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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

ARTIGOS

 

O rap, a revolução e a educação – do Bronx à Primavera Árabe1

 

Rap, revolution and education – from Bronx to Arab Spring

 

 

Mônica Teixeira do Amaral*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão sobre o mundo globalizado, procurando delinear conexões entre a diáspora africana na modernidade e os movimentos de protesto que se espalharam por países e regiões periféricas, a partir de estudos sobre o movimento hip-hop e a formação da juventude moradora das periferias. Curiosamente, na sua maioria, estes movimentos fizeram-se acompanhar de músicas urbanas de protesto que eram embaladas nas ruas em meio às manifestações, com destaque para o estilo rap. A leitura de autores norte-americanos e brasileiros a propósito da formação das periferias das metrópoles, e de estudiosos de outras partes do mundo sobre o papel do movimento hip-hop na formação da juventude moradora das periferias, foi fundamental para a presente reflexão. Uma pesquisa realizada com jovens de uma região periférica da cidade de São Paulo, envolvendo a música e a composição de letras de rap, propiciou um novo olhar para uma educação voltada à diversidade.

Palavras-chave: Rap, Pedagogia crítica, Resistência e indignação, Transformação social.


ABSTRACT

This article proposes a reflection about the globalized world, searching to outline connections between the African diaspora in modernity and the movements of protest which were spread over the countries and peripheral regions as based on studies about the hip-hop movement and the formation of the youth living in the outskirts. Curiously, most of these moments were followed by urban songs of protest sung in the streets amid the manifestations, especially with the rap style. For the present reflection it was fundamental to read the North-American and Brazilian writers on the formation of metropolis outskirts and studious from other parts of the world about the role of the hip-hop movement for the formation of the youth living in the outskirts. A research undertaken with the young population from a peripheral region of São Paulo city, involving music and the composition of rap rhymes, provided a new view to education turned to diversity.

Keywords: Rap, Critical pedagogy, Resistance and indignation, Social transformation.


 

 

Introdução

Inspirados por nossa pesquisa de campo que envolve culturas contemporâneas como o rap, o break e o grafite, concebidos como elementos potencializadores de expressão estética e de crítica social dos jovens habitantes do Capão Redondo, em São Paulo, propomo-nos a apresentar uma reflexão a respeito da importância do movimento hip-hop no mundo contemporâneo, não apenas como movimento estético com forte conotação política, mas também como estratégia fundamental de formação para a "juventude periférica", que, no caso do Brasil, encontra-se, ainda hoje, à margem do projeto civilizatório.

Como nos recorda Renato Ortiz, em seu livro A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural (2006), o Brasil deixou, há muito, de cumprir seu papel civilizador, uma vez que o projeto de modernização brasileira se deu combinado com uma democracia restrita, sem estender o direito de cidadania a toda a população e cuja proposta de transformação capitalista serviu aos direitos estamentais da burguesia. Na verdade, o autor retoma aqui as teses de Florestan Fernandes, em seu livro A revolução burguesa no Brasil (1975), demonstrando sua atualidade. Na mesma época, Lúcio Kowaric coordenou a coletânea São Paulo: crescimento e pobreza (1976), onde deixava claro o modo como as periferias de grandes cidades como São Paulo cresciam desordenadamente e sem nenhuma assistência do Estado. Embora tenham se passado mais de 30 anos, foi uma época marcada pelo desemprego e pela recessão, de forte impacto mundial. Um contexto marcado pelo não emprego das camadas mais jovens, ou, como é comum no Brasil, pelo crescimento do mercado informal, que, como afirmam Vera Silva Telles e Daniel Veloso Hirata (2011), obrigam o trabalhador a transitar entre o mercado legal e o ilegal. E é nesse contexto que se insere a produção cultural do movimento hip-hop.

