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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

EM PAUTA - FÉ E RAZÃO

 

A fé: Bion e Kierkegaard

 

Faith: Bion and Kierkegaard

 

 

Martha Prada e Silva*

Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda o significado que toma o termo no campo da psicanálise, tal como introduzido por Bion no contexto de seu pensamento a partir do livro Transformações. Para penetrar a penumbra de significados do termo, a autora se dirige à concepção religiosa de , usando subsídios do pensamento de Søren Kierkegaard. O artigo procede a uma aproximação dos dois vértices numa ilustração clínica do conceito de .

Palavras-chave: Ato de fé, Multidimensionalidade, Realidade última, Transformações em O, Cesura.


ABSTRACT

This paper explores the meaning of faith in the field of psychoanalysis, as introduced by Bion in the context of his thoughts since 1965, in his book Tansformations. The author searches the religious concept of faith in the thoughts of Søren Kierkegaard and tries to approximate the two vertices through a clinical illustration of the concept of faith.

Keywords: Act of faith, Multidimensionality, Ultimate reality, Transformations in O, Caesura.


 

 

Ao buscar no pensamento religioso sobre a subsídios que me auxiliassem a aprofundar o entendimento da necessidade de Bion (1965/1984; 1970/1988) de introduzir esse termo no campo da psicanálise, tive meu interesse despertado pela obra de Søren Kierkegaard, filósofo, teólogo e cientista situado na primeira metade do século XIX. Apesar de seus títulos, sempre recusou qualquer autoridade e se autodefinia como apenas um pensador cristão. A está presente no centro de sua vasta obra, justamente por ocupar como questão o centro da vida de Kierkegaard. Por ser tão intrincadamente tecida com o fio de seu existir, sua obra se espalha para além dos volumes convencionais, por corredores que não podem deixar de incluir seus diários, em suplementos que formam alças enriquecedoras os textos principais. Os temas apontam aqui, repontam ali, se entrelaçam entre principal e seus adendos e, sobretudo, nunca se concluem. Traçando um paralelo com Freud, cuja autoanálise se confunde com os próprios alicerces da criação do método, da técnica e da teoria, também em Kierkegaard a obra pode ser enfocada pelo ângulo de uma insopitável necessidade de contínuo trabalho de autoanálise, aspecto este que não escapou à especial atenção de seus biógrafos (Garff, 2005; Hannay, 2001).

Passando às construções não menos labirínticas da psicanálise, noto que todos os modelos de mente que esta produz, desde Freud, têm também a característica da abertura. Nenhum dos modelos que Freud se aplicou em produzir para balizar o conceito de aparelho mental se fecha sobre si mesmo. Nem mesmo o modelo do Projeto para uma Psicologia Científica, que parte fortemente embebido da experiência de um neurofisiologista, mas se abre em voo ficcional e imaginativo rumo à apreensão de um objeto volátil que não se deixa prender nas malhas por demais concretas da ciência do século XIX. Assim, tampouco se fecha nenhuma instância que ele descreve como constituinte desse aparelho, e nenhum dos funcionamentos que lhe dão vida. Também sua origem não é fechada, mas se confunde com os mitos.

Freud não nos oferece construções inabaláveis, mas sim constructos cujo maior mérito consiste em oferecerem o abrigo de uma formulação à captação de um entendimento volátil e provisório sobre matéria tão desmaterializada quanto é a vida mental humana. As formulações de Freud se regem por um movimento vetorial rumo à progressiva desmaterialização. Além deste sentido de abertura, há também desde o conceito de pulsão, pedra fundamental deste estranho edifício imaterial, o sentido de abertura para o outro, por onde entram o inconsciente (o outro da consciência), mais tarde o não-eu (o outro do eu) e ainda depois o id (o outro do ego). Há sempre movimento entre pares que se definem ao se oporem, que se opõem, mas jamais se anulam num interjogo dialético contínuo de criação do mental. Nas sucessivas reformulações de visão, a psicanálise sempre indicou que a mente é um produto no qual a presença do outro, do que lhe é externo e estranho, conta tanto quanto o que lhe é próprio.

