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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

RESENHAS

 

A vergonha e os sofrimentos narcísicos

 

 

Marina Kon Bilenky*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Verztman, J., Herzog, R., Pinheiro, T., Pacheco-Ferreira, F. (Orgs.). Sofrimentos narcísicos. Rio de Janeiro: Cia. de Freud/UFRJ; Brasília: CAPES PRODOC, 2012. 321 p.

 

Um afeto historicamente pouco estudado e incluído no pensamento psicanalítico é a vergonha. Hoje, esse tema começa a aparecer na literatura ganhando corpo conceitual e sendo utilizado como ferramenta para o desenvolvimento de teorias nascidas da clínica, que buscam uma maior compreensão dos fenômenos encontrados na contemporaneidade, como a depressão e os sofrimentos narcísicos. Quando dirigimos nosso olhar para outros horizontes, culturas e paragens, encontramos novas formas de compreender o mundo que nos cerca. O mesmo ocorre quando deslocamos a perspectiva de observação do funcionamento do homem contemporâneo.

Sofrimentos narcísicos vem ocupar um lugar relevante na abordagem dessa nova perspectiva. Resultado de dez anos de pesquisa do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o livro reúne uma coletânea de artigos escritos pelos diferentes pesquisadores, os quais, partindo dos impasses colocados pela clínica atual, percorrem autores de diferentes épocas e escolas, buscando uma maior compreensão para as indagações suscitadas pelos atendimentos clínicos.

O livro é montado de forma que cada capítulo aprofunda questões levantadas na discussão dos temas de outros capítulos. Assim, funcionam como peças de quebra-cabeça que se articulam, construindo um todo enriquecido a cada nova perspectiva acrescentada.

Após prefácio escrito por Jurandir Freire Costa que introduz o leitor à temática desenvolvida ao longo de todo o livro, este inicia com a definição do que é denominado de patologia narcísica, ampla gama de configurações subjetivas, buscando uma metapsicologia do narcisismo, na figura da melancolia.

Ilustrado pelo relato de interessantes casos clínicos, o funcionamento desses pacientes vai sendo delineado, e somos informados a respeito da maneira como se relacionam com seu próprio corpo, sua história e com o analista. Por exemplo, os autores nos descrevem situações em que o sujeito sente-se atravessado pelo olhar do outro e desprovido de intimidade e privacidade com seu próprio corpo e subjetividade. Há tal sentimento de estranheza com relação às sensações e percepções, que o paciente pode confundir uma úlcera estomacal perfurada com uma dor de dente.

O tema da vergonha é explorado a partir de diferentes ângulos. Quando nosso olhar é dirigido desde os aspectos cultural e social para chegar até a clínica, assistimos a um novo lugar atribuído a esse afeto. Ao tomar a vergonha como emoção ética de regulação dos laços sociais, a função exercida pela culpa é deslocada, abrindo novas possibilidades para o pensamento teórico-clínico. Assim, aprendemos que a vergonha funciona como regulador ético da vida social em culturas que não possuem o indivíduo como valor supremo. Nessas sociedades tradicionais, o sentimento de vergonha está intimamente ligado a ideais e valores relacionados à honra. Na honra, o sujeito percebe os laços de pertencimento a seu povo, buscando estar à altura de seus ideais.

Na clínica da atualidade, porém, a vergonha é dissociada da honra. O receio do envergonhado refere-se à sua imagem e aparência diante do outro, revelando sua face narcísica. A vergonha acompanha a sensação de insuficiência e inadequação diante de um ideal, personalizado na figura do outro de seu meio social. Há sempre esse outro que vê o que não é para ser visto.

A vergonha surge como um dos reguladores da inserção na comunidade. E do ponto de vista do envergonhado, seu sofrimento liga-se ao sentimento de que seu aspecto destoa do ideal supostamente partilhado pelo grupo.

A fobia social é largamente estudada pelos pesquisadores. Ao discorrer sobre essa nosografia, como já aponta Jurandir Freire Costa no prefácio, seu "espectro é redescrito e a ênfase analítica se desloca. No lugar de acentuar o componente fobia, ou seja, medo no uso vernacular, o relevo é posto no componente vergonha. A guinada terminológica determina o curso da reflexão" (p. 13).

Se na fobia tal como descrita por Freud o sujeito teme ver o objeto, na fobia social ele teme ser visto. O isolamento social serve para evitar o transbordamento de angústia, que surge de modo difuso e inconveniente quando o indivíduo está vivendo a situação social temida. Se, por um lado, as queixas dos fóbicos sociais se referem à invisibilidade, por outro, se referem à transparência, face persecutória, no sentido de se sentirem trespassados pelo olhar do outro e não ter direito ao segredo.

A discussão acerca da angústia é aprofundada no estudo desses casos, partindo-se de Freud e continuando em direção a autores contemporâneos, numa articulação entre as formulações teóricas sobre a angústia com aquelas relativas à vergonha. A vergonha nos é apresentada como um afeto que possui diferentes gradações de intensidade relacionadas com o grau de gravidade da patologia. E o destino da ferida causada por ela, como todo traumatismo sem recalcamento, é conservar-se congelada, com camadas construídas ao redor do núcleo vergonhoso, que implicam em estratégias de evitação parecidas com as fóbicas.