Apoiando-nos em Carril (2006), recorremos ao termo hiperperiferia para designar o modo como a população pobre e negra – afrodescendente e afro-indígena –, e depois nordestina, acabou sendo expulsa para os fundões da cidade, no caso, para os confins da Zona Sul de São Paulo. Esses migrantes, segundo Carril (2006), tiveram suas "raízes partidas" e reconstruídas nos bairros de periferia, na luta por moradia, educação, condições sanitárias decentes, enfim, pelo direito a uma vida digna. Ocorre que o desemprego é também um "desenraizamento de segundo grau", conforme assinalado por Bosi (1987). E o rap e o movimento hip-hop, como um todo, nasceram dos reclamos de uma juventude marcada tanto por essa desterritorialização como pelo "não emprego". O hip-hop, com seu apelo universal, cada vez mais pautado pelo multiculturalismo e pelo hibridismo, adquire um papel essencial na formação dos jovens, auxiliando-os a compreender o mundo em que vivem. Além de ter gerado muitas ocupações, criou uma forma de comunicação entre culturas distintas e, com isso, recriou novas condições para o jovem morador das periferias das metrópoles de construção de suas identidades territorial, étnica e social.

Subjacente a esta reflexão, há todo um debate feito por alguns dos autores americanos pesquisados por nós – como Duncan-Andrade e Morrel (2008) e Osumaré (2007), dentre outros –, que têm se debruçado sobre o hip-hop como fenômeno da cultura urbana, com forte enraizamento na tradição afro-americana da produção musical e como estratégia fundamental de promoção de cultura e educação na periferia dos grandes centros urbanos.

Iniciamos esta discussão a partir de uma reflexão a respeito das tendências excludentes do mundo globalizado e um possível ponto crítico que se anuncia, tendo à sua frente revoltas nas periferias das metrópoles na Europa e nos EUA e revoluções no mundo árabe, muitas delas acompanhadas de músicas de protesto no estilo rap. O papel dos jovens e de suas culturas de resistência tem sido apontado como fundamental em tais processos de transformação social. Ao mesmo tempo, em países como o nosso, a guerra não declarada nas periferias se faz sentir também nas letras e ritmos de protesto do rap e do movimento hip-hop, nos quais identificamos um potencial bastante enriquecedor de formação e de educação crítica para os jovens urbanos.

 

A crise dos limites no mundo globalizado: como ficam as novas gerações?

Logo após o fogo e a onda de saques que se alastraram pelas ruas dos subúrbios de Londres em 2011, desencadeados aparentemente pela morte de um jovem negro pela polícia, a socióloga holandesa, naturalizada americana, Saskia Sassen, estudiosa da globalização, em entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo (Sassen, 2011), comenta que "Chegamos a um tipping point", querendo dizer com isto que havíamos chegado a um ponto crítico. A reportagem pretendia relacionar a revolta em Londres às revoluções no norte da África, às lutas sangrentas na Síria, às manifestações em Tel-Aviv por aluguéis mais baixos e educação gratuita, até as manifestações dos jovens no Chile pela gratuidade do ensino superior. E o interessante é que grande parte destas manifestações eram lideradas por jovens que, segundo a autora, tiveram seu futuro roubado pela economia global e pelo esgotamento dos canais de participação política, os quais se encontram, hoje, completamente limitados.

Embora as situações não sejam totalmente equiparáveis, uma vez que para determinadas parcelas da população as questões se colocam de modo mais crítico, a entrevistada sustenta que estávamos experimentando as consequências da "lógica excludente da globalização". Ela afirma que, ao longo dos últimos 30 anos, temos assistido, de um lado, à perda de renda de metade da população mundial e, de outro, a uma concentração de renda jamais vista na história. Com isso, a classe média empobreceu e os pobres ficaram mais pobres. E os ricos, mais ricos.

Embora as situações não sejam totalmente equiparáveis, uma vez que para determinadas parcelas da população as questões se colocam de modo mais crítico, a entrevistada sustenta que estávamos experimentando as consequências da "lógica excludente da globalização". Ela afirma que, ao longo dos últimos 30 anos, temos assistido, de um lado, à perda de renda de metade da população mundial e, de outro, a uma concentração de renda jamais vista na história. Com isso, a classe média empobreceu e os pobres ficaram mais pobres. E os ricos, mais ricos.