Os avanços acontecidos desde Freud expandem muito a possibilidade de captação de fenômenos e de funcionamentos que integram o domínio do mental, a ponto de acarretarem a necessidade da construção de novos modelos de mente que os abriguem. Passamos a distinguir melhor que múltiplas dimensões do psiquismo se apresentam simultaneamente na experiência de análise. Precisávamos aparelhar nosso pensamento para sua exploração. O desenvolvimento dado por Bion (1984) ao conceito de transformações e a reorganização da visão sobre a experiência analítica, ao propor como vértice o postulado de uma realidade última (O) inalcançável e incognoscível, nos trouxeram os instrumentos.

A introdução de O tem o efeito de instituir uma pedra de toque com a qual podemos aferir a qualidade da mistura sensorial/não sensorial, finito/infinito, falsidade/verdade, que realizamos no momento clínico. O realinhamento da psicanálise pelo vértice de O abre uma nova espiral de depuração na discriminação da natureza não sensorial da mente, muito necessária para convivermos com dimensões sensoriais e não sensoriais em presença simultânea, ou com a dimensão alucinatória em constante mistura com a dimensão do pensamento. O conceito de transformações nos permite acompanhar a natureza das transformações efetuadas no campo de experiência da dupla analítica, a partir de um espaço potencialmente infinito, como passa a ser concebido o espaço psíquico.

É nesse contexto que Bion sente necessidade de dar desenvolvimento ao termo no âmbito de seus pensamentos sobre o que é psicanálise. Ele o faz com rigorosa distinção dos campos, de forma a permitir-se a liberdade de manter as conotações do termo na teologia e na mística, mas de tomá-los agora em psicanálise, no contexto da experiência clínica. Em comum às três áreas, destaco que indica o estado de mente que sustenta a relação do homem com o incognoscível, e não simplesmente com o desconhecido. A saber, que o homem reconhece como real algo que não se reduz a ele próprio, nem a nada que ele possa vir a conhecer e sobre o qual possa vir a exercer controle. Ainda que ele tenha motivos fundados na experiência para acreditar que sempre algo mais do desconhecido pode a ele se revelar e se tornar apreensível, através do desenvolvimento dos meios de conhecer que lhe são próprios, o incognoscível é de outra natureza, indica algo que não pertence à área do conhecimento.

Isto me leva de volta a Kierkegaard, quando aponta no ser humano uma descontinuidade entre a condição finita de seu existir e a sua abertura mental para o infinito de sua interioridade. Para seguir com o filósofo é preciso não perder de vista que ele se ocupa do homem em estado de estar sendo (being), ou seja, na condição de alguém que existe. Ele se recusa a suspender, ainda que para fins de abstração, o fato de que o ser humano está submetido à condição de existir; ele insiste que as realidades para um ser que existe, tais como a finitude, ou o confinamento espaço-temporal, não podem ser alijadas dos ombros do homem que ao falar, pensar, ao buscar conhecimento e verdade, o faz limitado pela condição de existir. Ao mesmo tempo, o homem que se ocupa de sua existência não pode ignorar a realidade de ter uma vida interior. Atendê-la e realizá-la é o que Kierkegaard qualifica como o processo de tornar-se subjetivo.

O que ele diz é que cabe à pessoa tornar-se subjetivo, que chegar a ser aquilo que se é engaja o homem numa aventura interior necessariamente inacabada, embora encontre um fim com o fim da própria vida. O início desta aventura já é, ao mesmo tempo, uma tomada de decisão: a de, quanto à objetividade, escolher a incerteza e a ela se aferrar com paixão e afinco. Neste momento a estrada se bifurca, diz Kierkegaard, e o homem que faz sua escolha pela subjetividade abdica do universo da certeza objetiva onde o conhecimento pode evoluir indiferente ao fato de que o conhecedor é uma pessoa submetida à existência. Pois, no processo de tornar-se subjetivo, o conhecimento que importa não é o conhecimento objetivo, mas sim aquele que auxilie a compreender quem ele é e o que deve fazer. O desdobramento numa face ética lhe é inerente e conhecer tem o estatuto de um ato que o conhecedor pratica sobre si e sobre seu mundo.

