamente interpretado e se deve ser encarado como a fons e origo de toda a necessidade de religião. (Freud, 1930/1996b, p. 82)

A partir daí, Freud passa a desenvolver a hipótese de que o sentimento oceânico corresponde a um estado primário que o ego já viveu um dia, antes de se diferenciar do mundo externo. Este estado de indiferenciação, que é observado em casos de patologia grave, e é normal no ego infantil, teria persistido em alguns indivíduos. O sentimento de unidade existiria ao lado do sentimento do ego mais estrito e discriminado da maturidade, como um correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o da ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo.

Freud reconhece que a resposta que dá à questão proposta por Romain Rolland é pouco satisfatória, uma vez que ele não tem acesso a esse sentimento "oceânico". Em seguida esclarece que em O Futuro de uma Ilusão não pretendia investigar propriamente a origem mais profunda do sentimento religioso, mas aquilo "que o homem comum chama de religião – o sistema de doutrinas e promessas que lhe explicam os enigmas do mundo" (Freud, 1930/1996b, p. 92).

Apesar da imensa riqueza e diversidade do fenômeno religioso em todas as épocas e culturas, Freud jamais reconheceu que este pudesse ser um fenômeno que expressasse uma vivência pessoal e cultural legítimas, e sua importância na constituição do Self.

Isso trouxe consequências importantes: por conta das ideias de Freud, a religiosidade se tornou quase um sinônimo de patologia, neurótica ou psicótica, ou no mínimo uma defesa ilusória contra ameaças externas, reduzindo muito nossa compreensão do fenômeno religioso. A partir de suas ideias, do existencialismo e do marxismo (para nos referirmos a algumas influências), ter fé se tornou, além de suspeito, algo considerado fora de propósito, em muitos meios intelectuais e, em especial, nos psicanalíticos.

Ao contrário das ideias de Freud, o pensamento científico não substituiu o pensamento religioso; observamos na atualidade uma explosão da religiosidade no mundo inteiro, sob todas as formas, correntes e tendências; no entanto, hoje, como ontem, a religião continua relegada a uma existência marginal no universo da psicologia, da psiquiatria e, com frequência, da psicoterapia e da psicanálise.

Esta interpretação de Freud da religiosidade foi seguida durante muito tempo pelos psicanalistas, o que levou a psicanálise a fechar as suas portas à experiência espiritual tanto dos pacientes quanto dos analistas, o que explica os poucos relatos sobre esta questão de que dispomos até recentemente. Como ilustração dessa atitude podemos lembrar a afirmação de Otto Fenichel, no seu livro clássico Problemas da Técnica Psicanalítica, um texto que influenciou a teoria e a prática de psicanalistas por décadas:

Diz-se que as pessoas religiosas em análise permanecem não influenciadas em suas filosofias religiosas, pois a própria análise pretende ser filosoficamente neutra. Eu não acho isso certo. Vi repetidamente que através da análise das ansiedades sexuais e o amadurecimento da personalidade esta ligação com a religião termina. (Fenichel, 1941, p. 89, tradução minha)

Se levarmos em conta a animosidade histórica entre psicanálise e religião em geral, e psicanálise e crença religiosa em particular, não nos surpreenderá observar como a experiência religiosa não esteve presente em nossos consultórios. Isto se deve, provavelmente, à interpretação freudiana reducionista da experiência religiosa e ao fato da psicanálise não ter aberto suas portas à experiência espiritual tanto dos analistas quanto dos seus pacientes. Sem dúvida, a pouca frequência com que este tipo de experiência é relatada na psicanálise está diretamente ligada à perspectiva do paciente de como o analista costuma perceber e interpretar a religião e a religiosidade.

Como os psicanalistas e filósofos da ciência apontam, uma visão contemporânea de ciência contesta toda dicotomia estrita entre ciências naturais e todos os outros campos, incluindo a psicanálise e a religião. Tanto a ciência quanto a racionalidade, de um lado, quanto a religião e a espiritualidade, de outro, são mais complexas e multidimensionais do que Freud postulava.

