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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

RESENHAS

 

Envelhescência

 

 

Mirian Malzyner*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Soares, Sylvia S. G. de S. Envelhescência. Um fenômeno da modernidade à luz da psicanálise. São Paulo: Editora Escuta, 2012. 216 p.

 

Li o livro Envelhescência com agrado e interesse. Penso que é um tema que estimula em todos nós a vontade de trocar ideias e a curiosidade. A passagem do tempo, a proximidade da morte, as limitações do corpo – mais cedo ou mais tarde, todos estaremos lidando com essas questões que, num sentido amplo, nos colocam frente ao próprio sentido da vida. Além disso, é fato que hoje em dia vive-se mais e a vida do idoso torna-se uma questão importante no mundo atual.

Na clínica, encontramos pessoas que muito precocemente percebem a passagem do tempo e a finitude da vida, desenvolvendo um olhar de colorido depressivo (que busca integração dos aspectos de vida e de morte), e nem sempre encontram interlocução. Eu chamo essas pessoas de "pequenos filósofos". Esses "pequenos filósofos" precisam esperar para desenvolver recursos egoicos para lidar com percepções tão agudas da passagem do tempo. Podem também em algum momento encontrar ajuda num analista sensível, ou ainda buscar diálogo na literatura, na filosofia, nas artes em geral, na ciência.

As questões existenciais incomodam e, nem sempre, o meio pode acolher e dar a devida atenção, pois, na maior parte das vezes, a tendência dominante é evitar o tema e priorizar o desenvolvimento pelo prisma das conquistas, muito mais do que das perdas e lutos. Outras pessoas demoram a dar-se conta do processo inevitável da ação do tempo e são surpreendidas por algo que não esperavam e, certamente, não queriam para si.

É por essas questões que Sylvia envereda, num estudo bastante abrangente e aprofundado (uma perspectiva histórica do tema, desde a Antiguidade até o mundo contemporâneo, a velhice na literatura, concepções teóricas na Psicanálise, a questão do corpo, da identidade feminina, do luto e da melancolia), que envolve muitos e significativos pensadores de diversas áreas do conhecimento, além de disponibilizar com generosidade sua experiência clínica no acompanhamento psicanalítico de três pacientes mulheres. Talvez Sylvia tenha sido uma dessas pequenas filósofas e agora, munida de um equipamento sofisticado e muita disciplina, pode nos brindar com a síntese de uma vida de estudos e experiência reflexiva.

O livro tem apresentação de Leda Herrmann que, juntamente com Fabio Herrmann, acompanhou Sylvia na sua pesquisa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Envelhescência surge a partir da sua tese de doutorado. Na contracapa, Myrna Pia Favilli destaca o enfoque dado na questão feminina e a condição da autora, revelada nos relatos clínicos, de transformar angústia em esperança, numa fase da vida em que, como na adolescência, as inúmeras transformações do corpo pedem novas integrações. Um saboroso prefácio de Claudio Rossi logo lembra Vinicius de Moraes: "a gente mal nasce, começa a morrer". E traz a ideia que focando na relação das pessoas com seus corpos, podemos "rejuvenescer pessoas de qualquer idade". Há moços muito velhos e velhos muito jovens!

Nessa resenha, vou me colocar como leitora e amiga da autora, num diálogo livre, destacando momentos e passagens que repercutiram com mais intensidade na minha própria subjetividade. O leitor interessado fará seu próprio percurso e encontrará farto e estimulante material para reflexão.

Cito aqui o trecho em que Sylvia explicita seu trabalho:

Este trabalho, razão e resultado de minha tese de doutorado contempla duas vertentes: a dimensão individual da experiência temporal e a dimensão social, com foco nas relações que o indivíduo estabelece com seu meio, especificamente na transição das passagens críticas por estarem sujeitas às manifestações de estereotipia segundo padrões preconcebidos. (grifos meus, p. 21)

E explica a origem do conceito "Fase de Envelhescência" (tirado de uma crônica de Mario Prata), que vai dos 45 aos 65 anos. Nessa fase, "a pessoa sabe que já não é mais jovem, mas ainda não se considera velha; revive um período de indefinição e, à semelhança da adolescência, é marcada pela turbulência de afetos e emoções precipitada pelo processo de mudanças expressivas que as alterações do corpo podem trazer no plano subjetivo e em suas relações com o mundo" (p. 21).

Ouvi certa vez uma curiosa definição sobre a velhice: "velho é quem tem pelo menos dez anos a mais do que você...". Ou seja, afastamos e postergamos aquilo que nos assusta e desagrada. Por outro lado, existem aqueles que antecipam a velhice e assumem uma velhice precoce. São questões da "envelhescência"...

A autora faz as suas reflexões levando em consideração a relação do indivíduo com o meio e o contexto cultural. Sabemos como o olhar do outro é fundamental para a constituição do eu. Nosso processo identitário em eterno e constante vir a ser, depende da marca do olhar do outro. Se o culto à juventude e à beleza, incrementado com ideais de competência e altas performances, é o que predomina, ser velho é encontrar-se num lugar denegrido e marginalizado.

