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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

As vozes das ruas dizem tudo e nada

 

The voices of the streets say everything and nothing

 

 

Julián Fuks*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Que delicado e complexo saldo se poderá aferir daquilo que se convencionou chamar de jornadas de junho? Silenciadas agora algumas de suas vozes, devolvidas as metrópoles à sua terrível normalidade, como estimar o alcance de dias tão atípicos e inesperados? É evidente que, em tão intrincado balanço, não se podem ignorar os pequenos ganhos concretos, o avanço na luta por um transporte público de qualidade, a denúncia renovada da desumanidade da polícia, as autoridades contrariando sua sistêmica morosidade. Acima de tudo, no entanto, o que parece restar imponderado é a emergência de uma impressionante força política potencial, cujos rumos ainda nos cabe batalhar.

Palavras-chave: Política, Manifestações, Jornadas de junho.


ABSTRACT

What delicate and complex outcome can we infer from the so-called June Journeys? Now that its voices seem to have silenced, now that our country seems to have returned to its terrible normality, how can we estimate the extent of those unexpected days? Clearly, in such an intricate balance, one should not ignore the small concrete benefits – the progress in the vindication for quality public transport, the renewed denunciation of the inhumanity of the police, the fact that some authorities, for a few moments, abnegated their systemic morosity. Above all, however, what appears to be left unconsidered is the emergence of an impressive political force, a potential political power whose directions we still have to define.

Keywords: Politics, Protests, June Journeys.


 

 

Tristes tempos estes que nos restaram, tempos de lucidez em excesso, de prudência retórica. Queria eu redigir um discurso forte em que coubessem as ruas, em que coubesse a história, em que cada frase referisse um fato, inquestionável em sua existência concreta, inequívoco em seu significado. E, no entanto, no instante em que começo a escrever sinto que cada uma das minhas certezas se evade, que se abstraem as minhas poucas propostas, que meu discurso empresta às coisas a evanescência que só deveria ser das palavras. Tristes tempos, mas tempos profícuos em paradoxos: resta ao menos a certeza da incerteza necessária, a peculiar inconcretude das coisas concretas, a noção tão precisa da imprecisão de qualquer circunstância histórica.

Fui testemunha das jornadas de junho, afirmo com a maior brevidade para que a voz não hesite, para que a frase não se deixe corromper pela dúvida. Fui testemunha das jornadas de junho, declaro com alarde para abafar a descrença dos que me ouvem, o descrédito que sempre acaba por corroer as declarações categóricas. Fui testemunha das jornadas de junho, repito para mim mesmo como se quisesse me convencer de algo, e se quero me convencer de algo – é o que concluo com obviedade – é porque não estou convencido. Não sei se fui testemunha das jornadas de junho.

Não sei se o que vi naquelas noites de cidade sitiada, noites de um vago entusiasmo convertido em gritos esparsos, noites de militância persistente rompendo o curso de tantos dias meramente profissionais, não sei se aquilo que vi foram as jornadas de junho. Também não sei se toda a indecisão que ouvi e li nas televisões e nos jornais, a volubilidade didática a que se entregou a mídia tradicional, em seu cinismo extremo que até pôde ganhar ares de involuntário, suposto fruto de uma desorientação de editores e repórteres, não sei se esses muitos discursos incoerentes e nada casuais eram as jornadas de junho. Desconfio também dos humores instáveis das redes sociais, das infinitas suposições e conjecturas travestidas em afirmações, dos desabafos que ganhavam a cada dia, a cada hora, a cada minuto um novo tom, dessa massa eufórica dedilhando a cada madrugada insone uma infinidade de frases prontas e julgamentos repentinamente consensuais – desconfi enfim que as jornadas de junho também não ocorreram lá. Junho chegou tarde, é o que não posso deixar de constatar; junho não é maio, 2013 não é 1968, e em junho de 2013, como já há algum tempo, qualquer acontecimento há de ser filtrado pela desconfiança que nos é própria, por essa suspeição quase absoluta que nos paralisa e nos incomoda, mas de que não conseguimos nos livrar.