Desse modo, contrariamente ao que se veiculou na imprensa nacional brasileira, os distúrbios em Londres, muito parecidos com aqueles que vimos em Paris em 2009, lembram, segundo Sassen (2011), os levantes dos jovens americanos, negros e pobres nos anos 70, que, ao se verem excluídos diante da política recessiva adotada, passaram a quebrar tudo para se fazerem ouvir. Para a autora, a falta de emprego e o corte nos investimentos sociais foram no passado para os jovens negros americanos e estão sendo no presente para os jovens dos subúrbios de algumas cidades na Europa, o fator significativo para desencadear os protestos.

Outro ponto de contato entre as manifestações de protesto no passado nos EUA e hoje nos subúrbios europeus é que se viram acompanhadas por músicas de resistência e de protesto que clamavam e ainda clamam por liberdade e reconhecimento de seus direitos. Segundo Chang (2005), é possível delimitar de modo claro o período em que nasceu e se desenvolveu o movimento hip-hop: os descendentes afro-americanos que nasceram entre 1965 e 1984, cujas gerações foram marcadas, de um lado, pela luta pelos Direitos Civis e o assassinato de Malcom X e, de outro, pelo avanço global do hip-hop durante os governos Reagan e Bush, no auge das políticas recessivas implantadas naquele país. Africa Bambaataa, ativista do hip-hop, considerado como "afrofuturista", foi responsável pela fundação da Zulu Nation, organismo responsável inicialmente pela promoção da paz no Bronx, entre as gangues e entre estas e a polícia, deslocando esses movimentos de revolta para a produção de cultura, reunindo em um único movimento os quatro elementos do hip-hop – DJ, MC, break, grafite – e adicionando um quinto, o conhecimento dos fatos da vida do gueto. E depois, pela divulgação dessa cultura por todo o mundo.

Assim como ocorreu no passado, as revoluções da primavera no norte da África se viram embaladas por movimentos culturais de protesto. E, mais do que isso, se o rap do movimento hip-hop inaugurou o uso da mídia como forma de criar uma cultura de resistência e de protesto, o avanço das redes sociais se tornou fundamental para a série de revoluções desencadeadas no mundo árabe. Na Tunísia, com a derrocada do governo, movida pela luta contra o desemprego e a repressão, a cantora Emil MathLouthi canta seu Kelmti Horra, uma música de protesto que clama por liberdade de expressão. No Egito, o título de uma canção de Ramy Essam, Erhal ("Vai embora"), torna-se palavra de ordem em diversos países árabes. Durante os protestos da praça Thair, o rapper egípcio Mohammed El Deeb canta a revolta de seu povo. O "Dia de Fúria", que marcou oficialmente as revoltas na Líbia, foi celebrado pela música anônima Misrata, emprestando o nome da cidade que foi o marco da resistência anti-Kadafi. Ibn Thabit, nome de um poeta árabe do século 7, é o pseudônimo escolhido pelo rapper líbio para lançar suas músicas pelas redes sociais, onde divulgou o Apelo para a Juventude Árabe, contra o "ignorante coronel" (Torres, 2001).

E no Brasil? Não há jovens excluídos ou no mínimo insatisfeitos? Não há violência, nem "distúrbios suburbanos"? Em que terreno se produziu o hip-hop brasileiro?

É preciso salientar que uma pesquisa nacional sobre a violência realizada por Júlio Jacobo Waiselfisz, que foi publicada no livro Mapa da violência (2011), constatou que, em 2008, por exemplo, a violência, resultando em morte, atingiu 103% mais negros do que brancos. Embora esta diferença já existisse, há dez anos era de 20%. Estas são algumas das consequências nefastas que atingem cerca de 16,27 milhões de pessoas2, ou seja, 8,5% da população vivendo com uma renda média mensal de 70 reais por pessoa da família (Passarinho, 2011), a quem o Plano Nacional, lançado em seu primeiro ano de governo pela presidente Dilma para erradicar a extrema pobreza, pretendia atingir3.