A vergonha é paralisante e tem efeito de corte, expõe a intimidade do sujeito com amplos efeitos narcísicos. O indivíduo deixa de se sentir digno do amor do grupo e se retrai. Se na culpa existe a possibilidade de reparação do dano causado ao outro, na vergonha não há como consertar a imagem narcísica danificada e a angústia leva o indivíduo a uma paralisia da ação.

De uma perspectiva social, acompanhamos o desenvolvimento da ideia de que a depressão, tão prevalente na atualidade, e a vergonha são as faces da exposição do sujeito aos ideais de iniciativa e autonomia presentes na sociedade contemporânea. Ao contrário da neurose, doença da modernidade, onde o sofrimento do homem está inscrito na culpa por não conseguir dominar seus impulsos e pela impossibilidade de obediência à lei e disciplina impostas pela autoridade, a depressão deflagra um sofrimento vinculado à responsabilidade de si, uma espécie de "doença da autonomia" (p. 186). No mundo contemporâneo, a vergonha revela-se a partir do sentimento de insuficiência. Configura-se como forma de sofrimento à medida que o sujeito sente que não consegue atingir os ideais, a partir dos quais poderia sentir-se reconhecido por seu meio social.

Numa sociedade do imperativo da ação, a dimensão narcísica se enlaça à performance pessoal. A descontinuidade entre o que o sujeito é e o que deveria ser produz um colapso da promessa do ideal do ego de substituir o narcisismo da primeira infância (ego ideal). Sem poder voltar ao passado e com o futuro bloqueado, o sujeito é tomado pelo sentimento de insuficiência, acompanhado pela vergonha e deprime. A vontade de desaparecer une vergonha e depressão, afastando o deprimido cada vez mais daquilo que dele se espera, ação e exposição da intimidade.

Se a queixa do homem atual se refere ao incômodo causado por não poder fazer face às demandas de êxito através das quais terá seu reconhecimento pela constelação social e afetiva que o cerca, sua demanda de bem-estar, por outro lado, é rapidamente atendida pela psicofarmacologia. E a psicanálise entra num impasse, já que implica, necessariamente, na possibilidade de se entrar em contato com o desconforto.

Nas doenças narcísicas, a vergonha aparece como sofrimento privilegiado. Ela remete a uma autopercepção desvalorizada, sentida como evidência indiscutível, e onde os pacientes se fixam a essa dimensão superficial. O mecanismo de cisão, clivagem narcísica, é mais utilizado do que o recalque, e a fala é pontuada por interrupções constantes, devido à pouca fluência do material associativo, e funciona como um circuito fechado, sem abertura para novas representações e lembranças. As experiências relatadas, sobretudo aquelas remetidas ao sentimento de vergonha de si, por mais significativas que possam ter sido para a história subjetiva do paciente, raramente são acompanhadas de manifestações afetivas.

Os autores propõem que a psicanálise deva adaptar sua técnica ao tratamento desses pacientes incapazes de simbolizar suas dores. A descrição das modalidades técnicas utilizadas pelos pesquisadores vem acompanhada de exemplos clínicos que demonstram a necessidade de um procedimento mais ativo por parte do psicanalista, que ajude a conduzir o fluxo associativo, antes bloqueado ou mesmo inexistente. Assim, vemos a importância da produção de uma historicidade no caso de pacientes que sabem pouco de si, ou a conjugação de representações dissociadas na fala do paciente, e também o alcance do fantasiar com, para aqueles que não conseguem fantasiar. Mas, apesar dessas possibilidades, não há como prescrever uma técnica que resolva a questão do tratamento de casos tão difíceis como esses.

O livro se encerra com um longo capítulo sobre o perdão, conceito que pode ampliar o alcance do tratamento psicanalítico. Afastando-se do cunho religioso do perdão, e após estudo aprofundado de sua ética na filosofia por Arendt e Derrida, somos conduzidos ao terreno da psicanálise. Tema inexistente em Freud, o processo de perdoar é considerado relevante por Ferenczi. No estudo de autores contemporâneos, vemos se delinear a ideia da psicanálise constituir a possibilidade de construção do perdão para esses sujeitos que, por sua característica narcísica, não possuem a possibilidade de distanciamento para formulá-lo. Se a culpa busca o perdão, a vergonha impede seu acesso e o trabalho de interpretação, ao dar sentido e reconhecer o sofrimento do sujeito, pode inaugurar uma abertura na relação do sujeito com seu mundo.

Assim, podemos apreciar a riqueza e a possibilidade que se abrem quando aprofundamos nosso olhar sobre a vergonha, sentimento tão presente em nossa clínica e no mundo atual. Ao privilegiar a aparência e exposição pessoal, a sociedade contemporânea cria um conflito, às vezes, intransponível: com a obrigatoriedade de se expor para garantir a existência entre seus semelhantes, o homem atual patina entre o sucesso e o terror da rejeição.

 

 

Endereço para correspondência
MARINA KON BILENKY
Rua Capote Valente, 432, cj. 46
05409-001 – São Paulo – SP
tel.: 11 3085-6020
E-mail: marinabilenky@gmail.com

Recebido em: 01/04/2013
Aceito em: 19/04/2013

 

 

* Membro associado da SBPSP.