Desse ápice passaram-se – quantos? – três ou quatro meses, e as escassas reminiscências de noites tão especiais já desvanecem na lembrança, já carecem de uma causalidade clara e de qualquer lógica, parecem assumir uma obscuridade apenas comparável à dos sonhos. Cenas fortuitas habitam a minha memória. Terei visto de fato uma multidão ordeira detendo-se diante de uma fileira inamovível de policiais, súbito recuando num caos de pernas velozes e braços ao ar, dispersando-se em solavancos ditados pela explosão das bombas de gás, tantas bombas que, por um instante, era a nossa certeza, não cessariam jamais? Terei sido encurralado entre milhares numa praça supostamente pública, apenas para sermos fustigados com mais eficiência por mais bombas e cassetetes e balas de borracha, armas de efeito moral cuja imoralidade se revelava tão patente, tão atroz? Terei mesmo vislumbrado uma aflição genuína no rosto de tantos amigos sempre seguros de si, sempre senhores de qualquer ocorrência, sempre convencidos de que neste mundo não lhes caberá nenhum desfecho trágico, nenhum enleio épico, e terei decifrado bem o medo real nos olhos reais da minha companheira, destoando de tudo aquilo de surreal que nos circundava? E quando dali fugíamos, certos de que naquela noite não haveria mais nada a fazer, de que havíamos sido derrotados numa absurda batalha que nunca quiséramos iniciar, teremos de fato cruzado com outro núcleo de manifestantes, mais convictos e mais enérgicos do que nós, mais ameaçadores também com seus olhos saltados em meio ao capuz, chutando placas, estilhaçando vidraças, retribuindo ao centro da cidade a dose de violência que os alcança dia a dia nas margens?

Perdoem, avanço nesta minha ladainha onírica com ambivalentes pretensões factuais e sinto que não posso senão entediá-los, que tudo isso já se disse demais, que esse meu sonho se assemelha ao sonho de tantos outros, e que estranhamente, nestes tempos tristes, isso lhe retira valor. Nada de muito único pode surgir no meio da massa, é o que me vejo propenso a acreditar, é o que tantos sustentam em sua crítica às multidões, à irracionalidade da horda, à sua tendência à irreflexão. Mas era algo diferente o que eu sentia naqueles momentos comunais, a julgar pelo que agora recordo com afeição: sentia que as vozes se conciliavam em coro sem abdicarem tanto de seu timbre individual, e talvez por isso os gritos fossem poucos, e fossem rarefeitas as propostas, e protestássemos por algo aparentemente tão menor, vinte centavos, uma melhoria dos transportes, uma cidade infimamente habitável. Se tantos foram às ruas por essa intranscendência contumaz, e a ela quiseram somar suas tantas outras causas igualmente intranscendentes, mais justas ou menos justas, progressistas ou reacionárias, foi por uma rejeição sumária à crítica das multidões, ou melhor, por um anseio imprevisto de somarem seus corpos a uma coletividade, ainda uma vez, de se entregarem ainda como indivíduos a algo maior.

Mas não sei quem interpreta esses supostos fatos. Quando me deixo embalar por essas frases mais positivas, mais acaloradas, estarei sendo honesto com a realidade tal como ela se insinuou diante dos meus olhos, ou estarei sendo fiel ao personagem do sonho, ao rapaz taciturno que fui nessas manifestações, entregue sempre à introspecção, mas desejoso de pertencer à turba? Ouço ainda as vozes das ruas como acreditei ouvi-las naqueles dias, ou a esta altura as vozes não entoam som algum, retornaram a um silêncio que eu me ocupo de preencher com meus pensamentos lamentavelmente erráticos, antes que tamanha mudez se converta em sono vazio?

Outra noite retorna de quando em quando à lembrança, sempre igual, e se retorna alguém dirá que é porque eu não cheguei a compreendê-la, não terminei de desvendá-la. Agora vamos caminhando, bovinamente, às centenas de milhares e, como nenhuma fileira de policiais impede nossa passagem, como aquela fúria desproporcional se viu desativada por governantes acuados, em pouco tempo nos vemos espalhados pela cidade inteira. Tomamos a cidade, é o que dizemos uns aos outros com ligeira incredulidade, tomamos o país inteiro, bradam os mais exagerados quando ouvem notícias das outras metrópoles, mas o que se ressalta nesses momentos de onipotência é que não temos qualquer clareza do que fazer com essa nossa força recém-adquirida e ainda imensurável. Tomar o país, nessas circunstâncias, e afortunadamente, nunca será mais do que um gesto simbólico, uma demonstração de que existimos como povo, de que, apesar de tantas evidências contrárias, estamos, sim, presentes.