Não podemos esquecer que a população de ascendência africana no país esteve sob o jugo da escravidão por mais de três séculos – de 1560 a 1888 –, sofrendo, em seguida à abolição, as consequências nefastas da exclusão do mercado de trabalho por mais 40 anos – de 1880 a 1930. Foi a época em que se implantou em toda a América Latina a política do "branqueamento" e se procedeu a uma verdadeira guerra à negritude (Andrews, 2007, pp. 151-186).

Segundo Andrews (2007), a resposta encontrada no final do século XIX e início do século XX pelas elites das nações latino-americanas, que acreditavam na superioridade branca considerando-a condição de modernização, era empreender um esforço "quixotesco" para transformar as sociedades racialmente mistas, predominantemente não-brancas, em "repúblicas brancas" (Andrews, 2007, pp. 152-153). Porém, sob a imagem de democracia racial, na verdade se escondiam ideias como as de Gobineau, que sustentava a ideia de superioridade racial como mote explicativo do domínio europeu sobre outros povos. Carone (2008), em seu artigo "Preconceito e discriminação racial", fala dos racistas brasileiros inspirados em Gobineau, que esteve no Brasil, em 1869:

Os racistas brasileiros do tempo do Segundo Império e da Primeira República, diante do fato irreversível da miscigenação, julgaram que a única saída para "limpar" ou "purificar a raça", seria intensificar a miscigenação a tal ponto que, no futuro, o negro, ou a "mancha negra" acabasse desaparecendo da população pela vitória do elemento branco. (Carone, 2008, p. 32).

O primeiro passo, nesse sentido, foi promover o financiamento da imigração de trabalhadores europeus para substituir a mão de obra escrava. Mas o branqueamento, que resultou em jogar no limbo uma massa de ex-escravos forros, também envolvia o "branqueamento estético e cultural". Além das proibições de toda e qualquer manifestação cultural de origem afro, procedeu-se a uma verdadeira reforma urbana em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, de caráter higienista, que, no início do século XX, expulsou os trabalhadores pobres – que habitavam cortiços (cabeças de porco) na região central dessas cidades, predominantemente afrodescendentes, mas também imigrantes europeus pobres – para as periferias, constituindo em São Paulo as hiperperiferias, e no Rio, cujo deslocamento se deu das docas para os morros, onde a população pobre enfrentava, e ainda enfrenta igualmente, condições insalubres de moradia, como a falta de luz, água, esgoto etc.

Depois de mais de um século de abolição da escravatura – a barbárie brasileira – sobre a qual se assentaram as bases da modernização no Brasil, deparamo-nos ainda hoje com as consequências desta estranha compatibilidade, conforme salientou muito bem Schwarz, "das aparências modernas com a permanência do substrato bárbaro" (1997, p. 97). A mentalidade escravocrata, patriarcal e conservadora permanece influindo até hoje nos rumos políticos e prioridades das políticas públicas. Enfim, o liberalismo só interessava a título de "ornamento" civilizatório.

Embora haja educadores como Celso Beisiegel que, em seu artigo "Educação e sociedade no Brasil após 1930" (1986), reconhece o avanço da democratização do ensino depois de 30, é preciso admitir que não foi sem dificuldades que isso aconteceu e de modo muito mais lento do que nos países do 1º Mundo. Mesmo com alguns avanços obtidos no campo educacional (verificados em termos de número de matriculados no ensino público), a realidade da periferia de São Paulo ou dos morros do Rio de Janeiro parece reeditar não apenas a situação vivida pelos jovens americanos pobres e negros nos anos 70, mas é fruto desse passado bárbaro, cujas consequências ainda não foram superadas, sobretudo no caso dos afrodescendentes.

Este quadro não é novo, como sustentou a socióloga Saskia Sassen (2011). Esta é uma realidade conhecida nas grandes cidades dos EUA, que, entre os anos 70 e 80 do século passado, com a especulação imobiliária e a política recessiva, viram crescer o desemprego e a miséria. E, como consequência, passaram a experimentar a violência entre as gangues e o tráfico de drogas. Ora, mas no Brasil de hoje, que aparentemente não se abala com a recessão mundial, ainda há miséria, violência e tráfico. Isso nos faz pensar que países como o nosso, mesmo encontrando-se mais fortalecido economicamente e havendo "universalizado" o ensino público, não está alheio à lógica excludente da globalização.