Ao conhecer-se mortal, por exemplo, a pessoa estará elaborando através de si mesma um pensamento que tem a qualidade de um ato sobre sua existência. Tornar-se subjetivo consiste precisamente nisto. Para referir-se ao homem na função de conhecimento da subjetividade ele escolhe a palavra sujeito, que, longe de sugerir um estado de independência e completude em si mesmo, vem carregada das conotações de sujeição e submissão. O homem que busca o conhecimento por via da subjetividade está submetido à condição insuplantável e inalienável da existência e, ao mesmo tempo, quanto mais se aprofunda na interioridade, mais se lhe revela a dimensão de infinitude que ela abriga. Sua relação com esse paradoxo tem, mais uma vez, a marca da submissão: ele está sujeito ao paradoxo de ser finito e limitado à contingência da existência e de abrigar, no entanto, uma vida interior que evolui em possibilidade infinita, para ele inalcançável. Se lhe for possível tolerar o paradoxo sem destruí-lo e sem a ele se fechar, esta qualidade especial de relação com seu mundo interior é para o homem a experiência possível da verdade.

É preciso introduzir aqui que para Kierkegaard a adesão do homem à não veracidade a respeito de si, na relação que mantém com sua subjetividade, é um percalço que lhe vem junto com a existência, digamos que é uma marca de entrada na existência, por ele teorizada como o pecado original (1844/1992b). De forma que ao homem que busca a verdade, presumivelmente porque precisa dela para viver, cabe descobrir e levar em conta a constância da falsificação, a adesão ao inverídico que o acomete enquanto existente em suas relações com a infinitude de sua subjetividade. Afastando-se nesse ponto da teoria da imanência de Sócrates, Kierkegaard não crê que o sujeito pudesse se conduzir à verdade por rememoração. O momento em que o ser se desprende das falsificações tem o valor de um nascimento do ser. O acesso à verdade constitui para si mais propriamente uma passagem para a verdade. Depende de que chegue a reconhecer a falsidade de se atribuir uma autossuficiência de recursos, como se a verdade já lhe fosse de conhecimento imanente.

A descoberta da dimensão infinita e inapreensível de seu mundo interior rompe igualmente para o sujeito a crença na possibilidade de acesso direto à subjetividade, tanto à sua própria quanto à de qualquer outro. Se a vida interior é o alvo do conhecimento, "o observador não desliza diretamente para o resultado, mas com seus próprios recursos tem que se ocupar em encontrá-la, e desta forma efetua a quebra da relação direta. Mas esta quebra é já a abertura do caminho para a interioridade, um ato de deliberação do conhecedor, a primeira designação da verdade como interioridade" (Kierkegaard, 1846/1992a, p. 244). A busca de estar na verdade é para o sujeito uma escolha, uma opção que traz implícita a submissão a não saber e o abre para a fé como ato de aceitação do incognoscível. A fé seria o mais alto registro que o homem alcança na realização de si enquanto ser de subjetividade.

É, então, nesse ponto de ruptura, de quebra da imanência, de descontinuidade, que Kierkegaard introduz a fé. Para ele o ato de fé é o momento em que o homem transpõe o abismo entre o finito e o infinito; para recair em sua finitude, condição existencial inalienável, porém não mais o mesmo, mas transformado pela experiência da fé. Desprender-se do finito remete a uma situação muito ampla que Kierkegaard examina numa obra em que aborda a fé através de expansões em mito (1843/1985).

Com esse intuito ele cria a figura do cavaleiro da resignação e a contrapõe à do cavaleiro da fé. Estaria na posição de cavaleiro da resignação aquele que, desejando intensamente algo ou alguém, é capaz de renunciar por ter compreendido a total impossibilidade de chegar à satisfação. Resignação não supõe perda do interesse original, e sim a sua conservação aliada à aceitação de que não lhe será possível satisfazê-lo. O cavaleiro da fé, por sua vez, é aquele que porta em si toda a condição de resignação, mas a ultrapassa por força do absurdo. Com esta palavra Kierkegaard não nos aponta para uma impossibilidade lógica; o absurdo se refere ao impossível pelos meios humanos e impossível por qualquer meio inteligível (Hannay, 1985).