Alguns autores, embora se dizendo simpáticos à experiência religiosa e mística, as vêm com suspeita, como infantis e ilusórias, irracionais e regressivas, como por exemplo Ostow (2007). O problema, a nosso ver, é que estão ligados a uma visão de ser humano comum à tradição psicanalítica clássica, e assim preocupados com a distinção entre realidade e ilusão, seguindo o modelo da pulsão, o que os leva ainda hoje a concluir que a experiência religiosa é ilusória, servindo apenas para gratificar a necessidade instintual de vínculo, identificando a dinâmica do misticismo como um "distúrbio do ego", um "passo regressivo para trás, para alucinação e perda do teste de realidade". Perde-se assim a possibilidade de transformação da ilusão, seu potencial de enriquecimento e sua ampliação através do processo maturacional tão bem descrito por Donald D. Winnicott.

Várias correntes na psicanálise contemporânea têm feito uma forte crítica a estas posições da psicanálise clássica. A noção atual de ciência, assim como a epistemologia contemporânea, dá grande importância à subjetividade do cientista, o que tornou possível também uma mudança na posição do psicanalista, que hoje leva em conta suas perspectivas pessoais e sua subjetividade, inclusive as suas crenças religiosas e seu background, de modo a lhe permitir uma reflexão sobre como isso afeta tanto seu trabalho clínico quanto suas formulações teóricas.

Como exemplo desta tendência, podemos citar o texto de Ahmed Fayek (2004), sobre o Islã e seu efeito na sua prática psicanalítica; de Lewis Aron (2003) sobre a influência de Deus na sua visão da psicanálise; e Anna Maria Rizzuto (2004) sobre o background católico-romano e a psicanálise. Ao refletirem sobre sua formação étnica e religiosa, demonstram como a experiência religiosa, de diferentes maneiras, contribuiu para que encontrassem grande afinidade e realização pessoal no trabalho psicanalítico. Isto nos remete novamente a nossa ideia inicial, de como nosso background, nosso pertencimento a uma determinada etnia e momento histórico determinam, mesmo que não conscientemente, como ocorreu com Freud, nossa maneira de ser enquanto psicanalistas e nossas possibilidades de estarmos atentos ao que nossos pacientes nos apresentam.

Donald D. Winnicott contribuiu com um outro paradigma para a psicanálise, pois vê a ilusão como fundamental ao processo maturacional através da qual o bebê pode alcançar a realidade compartilhada e não como uma defesa. A capacidade de ilusão é, portanto, neste contexto, uma necessidade para alcançar a relação com os outros e através da experiência transicional podemos chegar à experiência cultural, relacionando a realidade externa e interna (Winnicott, 1988/1990).

Para Winnicott, o homem não nasce pronto, mas se constitui através da relação, do encontro com o outro, dentro de um ambiente familiar e sociocultural historicamente determinado, processo que se mantém por toda a vida.

Winnicott refletiu sobre as condições do devir do ser humano, isto é, de seu ethos, e com um olhar sempre aberto para o inédito nos fala sobre o sofrimento contemporâneo que se dá pelo esfacelamento deste ethos. A clínica passa a ser pensada como tendo por fundamento uma ética que possibilitará a recuperação do ethos humano fragmentado.

Até bem pouco tempo a psicanálise, em seu compreensível afã de legitimação como ciência positiva, entendeu como necessário o banimento de toda atenção à experiência emocional ligada ao mistério da vida e ao sagrado, subscrevendo concepções de mundo que não contemplavam a religiosidade, enquanto necessidade humana, compreendendo-a em termos de mera expressão de um infantilismo psicológico que ansiaria, em seu desamparo, por um poder benevolente vindo de uma dimensão sobrenatural.

Enquanto o próprio avanço da ciência, nos últimos séculos, veio deixar claro os alcances e limites da teoria freudiana, ensejando uma recuperação da importância da ética e da religiosidade, a expansão do pensamento psicanalítico na cultura, bem como as transformações sociais e culturais que vêm ocorrendo, modificaram os sofrimentos e as demandas que se apresentam na clínica contemporânea.

Vemos surgir assim uma psicanálise que precisa lidar com novas formas de sofrimento humano, que certamente se vinculam de modo essencial com as condições da vida concreta no mundo atual, originadas no projeto moderno em que vivemos, em uma cultura excessivamente definida pelo tecnológico em todas as suas facetas, excessivamente racionalista, e de nomeação. Vemos surgirem fenômenos peculiares e subjetivos, já desde a década de 1960, como as personalidades "como se", falso self, personalidades simulacro e assim por diante.