 

Para além da violência subjetiva dos atores sociais

Pelo que foi possível examinar até agora, diversos autores nos fazem suspeitar que a despeito da maior visibilidade da violência subjetiva dos atores, no caso a dos jovens das periferias das metrópoles (que pode se materializar no crime, no saque ou no terrorismo, em última instância), há outros fatores que a determinam. Ela repousa, segundo Slavoj Žižek (2008), sobre duas outras formas de violência objetiva: em primeiro lugar, existe a violência simbólica incorporada na linguagem e em suas formas de expressão, o que Heidegger chamou de "our house of being" (o ser que habito), que envolve, por exemplo, os discursos que fazem apelo ao ódio, ao racismo e toda forma de discriminação; em segundo lugar, a outra violência é sistêmica, se dá pelas consequências catastróficas do funcionamento de nossa economia e dos sistemas políticos.

Quando se fala de vandalismo de criminosos (como a imprensa e governo britânicos referiram-se ao levante dos excluídos dos bairros periféricos de Londres, em 2011), trata-se da violência subjetiva à qual se refere Žižek (2008), partindo-se do pressuposto de que esta se dê sobre um fundo de "nível zero de violência", como se fosse uma espécie de perturbação do estado normal e pacífico das coisas. Ocorre que, como bem salienta o autor, "a violência objetiva é precisamente a violência inerente a este estado 'normal' das coisas" (Žižek, 2008, p. 2). O autor salienta ainda que a violência objetiva só é invisível porque sustenta o nível zero contra o qual identificamos a violência subjetiva.

Queremos dizer com isto que toda e qualquer forma de violência, promovida por um indivíduo ou um grupo contra outros indivíduos, não pode ser analisado sem que se leve em consideração esse fundo histórico e social da formação da sociedade, além da necessidade de se ter um olhar atento para as dimensões identitárias da mesma, ou melhor, a interioridade do campo cultural e histórico de todo tecido social.

Por fim, há uma tese interessante sustentada por Žižek (2008), particularmente quando retoma as ideias de Alain Badiou (2003), segundo a qual o espaço social é progressivamente experienciado como "worldless" (sem mundo), contra o qual a única forma de resistência possível é por meio da "violência sem sentido" (Badiou citado por Žižek, 2008, p. 79). Ao mesmo tempo em que o mundo se globaliza, se "destotaliza" o sentido: emerge não uma verdade globalizada, mas uma verdade sem sentido, ou um "Real" (no sentido lacaniano) do mecanismo global.

Consideramos interessante, no entanto, que se pense sobre as consequências desse sentir-se em suspenso, no "sem mundo", tanto para aqueles que, há muito, não têm um chão que sinta como seu, como para as classes abastadas, que mesmo tendo onde morar, não conseguem se apropriar do mundo em que vivem.

 

O surgimento da linguagem combativa do rap do movimento hip-hop – que lugar ocupa nas mentes e corações dos renegados de hoje?

Ao lado do desemprego, do tráfico e da violência desencadeados nos bairros periféricos das metrópoles do mundo inteiro nesses últimos 30 anos, surgiu uma manifestação cultural juvenil, o hip-hop, capaz de "capturar esperanças coletivas e pesadelos, ambições e falhas daqueles descritos como pós-isso ou pós-aquilo" (Chang, 2005, p. 2). Jeff Chang, em seu livro Can't stop, won't stop (2005), no qual procura retratar exatamente essas três décadas que sucederam a luta pelos direitos civis nos EUA nos anos 60, salienta que a geração hiphopper, ao contrário do blues, que se desenvolveu sob condições opressivas de trabalho, representa um movimento cultural que se levanta sob a condição do "não-trabalho".

O final dos anos 70, aos quais a socióloga Saskia Sassen (2011) se refere, foi uma época de devastação e desolação para os jovens negros no Bronx, que resultou em uma verdadeira guerra contra a política recessiva implantada por Nixon e depois por Reagan, que transformou o Bronx do Sul em terra devastada pela pobreza e colapso social, como resultado de uma política de modernização da cidade e de especulação imobiliária, que depois expulsou os afrodescendentes para regiões mais distantes, como o Brooklin, o Queens e o Bronx do Norte.