O cavaleiro da fé responde ao chamado do infinito, entrega-se para além do conhecimento, num ato de fé ao qual pode e deve se entregar. Para o cavaleiro da fé a obrigação de responder toma a primazia, em relação à que lhe vem por sua inserção no tecido social. Através da responsividade/responsabilidade plena e solitária perante o absoluto, ele ascende à categoria que Kierkegaard nomeia de singular, em contraposição a particular, termo que ele reserva para a condição do sujeito em sua face social. O rigor desta ética do singular renova a inserção social do sujeito como particular e a recupera de qualquer lassidão a que o social está sempre sujeito como lugar de abrigo e desculpa para oportunismos, falsidades e torpezas, com os mais variados disfarces ético-históricos, ou ético-políticos.

Pela posição ética alcançada, o sujeito singular vem renovar o corpo social, pois sua inserção nele não o confunde com os critérios quantitativos que regem a ética social. O ético é interioridade e é melhor discernido na pequena amostra de vida da própria pessoa, na qual cada ser humano está remetido a si próprio. Quanto mais se complica o exterior sobre o qual a interioridade da ética deve se refletir, mais difícil se torna a observação, até que por fim ela se extravia na estética, diz Kierkegaard (1846/1992a). Na vida da própria pessoa não há esse engano entre a substância da ética e o fator quantificação que a altera no nível social onde o ético envolve milhões.

Embora para fins de modelo ele tenha recorrido ao alto impacto da narrativa bíblica do sacrifício de Isaac e usado alguém da estatura de Abraão, o filósofo delineia o perfil do cavaleiro da fé como o de um homem comum que em tudo passaria despercebido. Kierkegaard supõe que Abraão, após o surgimento e o sacrifício da rês, tenha tranquilamente retomado Isaac e voltado para casa sem conflitos ou dilemas em seu coração, pois que afinal ele nunca duvidou que Deus lhe restituísse Isaac, apesar do absurdo dessa crença, ou melhor, justamente por força do absurdo dessa fé. O humor tranquilo com que o cavaleiro da fé aceita os sucedidos de cada momento não é coisa de ordem a chamar a atenção de ninguém sobre ele. Seria antes alguém muito disposto ao proveito de seus dias.

O cavaleiro da resignação, ao lhe falhar a coragem da fé, é um ser mais notável por manter nos olhos uma ânsia pelo infinito e nos pés uma inserção frágil no solo da realidade. Já o cavaleiro da fé os mantém na vida que leva. Fé não é uma emoção estética, mas algo muito mais elevado, exatamente por pressupor resignação; não se traduz em sentimentos histéricos, nada tem a ver com a imediata inclinação do coração, mas com a entrega ao paradoxo da existência. Na fé não existe mediação, diz ele, desta forma distanciando-se de Hegel que pensava o ético como o universal. Na fé há uma suspensão teleológica do ético, pois o telos da fé direciona o homem para fora do acordo universal e o coloca em obrigação absoluta perante Deus. Na tragédia o herói evolui dentro dos parâmetros de uma ética universal, mas na fé a pessoa treme e se aterroriza perante a exposição desamparada de sua singularidade. Abraão não é um herói trágico. Ou bem ele é um assassino, ou é um homem de fé. Ou merece o lugar que lhe atribuímos de pai da fé, e temos razão de venerá-lo, ou ele é um criminoso e como tal merece ser julgado.

Enfim, no conjunto do exame da questão da fé a que Kierkegaard, pensador situado no centro do século XIX, se entrega com paixão, formação filosófica e rigor teológico, está o ponto que ele quer marcar como seu: em desacordo com uma época em que, com excessiva facilidade, se fala em ir além – além da dúvida de Descartes, além da ignorância de Sócrates, além da fé considerada como uma doença de infância do pensamento – ele sustenta que permanecer em posição de fé já seria trabalho suficiente para toda uma vida.