Diz a autora: "O processo de envelhecimento que a priori é um fenômeno natural, nem sempre evolui segundo a cronologia, e se seu estereótipo se instala no imaginário, as fantasias de declínio muitas vezes se antecipam aos sinais aparentes do próprio processo em marcha, e a tomada de consciência do envelhecimento – cujas mudanças se anunciam no corpo – começa a se instalar em um tempo de caráter subjetivo" (p. 74).

É essa subjetividade que merece toda a atenção da psicanalista Sylvia, que se engaja numa conversa viva e encarnada com as três pacientes mulheres descritas na parte dedicada à clínica. Embora com diferentes histórias e faixas etárias (40, 50 e 80 anos), as pacientes encontram na interlocução com a analista a possibilidade de resgatar as memórias, considerar as perdas, ilusões e desilusões e tentar encontrar um sentido para suas vidas. E a conversa "rende", rica em identificações e aberturas, e ainda são temperadas pela condição sonhante da analista, revelada em citações pertinentes e poéticas, fruto de um caminho consistente de contato intenso consigo própria.

A autora utiliza o conceito de "eclipse do corpo" para abordar o processo onde uma hipervalorização do corpo obscurece os processos mentais, fragilizando o equilíbrio mente-corpo. Ocorre um estranhamento com o próprio corpo explicitado na colocação dos pacientes: "Meu corpo não obedece à minha cabeça (ou, ao desejo); e, muitas vezes ao contrário, o corpo tem força, mas a mente não acompanha". A análise entra para expandir "a zona de clareza mental", na busca por um equilíbrio e integração mente-corpo (p. 77).

Aprecio uma fala da analista logo nas primeiras páginas da parte clínica com a paciente Sofia: "O impasse é onde você está. Em um extremo, a 'morte', em outro a Vida. Mas não é nesse impasse que estamos o tempo todo?" (p. 104). Penso que sim, encontrar um sentido no viver é tarefa contínua e diária para toda vida...

No meu entender, o diálogo com a literatura e a poesia, bem como com outros campos de pensamento nas artes e nas ciências, indica um caminho para manter a agilidade mental e a juventude na atividade analítica e na vida. Apenas para citar um exemplo, Sylvia faz-se acompanhar de Guimarães Rosa: "o bonito do mundo não se dá na entrada nem na saída, mas no meio da travessia" (p. 54).

Em função da amostra utilizada – três pacientes mulheres –, o tema do feminino predomina. No entanto, a autora também traz a contribuição de inúmeros pensadores homens que enriquecem o diálogo, expandindo o campo de reflexão das questões da Envelhescência para além do olhar específico feminino. Por exemplo, trechos das memórias de Bobbio, citações de Cícero, Bertrand Russel, Machado de Assis, entre outros.

Um dos pontos salientados no livro é a importância da memória como fonte inesgotável de reflexão sobre o si mesmo, o universo no qual se vive, as pessoas e acontecimentos de uma vida. Revisitar as memórias é um tesouro que está sempre ao nosso alcance. Encontrei numa fala do compositor Paulinho da Viola uma curiosa forma de falar do passado sem lamentos saudosistas: "meu tempo é hoje, vivo o agora... é um sentimento meu em relação a coisas do passado. Sempre falo que não sinto saudade. Para mim vale o que está no presente. É difícil de traduzir, como se o passado fosse vivo em mim. Mas tudo que vivi faz parte de uma única vida, é uma coisa só. A saudade anula a vida e, quando digo isso, pode até ser uma certa pretensão. Mas veja bem: a perda de uma pessoa, o que você sente em relação a ela, é natural; mas não é isso de que eu estou falando. É outra coisa, aquilo dos momentos vividos, que você guarda como se tivesse que voltar exatamente como era, o saudosismo. Isso que não é bom e eu não carrego comigo" (Meu tempo é hoje, documentário de 2003, grifo meu).

Faz parte do meu momento de vida, encontrar-me frequentemente em reuniões com amigos e colegas em torno de uma boa mesa e a conversa passar pelas dores, as doenças, os remédios, enfim, coisas da idade… Ao ler o livro Envelhescência, senti como se todos os autores citados, as pacientes e a autora estivessem nessa rodada de papo, cada um contribuindo à sua maneira para aumentar nosso "campo de clareza" a respeito de nós e nossa condição no mundo.

Finalizo incluindo mais um nessa conversa: o autor americano Philip Roth, que recentemente, ao completar 80 anos, declarou que não escreveria mais romances. Diz ele, referindo-se às sonecas da velhice: "A melhor coisa da soneca é quando você acorda. Você passa 10, 15 segundos sem ter a menor noção de onde está. Você simplesmente vive" (disponível em: www.npr.org, grifo meu).

 

 

Endereço para correspondência
MIRIAN MALZYNER
Rua Purpurina, 155/67
05435-030 – São Paulo – SP
tel.: 11 3815-8115
E-mail: mimalzyner@gmail.com

Recebido em: 10/04/2013
Aceito em: 17/05/2013

 

 

* Membro efetivo da SBPSP.