Segundo Chang (2005), o ano de 1977 não foi apenas mais um verão, mas o ponto mais alto entre o assassinato, em fevereiro de 1965, de Malcom X, responsável por liderar as lutas em prol dos direitos civis dos negros, e o de Martin Luther King (assassinado em 1968), responsável pela derrubada das leis do segregacionismo, ao mesmo tempo em que se alastravam protestos da juventude negra contra a pobreza e por educação pelas ruas do Harlem e o chamado às armas do grupo de rappers Public Enemy. No dia 13 de julho de 1977, as luzes se apagaram, e em meio a um blackout, os comerciantes se armaram com medo de saques. Um grafiteiro escreveu que ali se encontrava uma oportunidade para se livrar daqueles que os exploravam e, ao mesmo tempo, de se unir, sem lutar uns contra os outros. Daí se sucederam 36 horas de luta, prisioneiros pondo fogo nas celas, o fogo se espalhando por vários lugares e as lojas sendo saqueadas. Por toda a cidade prevalecia um ar de decadência, mas como no Bronx do Sul não havia nada parecido, com tamanho grau de destruição. Chegou-se a dizer que o Bronx transformara-se em uma verdadeira Necrópolis – a cidade da morte. Quer dizer, foi instaurada uma espécie de política de encolhimento do bairro: todos os serviços, como polícia, serviços sanitários, saúde, transporte e, por fim, a educação, foram sendo retirados, até que as pessoas foram obrigadas também a deixar o bairro, sob o risco de serem deixadas para trás.

A devastação experimentada no Bronx e a expulsão de inúmeras famílias para regiões cada vez mais distantes do centro assemelham-se em muitos aspectos à expulsão para regiões periféricas das metrópoles, onde não havia nenhuma infraestrutura, dos afrodescendentes no final do Brasil Colônia e início da República, assim como de imigrantes pobres e, depois da década de 50, de nordestinos que vieram "participar" do novo avanço industrial na região sudeste.

Lourdes Carril, como salientamos anteriormente, analisa a questão da territorialidade urbana estabelecida em "metrópoles segregadas" como São Paulo, onde foram constituídas verdadeiras "hiperperiferias", como a do Capão Redondo, do Real Parque e do Jardim Panorama, ao lado de bairros luxuosos como Morumbi. Estes bairros reproduzem as relações entre a Senzala e a Casa-Grande, estendendo as relações de desigualdade e de opressão entre o antigo senhorio com direito à propriedade, o trabalhador escravo, destituído de direitos, e os trabalhadores pobres assalariados, que eram e continuam sendo em grande parte privados de respeitabilidade e tratamento digno, sendo obrigados a buscar proteção em relações de favor, de cunho clientelista.

No entanto, assim como no Bronx, surgiu nas metrópoles brasileiras, nesse mesmo território segregado, o rap, como uma linguagem capaz de romper com a submissão costumeira do "homem cordial"4, ao traduzir o desenraizamento a que foram submetidos tanto os afrodescendentes quanto os migrantes, que, segundo a autora, tiveram suas "raízes partidas" e reconstruídas nos bairros de periferia, na luta por moradia, educação, condições sanitárias decentes, enfim, pelo direito a uma vida digna. Ocorre que o desemprego é também um "desenraizamento de segundo grau", conforme assinalado por Bosi (1987). E o rap e o movimento hip-hop como um todo nasceram dos reclamos de uma juventude marcada pelo "não emprego", cuja única propriedade reduzia-se a ter "identidade", daí a necessidade de reconhecimento, de ser ouvida e de visibilidade (o que verificamos nos grafites espalhados pela cidade de São Paulo, por exemplo, como nos vagões de metrô de Nova Iorque nos anos 70).