Hannay, por sua vez, toma a crítica que Kierkegaard dirige à facilidade de saber do século XIX e a transporta para o contexto do mundo atual, através de uma reflexão na qual questiona a consciência contemporânea. Ao relembrar muito oportunamente o quanto a canção de Bob Dylan, Highway 61, condensa um espírito de nossa época, ele vê a consciência atual como propensa a desentender o modelo da fé contido na história de Abraão e a tomá-lo "como uma parábola antissocial de destruição e exercício de poder bruto" (Hannay, 1985, p. 7). Tal como na canção de Bob Dylan, parece que fé, obediência e compaixão se descaracterizam para a consciência contemporânea, e são desentendidas como arbitrariedade e intimidação.

God said to Abraham, go kill me a son.
Abe said man, you must be putting me on.

…………………………………………….

God said you can do what you want Abe,
But next time you see me comin' you'd better run.
Well Abe said, where you want this killin' done?
God said do it in Highway 611.

Para passarmos agora ao contexto da psicanálise, importa marcar que a mística e a teologia tomam a fé por sua extremidade avançada, a da convicção da presença de Deus, ao passo que a experiência clínica psicanalítica vê, ou intui, sua presença nas formas de um estabelecimento inicial. Nós psicanalistas trabalhamos na sala das máquinas, ou em plataformas submarinas, e não temos este contato arejado, arrebatador com o infinito. Estamos ocupados nas entranhas, no engendramento da tolerância à fé, estamos metidos com o analisando no trabalho de parir a fé enquanto atitude vivida. Como é característico de nosso ofício, estamos indissoluvelmente atados ao fazer. Penso que a contribuição que a psicanálise poderia trazer para o tema da fé estaria no tipo de saber que provém da clínica. Temos algo a dizer sobre o engendramento desta possibilidade, sobre uma pequena diferença que abre para uma pessoa perspectivas de compreensão sobre quem ela é e de uso de si mesma que até então se revelavam impossíveis.

Homem adulto procurou análise fora de qualquer convicção pessoal pelo método. O que o trazia era o desespero pela paralisia que se alastrava por todos os setores de sua vida e ameaçava perigosamente invadir sua capacidade de trabalhar, último reduto de uma normalidade que até ali ele se obstinara em se atribuir.

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O analisando organizou-se em extrema observação defensiva dos movimentos da analista, encurralou-me debaixo de marcação cerrada. Quando encontro o que dizer, minha fala sai de mim como algo que vale a pena comunicar e sofre no caminho até ele o efeito de uma câmara de ressonância ao contrário: não reverbera, desarticula-se e perde a força de impressionar. Como se eu tentasse ser ouvida de dentro de um quarto de borracha espessa que amortecesse tudo: golpes, sons, ímpetos, ideias. Sofro a força bruta da desmentalização que ele exerce: experimento amortecimento, rendição, "estupidificação". Quando consigo me desvencilhar e reencontro compaixão, ele titubeia na armadura, para em seguida apoderar-se das qualidades de prazer e compaixão que experimento ao estar com ele e deformá-las em produções pontificantes de suma banalização do tipo autoajuda com as quais me entope. Ambos sabemos que ele está mentindo. Tenho para mim que em algum nível fora de meu alcance ele faz algum uso positivo da vitalidade da qual defrauda minhas intervenções, ao mesmo tempo em que me dá a ver a matéria morta, o refugo da transformação que opera sobre a matéria viva que poderia atingi-lo. Penso que é com esse refugo que ele mantém e reforça a espessa camada da "borracha" que o isola. Resulta uma situação em que ele sabe tudo, já fez de tudo e isto não lhe serve para nada.

Este analisando conseguiu ir para o divã após dois anos e meio de trabalho, e a maneira como chegou a isto traz uma ilustração à questão da fé.

Confrontado em nova espiral com a falência de seus métodos, ele quer abandonar tudo e morrer. Vivemos tempos dificílimos até que um dia, com a emoção avassaladora de uma criação, lhe ocorre uma ideia: vai viver. Vai se fazer tatuar, enrolada no braço, uma série de signos, de cunho tão pessoal que é quase secreto, nos quais gravará para sempre a presença de cada pessoa ou atividade que até hoje o ajudaram a viver. Eles serão sua proteção indelével. Num gesto de amor e confiança me permite conhecê-los. Ele os descreve minuciosamente, tem prazer em fazer isto. O último que surge é o que ele dedica à sua análise.

