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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

CARTA-CONVITE

 

 

Caros colegas e colaboradores da ide

Para o próximo número da revista ide, o 57, nosso grupo do Corpo Editorial ficou, como todos, extremamente marcado pelas manifestações de rua que floresceram em junho de 2013 no Brasil. Esses movimentos, surgidos aparentemente de forma espontânea, nos surpreenderam pelo grau de força, inovação, juventude. Observamos uma multiplicidade de expressões pessoais, de críticas e reivindicações diversas, presentes na singularidade de cada cartaz. Partindo da experiência ligada ao campo político, pudemos pensar na noção freudiana de "formação de massa". Dessa maneira, pensamos estimular uma reflexão que inclua essa e outras noções psicanalíticas despertada por esses acontecimentos.

Em Psicologia das massas e análise do Eu (1921/2011), Freud faz uma vasta reflexão sobre a noção de massa e seu funcionamento, quebrando a separação entre psicologia social e psicologia individual, criando uma nova oposição entre atos psíquicos narcísicos e atos psíquicos sociais. A questão da relação social muda para a relação com o outro. Enfim, toda relação é com o outro, é relação social. Como mostrou Borch-Jacobsen (1982), a análise do Eu já é uma psicologia das massas e a psicanálise funda uma "arqui-sociologia". Assim, a reflexão psicanalítica sobre a cultura não é psicanálise aplicada, como frequentemente ouvimos, mas algo ligado à essência da própria psicanálise. A relação entre o polo narcísico e o do outro vai aparecer em outros textos de Freud, como, por exemplo, em Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). Tais considerações nos interrogam: será que podemos afirmar que a questão do outro só é colocada após a emergência de um sujeito?

No capítulo IV da Psicologia das massas, Freud discorre sobre a relação entre sugestão e libido. A sugestão seria então somente uma tela para esconder as relações de amor? Será que podemos falar que na "formação de massa", a partir das ideias de Freud, haveria uma regressão a um arcaico inconsciente? Ela teria um funcionamento ligado a esse arcaico, no qual há uma impermeabilidade à contradição: a massa é crédula e não conhece a dúvida ou o grau de certeza, é difícil de ser controlada, uma vez que não tolera a espera entre o desejo e sua realização. Por fim, sua única realidade é a realidade psíquica. Essas características não a tornam próxima dos processos primários inconscientes? Outro ponto que pode ser questionado é o papel importante dado por Freud à formação de um Ideal, adquirido após muito tempo. Esse Ideal daria unidade à massa. Como fica hoje essa questão, uma vez que se cogita um enfraquecimento dos ideais na sociedade contemporânea? Enfim, a partir das últimas manifestações podemos falar em formação de massa?

E o poder? Freud salienta a importância do líder da massa, uma espécie de chefe hipnotizador. Na formação da massa, a figura do líder dá forma ao caos anárquico: uma forma política. Logo, ligada ao poder.

Outro pensador a quem recorremos é Elias Canetti, que em seu livro Massa e Poder vai repertoriar toda uma gama de diferentes tipos de massa. Cabe a pergunta: os fenômenos atuais (coletivos, ocupações, protestos, passeatas) que ocorreram não só no Brasil, mas em diversos continentes, cabem dentro das categorias elucidadas por Canetti – que formulou seu livro diante da adesão assustadora dos grupos às organizações nazistas nos primórdios do século XX? Ou demandam novas formulações, novas formas de encarar as subjetividades que se recusam a sujeitar-se às formas tradicionais de organização? Ou que mediante uso de tecnologias e tempo real, on demand, apresentam um enorme e ágil poder de convocação?

O livro de Elias Canetti introduz diversos conceitos que merecem nossa atenção. Um deles, o autor denomina "cristais de massa" – grupos pequenos e rígidos, que se prestam a desencadear as massas, com atividade prescrita e estática, e que muitas vezes ganham autonomia. Será que podemos pensar também nossas instituições, inclusive as psicanalíticas, como aquelas que podem apresentar esses cristais de massa? Vale ainda lembrar as considerações referentes a uma formação mais arcaica, denominada "malta". No que diz respeito ao que chama "entranhas do poder", Canetti dá bastante importância à psicologia da "captura" e da "incorporação". Citamos aqui um trecho do livro em que o autor trata do "sobrevivente":

O momento do sobreviver é o momento do poder. O horror ante a visão da morte desfaz-se em satisfação pelo fato de não se ser o morto. Este jaz, ao passo que o sobrevivente permanece em pé [...]. A forma mais baixa do sobreviver é o matar. (Canetti, 2008, p. 227)

Dentro de sua obra, Canetti analisa o caso Schreber, destacando também a relação entre dominação e poder na Paranoia.

Num artigo recente publicado na Folha de São Paulo (Pelbart, 2013), coloca-se a pergunta: "afinal, o que querem as multidões?", em ressonância com a questão freudiana diante da mulher. A resposta não está disponível, mesmo porque demanda reflexão, pensamento, mergulho, espanto diante de novas questões.

Estão aí lançadas algumas reflexões que poderão estimular ideias novas acerca das circunstâncias inéditas da contemporaneidade.

Boas reflexões a todos!

 

 

José Martins Canelas Neto
Editor

 

Referências

Borch-Jacobsen, M. (1982). Le sujet freudien. Paris: Flammarion.         [ Links ]

Canetti, E. (2008). Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1960).         [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud. Obras completas (P. C. de Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Pelbart, P. P. (2013, 19 de julho). Anota aí: eu sou ninguém. Folha de São Paulo, Tendências/Debates.         [ Links ]