A menção aos quilombos no rap brasileiro põe em ação o que Béthune chamou de "telescopia histórica" (Béthune, 2003): atualizar no presente um clamor do passado, ou seja, o desejo de liberdade e de reconhecimento que hoje se traduz pelo caráter crítico-destrutivo de suas letras e de afirmação étnico-social, denunciando a desigualdade e exigindo tudo aquilo que vem sendo negado ao povo brasileiro, particularmente aos afrodescendentes. Um fenômeno da cultura que em sua intersecção local com a ordem mundial, como salienta Carril, "insere-se em uma dimensão urbana, contraditória, desagregadora e de escassez, aproximando São Paulo de outras metrópoles, como Lisboa, Paris ou Chicago, no que diz respeito à segregação espacial e urbana" (Carril, 2006, p. 24). E, desse modo, permite ressignificar a identidade, a cultura e a territorialidade dos renegados desse mundo globalizado.

 

O hip-hop e a educação: como a música e a história da diáspora se entrelaçam no coração dos jovens da periferia de São Paulo

Questões como essas relativas à história da formação étnico-social do povo brasileiro e de sua cultura multifacetada, em particular daqueles que se viram obrigados a construir suas habitações em condições bastante precárias, constituindo o que se chama hoje de hiperperiferia de metrópoles como São Paulo, foram amplamente discutidas em oficinas desenvolvidas por meu grupo de pesquisa na ONG Casa do Zezinho, com jovens moradores do Capão Redondo, Parque Sto. Antônio e outros bairros adjacentes da Zona Sul de São Paulo, atendidos por esta instituição.

O momento do trabalho a que faço menção refere-se a uma das oficinas realizadas por nossa equipe de pesquisa, que denominamos "O rap e o repente: uma criação poético-musical entre jovens da periferia de São Paulo", como parte de um projeto de âmbito maior na linha de Políticas Públicas (FAPESP- 2011/2013), coordenado por mim, em parceria com a ONG Casa do Zezinho. Esta ONG acolheu o nosso projeto tendo em vista o reconhecimento do apelo exercido pelo rap e o movimento hip-hop junto aos jovens atendidos pela Casa. O trabalho envolveu intervenções conjuntas semanais junto a adolescentes, de 13 a 16 anos, que cursavam a 7ª e a 8ª séries do ensino fundamental e que frequentavam a ONG Casa do Zezinho fora do período de aulas.

Dentre seus objetivos, esta pesquisa pretendeu retomar aspectos histórico-culturais dos afrodescendentes junto a jovens moradores da periferia de metrópoles como São Paulo, e analisar não apenas sua participação na construção da identidade dos afrodescendentes da região, como também acompanhar as incidências do contato com esta história passada, relegada ao esquecimento, em seus modos de se recriar e de produzir cultura, visualizando, assim, possibilidades distintas das que estão acostumados a experienciar.

Basta verificarmos o conteúdo de letras como a que segue logo abaixo, em que se mesclam a denúncia do abandono pelo Estado brasileiro a que estão sujeitas as pessoas pobres, particularmente os afrodescendentes, e o preconceito que recai sobre eles:

Os negros estão cansados
De viver em buracos
Essas famílias precisam ser respeitadas
A prefeitura não quer saber de nada...

E assim deram corpo à ideia sustentada por um dos jovens com muita perspicácia em uma de nossas discussões a respeito da história de nossos afrodescendentes, ou seja, de como o rap retomava este passado no presente: "O rap é o portal do sofrimento do negro, do sujeito que vive na favela!"

A partir da realização de tais atividades, além de debates e criações artísticas, foi-se buscando o desenvolvimento com os alunos de um potencial crítico, a fim de lhes permitir ressignificar o presente e visualizar novas possibilidades de reinvenção de si mesmos e de toda uma geração de afrodescendentes.

 

A título de conclusão

Consideramos, nesse sentido, que um bom "antídoto" à violência desencadeada ao longo desses últimos 30 anos nos subúrbios de metrópoles, como Nova Iorque, Paris, Londres, ou aquela que se verifica no confronto entre o tráfico e a polícia em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, é a escuta dos reclamos dos jovens pobres, negros e de outras etnias que têm sofrido com a lógica excludente da globalização e que tendem a fazer implodir, por meio de suas ações e atuações, os outros níveis de violência mencionados por Žižek (2008) – a violência sistêmica, apontando as contradições da sociedade, e a simbólica, ao denunciarem todo tipo de preconceito e discriminação –, seja com suas manifestações de rua, mais ou menos violentas, seja por meio de suas músicas de protesto.