Eu o escuto em silêncio, meus olhos marejam, ele me olha, cai também em silêncio. Tomado de sono irreprimível ele boceja e cabeceia na minha frente. Abandona a sessão.

Na sessão seguinte diz que agora quer ir para o divã. Ele não precisou concretizar a tatuagem.

Bion admite como um postulado básico essencial à ciência, à religião e à psicanálise, que há uma dimensão do real, reconhecida e sentida pelo homem, que não se presta a ser conhecida. Ele considera possível uma situação na qual as transformações em conhecimento (K) se transformam por sua vez na plataforma para um salto que abandona o universo de regência do conhecimento e liberta a intuição da dimensão real. Neste estado, que ele simboliza como de K➔O, o real do ser da pessoa que faz esta transformação vibra em uníssono com a dimensão do real que lhe é inapreensível por via do conhecimento. Penso que o caráter pontual e transitório deste estado fica bem expresso na terminologia que ele escolheu para designá-lo: a pessoa está sendo seu real, em consonância com O (incognoscível).

Quando ele preconiza que o analista exerça ativa disciplina sobre si para abandonar a apreensão dos objetos no campo sensorial de memória/desejo/compreensão, ele propõe que o estado de mente indicado pela palavra é o estado que possibilita o contato com o incognoscível (O) de "todo e qualquer objeto do qual a personalidade possa estar ciente" (Bion, 1970/1988, p. 31). Entendo que assim ele indica a passagem necessária para que todo e qualquer objeto seja apreendido num outro campo, aquele no qual cada objeto é pura imaterialidade, é abertura para a dimensão não sensorial e não cognoscível.

Ao abandono do universo finito, regido pelo conhecimento, Bion confere o estatuto de um ato, possível pela fé: ato de fé. Escolha que não poderia deixar de evocar Freud (1926/1964), ao conferir o mesmo estatuto ao ato de nascimento como momento de ruptura e de continuidade (cesura) com a vida pré-natal. São conhecidos os desenvolvimentos que Bion (1975/1980) deu ao conceito de cesura, considerando-a como o lugar onde se dá a experiência de análise. Longe de acenar para qualquer descaracterização da psicanálise, fé é a atitude que sustenta a teoria e a prática da psicanálise em seu devido lugar: lugar de passagem por excelência, lugar de trânsito e de mudança de vértice. O ato de fé faz diferença na disposição mental de se manter no espaço da cesura.

Por que teria Bion dado à fé o estatuto de um ato, e não de um vínculo? Minha tentativa de pensar sobre isto me leva a observar que ele usa vínculo para se referir à natureza da relação mantida entre partes que se apresentam na relação, seja sob a forma de pessoa, de personalidade, ou de partes exteriorizadas ou interiorizadas de uma mente. Vínculo se aplica à relação que pode ser captada pelos sentidos. Ao passo que fé, como ato, refere-se também à natureza de uma relação, mas na qual só um dos lados se apresenta sob forma sensível. O outro lado não se personifica nem se personaliza, não pode ser apreendido como objeto. O único lado possível é abandonar-se a penetrar a cesura, na fé de que há amparo, sem que, no entanto, nada o indique ao conhecimento. Bion diz que "o ato de fé tem como pano de fundo alguma coisa que é inconsciente e desconhecida porque não aconteceu" (1970/1988, p. 35).

Ao alinhar a psicanálise pelo vértice de O, Bion reafirma a especificidade que lhe vem desde Freud de não fechar a mente em seus aspectos materiais. Sem a abertura para o infinito, a psicanálise não teria como ser o que é: um instrumento de sondagem da imensidão do multiverso mental. Referir-se a O, em atitude de fé, tem imediata consequência sobre o campo da verdade na sessão e, por extensão, na psicanálise. O vértice de O a coloca a um só tempo como possível de se manifestar e ser captada na experiência emocional da sessão, e como inatingível e inesgotável. Coloca-a devidamente como o paradoxo que como psicanalistas nos esforçamos para conservar como tal. Eigen diz que Bion vê fé "não apenas como a condição de possibilidade da psicanálise, mas como seu princípio metodológico primário" (1981, p. 423).