As queixas que recebemos em nossos consultórios estão hoje mais ligadas à busca de sentido da existência que se expressa, de modo mais ou menos intenso, por meio de sensações de futilidade, de vazio, de depressão. Trata-se da vivência de estranhamento de si, da incapacidade de se sentir vivo e real, da impossibilidade de viver – e digo viver porque se trata de questão existencial e não de questão meramente cognitiva – de "sentir que a vida vale a pena".

O ponto importante a salientar é que esta clínica não visa, como anteriormente, a recuperação de um saber sobre si mesmo, a interpretação "explicativa", voltada ao resgate do recalcado num registro representacional, e sim a conquista de um estado existencial, no qual é possível ao indivíduo sentir-se real (Winnicott, 1971/1975). Nesta perspectiva é impossível escapar à questão da religiosidade, rotulando toda fé como sintoma de infantilismo, pois as questões relativas ao sentido da existência e à sensação de estar vivo remetem inelutavelmente à experiência emocional voltada à dimensão do sagrado.

Fora do âmbito de um atendimento capaz de acolher, sem doutrinar, a experiência emocional que inclui o sagrado e o divino, entendido como uma imagem e experiência de deus presente, consciente ou inconscientemente, em todos nós, dificilmente se poderá atingir a experiência mutativa, que é o fundamento de toda clínica.

Somos desta forma sensibilizados no sentido de conduzir a questionamentos acerca do quanto o estudo psicanalítico do ser humano tem sofrido distorções ao não considerar em toda sua complexidade um aspecto absolutamente fundamental e distintivo da natureza humana.

Certamente não nos cabe discutir a existência ou não de deus, que é uma tarefa da teologia, mas nos cabe compreender com rigor o fenômeno da religiosidade e da espiritualidade, que estão presentes em todos os seres humanos, através das experiências do sagrado e do divino.

Minha intenção ao trazer para discussão a questão da religiosidade na clínica psicanalítica contemporânea – sem dúvida, sem esgotá-la – é exemplificar como nossas teorias afetam a nossa possibilidade de estar com os nossos pacientes, a maneira como estamos com eles e as questões que fazemos a eles, a nós mesmos e à nossa profissão como um todo.

Nossas teorias podem limitar e mesmo nos impedir de observar os fenômenos que se apresentam em nossos consultórios. Ao invés de nos sensibilizarem e nos permitirem uma abertura para o outro que nos chega, podem provocar o seu adoecimento ao não contemplarem aspectos ontológicos do ser humano, o ethos humano, como no caso da questão aqui apontada, suas necessidades e características transcendentes.

É preciso nos mantermos sempre abertos para o inédito que os pacientes nos trazem, pois nos apresentam não apenas sua dinâmica intrapsíquica, mas também os sofrimentos presentes no mundo contemporâneo. A questão da religião e da religiosidade está hoje, para a ciência e a psicanálise, como o Outro que se impõe para ser considerado e compreendido, como as histéricas o foram para Freud no início da psicanálise.

Como dizia Charcot, em um aforismo que Freud muito apreciava: "La théorie, c'est bon, mais ça n'empêche pas d'exister" ("A teoria é muito boa, mas isso não impede os fatos de existirem", Charcot citado por Gay, 1989, p. 62).

 

Referências

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Endereço para correspondência
ILANA WAINGORT NOVINSKY
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E-mail: ilanawn@gmail.com
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Recebido: 15/04/2013
Aceito: 17/05/2013

 

 

* Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, pós-graduada em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de Campinas, Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com a tese Edith Stein (1891-1942): em busca da verdade em tempos sombrios.
1 Artigo elaborado a partir de conferência realizada na Sociedade Portuguesa de Psicanálise, Lisboa, fevereiro de 2011.
2 Isto apesar de Freud ter feito várias observações sobre a questão da contratransferência e suas implicações, que a partir da década de 1940-50 foram desenvolvidas a ponto de tornarem-se hoje fundamentais para a clínica contemporânea.