A conclusão à qual podemos chegar, foi que o trabalho desenvolvido nas oficinas realizadas em parceria com a ONG Casa do Zezinho representa uma proposta pioneira no Brasil, no sentido de se propor a pensar uma educação inspirada pela filosofia do movimento hip-hop, criando o que alguns autores americanos chamam de "pedagogia da indignação" (Duncan-Andrade & Morrel, 2008), ou uma "pedagogia culturalmente relevante", e não mais como Paulo Freire pensara inicialmente tratar-se de uma "pedagogia do oprimido".

Além do aspecto político, há a dimensão estética que procuramos desenvolver – tanto nas oficinas de rap e repente, quanto nas de improvisação –, sempre atentos à provocação de uma escuta e de uma sensibilização, que poderíamos chamar de estética e psíquica, uma vez que ao provocarmos estranhamento pela via sonora, histórica e poética, estávamos atingindo camadas mais profundas do inconsciente de jovens, educadores e pesquisadores. E ao romper com ideias e gostos incutidas pela indústria cultural, provocamos também rupturas nas formas dominantes de pensar o trabalho com as classes trabalhadoras, suas famílias e seus filhos.

O hip-hop, como nos foi possível depreender particularmente da leitura da obra de Osumaré (2007), sofre de um dilema inexorável e seus rumos encontram-se atravessados por ele – entre o compromisso com a comunidade, sem o qual ele não sobrevive como arte e cultura de rua, e o mercado, que exige maior diálogo com outras culturas e sons aceitos pela indústria cultural e a população não periférica.

O trabalho de formação dos jovens da periferia de São Paulo, desenvolvido por nós, no sentido contrário ao apagamento dos vestígios da memória individual e coletiva – singular e universal –, permitiu que se liberasse o pensamento reflexivo e, com isso, que se revertesse o espelhamento invertido no campo subjetivo da violência objetiva que pesa sobre eles, à qual se cola outra ordem de violência: aquela empreendida por projetos sociais que pretendem formar consciências e corpos "domesticados" para o mercado global.

 

Referências

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Endereço para correspondência
MÔNICA TEIXEIRA DO AMARAL
Faculdade de Educação da USP
Av. da Universidade, 308 – Bloco A – sala 228
05508-040 – São Paulo – SP
tel.: 11 3662-1057
E-mail: monicagta@hotmail.com

Recebido: 08/04/2013
Aceito: 07/06/2013

 

 

* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e docente da graduação e pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
1 Esta reflexão fez parte de um trabalho apresentado em meu breve estágio de pós-doutorado realizado em janeiro de 2012 em Nova Iorque, junto ao HIP-HOP Education Center, ligado à NYU, como parte do Projeto de Políticas Públicas que coordeno, sob o título: Rappers, os novos mensageiros urbanos na periferia de São Paulo: a contestação estético-musical que emancipa e educa (FAPESP, 2011-2013).
2 O Brasil possui a quinta maior população do mundo e chegou, em novembro de 2010, a 190.732.694 de habitantes, de acordo com o censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
3 A identificação de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza foi feita com base no levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em maio de 2011, para orientar o programa "Brasil sem Miséria", que seria lançado em seguida pela presidente Dilma Rousseff. Para tanto, levou-se em consideração a renda (R$ 70 per capita) e outras condições, como a existência de banheiros nas casas, acesso à rede de esgoto e água e também energia elétrica (Passarinho, 2011).
4 O "homem cordial", marcado por relações de simpatia, com predomínio "aparente" da afetividade, resulta, de acordo com Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro, Raízes do Brasil, da tradição familista e patriarcal da sociedade brasileira e de sua extensão – com suas formas de autoridade, intimidade e informalidade – à esfera pública. Tais características dificultaram o desenvolvimento de relações impessoais na relação com o Estado, gerando um desequilíbrio social nas grandes cidades.