Tomo a ilustração clínica no momento em que o analisando se debate em ódio contra a dor que impregna seu viver e me toma como testemunha, a cada sessão, de que melhor seria dar um fim a tudo. Sempre trabalhamos, é certo, mas é evidente, por ser incompatível com os princípios básicos que ali nos sustentam, que jamais o segurei. O que se passava com ele podia ser acompanhado, mais mal do que bem, no campo interpessoal; mas não fosse a análise esta proposta especial de relação que sabe e sustenta que a pessoa é mais do que cabe em seu conhecimento, é mais do que realiza no campo interpessoal, sucumbiríamos ambos à angústia que a situação gerava. Como não sucumbiríamos a medidas reasseguradoras? Mas o que a psicanálise sustenta é que a pessoa é mais do que qualquer apreensão sensorial de si indica.

Quando este homem diz que vai viver, eu entendo que participo de um acontecimento ímpar, e assim o descrevo: até então não lhe tinha sido possível abdicar da posição de autoengendramento. Até ali ele insistia que haveria de ser aquele que suas falsificações, alucinações e mentiras proclamavam. Até ali ele viveu confinado numa finitude pequena que tinha o apreciável mérito de manter em suas mãos o controle sobre quem ele era. Sua relação com um criador (Outro) exterior a si próprio cabia na caracterização que Kierkegaard faz do paganismo, por ser direta: ele conhecia os desígnios do deus sobre si, ele conhecia seu destino já traçado em mapa astral que se puxa da internet. Mas agora o panorama muda: ele quer me dizer que vai viver. Abre-se para ele a dimensão do infinito insaturável. Desobstruiu-se, e o espírito concebe a ideia tatuagem, companhia intangível na tremenda aventura de já não saber mais de si.

Como se vê, passamos para a subjetividade, de acesso unicamente indireto através do símbolo. E, ponto que enfatizo, ele está só. Não ignoro que este momento dele acontece dentro de uma relação especial com a analista, resulta do envolvimento e da participação de ambos. Mas o ato de se desprender da organização que até ali o regeu e expor-se ao desabrigo de sua proteção é exclusivamente seu. Do ponto de vista que o regeu até ali, estaria louco ao abrir mão da única segurança que tem? E o que tem ele de outro ponto de vista? Nada além de um chamado que sente e reconhece que não emana do que até ali foi vigente. Se ele não é mais aquele que inventa seu ser, quem é ele nesse momento? Um quase nada, um ser de projeto, uma promessa de ser que não está concretizada, nem sequer disponível, apenas uma intuição de um vir a ser. Ele dá o salto de finito para infinito e o que o sustenta, embora seja conseguido através do que ele se dispõe a viver com a analista, não pode ser dito vínculo (L-H-K), transcende a relação com a analista, não é com a analista. E como não há possibilidade de amarração, pois deus não se personifica e o infinito não se personaliza, como não há qualquer presença sensível no outro lado da relação, temos que dizer que é um ato, em contraposição ao que conceituaríamos como vínculo, puramente amparado pela . Tudo quanto há é uma preconcepção de si que o solta de seus suportes habituais.

Cabe também lembrar aqui, para acompanhar o transe da pessoa que vive o paradoxo dessa passagem, que para Bion o ato de fé não tem como ocupar lugar na Grade, nem mesmo na coluna seis, pois "não pertence ao sistema ± K, mas ao sistema O" (1970/1988, p. 35). A partir da clínica penso que a natureza do ato é tornar-se cônscio do real: o real de nascer, o real de morrer, o real de ser. A ninguém é dado não querer saber do real, sem com isso deixar de ser real. Há um real do analisando que nada tem a ver com suas invenções sobre si, assim como há um real de Isaac que não pertence a Abraão. O ato não é de conhecimento do real, e sim de tornar-se cônscio da dimensão incognoscível. A pessoa está só, abandonou o campo do conhecimento e, no entanto, ela se lança. Toma impulso numa preconcepção que a obriga a um "pró-jeto". Ela só sabe que é o que deve fazer, mas esse dever é um absurdo sob o prisma que a orientou até então. Ela o faz na fé de que será possível fazê-lo, de que esta entrega irrestrita lhe devolve a existência, agora na base apropriada. pode ser um bom nome para enfeixar esse misto de vivências que acompanham a entrada no paradoxo.

Bion preconiza ao analista o exercício ativo de despojamento de qualquer amarra sensual para abrir-se em receptividade ao vértice psicanalítico (O): "O analista tem que se tornar infinito, por suspensão de memória, desejo, entendimento" (1970/1988, p. 46). Ele diz que só nos atos de fé se tem acesso à profundidade total e à riqueza deste estado de receptividade. Penso que o analisando da ilustração clínica se encontra em situação equivalente de despojamento. Penso que o ato de fé emana da necessidade de manter-se no paradoxo da subjetividade. Cada um o desempenha no patamar em que se encontra, sem que esta contingência afete a essência do ato. Acompanhamos com minúcia na clínica que os atos de passagem se dão na beira do abismo de se perder. A agonia da vivência revela que a quebra da onipotência é vivida como uma catástrofe: estarmos cônscios da alteridade que nos traz à nossa própria existência, e nela nos mantém, é choque absoluto em algum nível nosso, sempre.

Esta passagem catastrófica de ser inverídico para ser de verdade corresponde a uma alteração subjetiva da maior importância que se reflete imediatamente na hipótese definidora do analisando sobre quem ele seja. Ela muda o estatuto de seu ser. A relação consigo próprio pode agora incluir apreço, respeito e amor por este que ele é, sem que isto esteja baseado em mentiras. Há uma recuperação narcísica advinda de seu ato, que vejo como a chave para abrandamento de inveja e avidez. Ele se libera e libera seus objetos para relações mais proveitosas. Não aconteceu nenhum milagre nessa análise, continuamos ganhando a vida com o suor do rosto e parindo em dores num lento e incerto caminhar. Não obstante, não só com este analisando, mas com outros que de igual modo viveram o transe da entrega ao paradoxo, a partir daí se torna impossível não passar por extensa mudança. Mudar dá medo, dá trabalho e traz problemas, mas a pessoa não tem mais como sopitar o impulso de realizar seu ser.

Na relação de objeto o analisando me toma como o objeto que lhe for necessário. Mas isto é a contraparte existencial de sua resposta solitária ao mistério que o interroga. Assim como o que eu vivo com ele no campo relacional é a contraparte existencial de minha resposta solitária ao mistério que me interroga. Se, nos pobres limites da nossa relação, visamos nos manter abertos ao "infinito de nós dois", o ato de fé faz diferença.

Se a psicanálise avança com o uso dos meios que lhe são próprios na compreensão daquilo com que lida, isto será sempre um trabalho na fronteira. Se ela explora, sonda e conhece seus limites progressivamente melhor, se ela se dá melhor conta de si e de sua função, ela se habilita sempre mais ao proveito de uma conversa com outras abordagens do humano. Como pessoas que, vindas por caminhos próprios duramente desbravados, sentam e conversam na fímbria do espaço insondável tanto a uma quanto à outra. De minha parte, emprego meus esforços em manter o silêncio que me permita ouvi-las.

 

Referências

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Endereço para correspondência
MARTHA PRADA E SILVA
Rua Eduardo Lane, 36/12
13073-002 – Campinas - SP
tel.: 19 3212-3684
E-mail: pradas@dglnet.com.br

Recebido: 01/04/2013
Aceito: 17/05/2013

 

 

* Psicanalista. Membro efetivo do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas). Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Deus disse, vai Abraão e me mata um filho.
Qual é cara, falou Abe, cê tá a fim de briga?
.......................................................
Deus disse fica na tua Abe,
Mas se a gente se cruzar por aí, você trate de correr.
Tá, disse Abe, onde você quer que eu faça o serviço?
Deus disse, faz na rodovia 61.
(tradução livre nossa)