Terá passado, agora, vendo a calmaria que retorna às ruas, a cidade ressarcida em sua terrível normalidade, terá passado todo o fervor e o embevecimento daqueles dias? Porque se tratava também de um embevecimento, sim, da gente apaixonada por si mesma, e bem sabemos que as paixões podem esmorecer em muito pouco tempo, sobretudo quando expostas em seu grau inevitável de exotismo e de loucura, sobretudo quando acometidas por alguma inesperada lucidez.

Entre as imagens marcantes que sobrevivem em mim consta a da multidão silenciosa que de repente se vê refletida na fachada de um prédio e, porque refletida, porque consegue enxergar a si mesma, faz pose e se põe a gritar festivamente. Exalta-se com a própria exaltação, encena como poucas vezes o paradoxal narcisismo coletivo que tão bem nos descreve. Mas isso eu já disse antes, isso dizíamos uns quantos naquele mesmo momento, encantados também com a sagacidade da inferência, e se agora repito a anedota sou obrigado a lhe oferecer uma explicação diferente. Me pergunto se, além do inegável elemento de fatuidade, aquela não seria uma maneira de verificar a própria potência, como quem tensiona os músculos diante do espelho mensurando se é forte o bastante para um desafio qualquer que lhe seja iminente. Lembro de como outra multidão passou a cantar mais alto, os rostos tomados por uma alegria autêntica, quando ouviu seu canto na acústica favorável de uma estação de trem, amplificado por ecos incontáveis. Serão ilusórias essas exaltações, porque alimentadas por ecos e reflexos, sempre distorcivos e falsos? Devemos desprezá-las porque é a vaidade que as alimenta, ignorando o fato cabal de que uma multidão animada diante do espelho é ainda uma multidão animada?

Perdoem mais uma vez se me deixo contagiar um pouco por esse arrebatamento, ou se me faço retórico demais. O caso é que, tal como os sonhos não se distinguem das palavras que lhes atribuímos, tampouco os acontecimentos pré-existem às suas versões, e se queremos em alguma medida que as jornadas de junho alcancem sua possível significação, que encontrem seu lugar cativo na história recente do país, precisamos ressalvá-las de seus numerosos defeitos e aumentar a ênfase no que tiveram de bom. Se maio de 1968 nos ensinou, num de seus muitos slogans, que a história se faz nas ruas, junho de 2013 tornou muitíssimo evidente que a história se faz nas ruas na forma de uma disputa, num duelo acirrado de palavras e interpretações. Não há nenhuma passividade em ouvir as vozes das ruas, nenhuma neutralidade possível nessa dura incumbência que aqui se propõe. As vozes das ruas dizem sempre, a um só tempo, tudo e nada, e cabe a quem as escuta oferecer a síntese que lhe pareça adequada – síntese que será sempre uma opção ideológica, embora tanto mais interessante quanto mais se aproxime de alguma verdade.

Qual será então o saldo desses tantos sonhos que se amalgamam numa realidade constituída em retalhos? Ganhamos, sim, vinte centavos, e com essa vitória miserável ampliamos em muito a luta por um transporte público de qualidade. Revelamos ainda uma vez quanto é desumana e antiquada a Polícia Militar, essa entidade assassina cuja extinção se faz mais urgente a cada ano que passa, a cada morte inexplicada nas favelas, a cada Amarildo que nos falta. Vimos uma mobilização sem precedentes também por parte das autoridades, presidenta, governadores, prefeitos e deputados apressando-se em reagir às indignações diversas que se sobressaltavam, numa demonstração relevante de que são capazes de contrariar sua sistêmica morosidade. Desestabilizamos, ainda que temporariamente, algumas instituições sagradas, o futebol, a FIFA, a Copa, numa mostra eloquente de como, de vez em quando, conseguimos superar também as nossas veleidades.

A esta altura – devolvidos como parecemos ao nosso cotidiano domesticado – alguém poderá julgar, amealhando uns quantos argumentos válidos, que isso tudo foi muito pouco, que os avanços foram parcos, que tanto ruído e tanta grita quase não alcançaram resultados efetivos. É evidente que um balanço marcado pela negatividade não seria menos ideológico do que este que aqui proponho, e tendo a pensar que seria estrategicamente equivocado. Não faltarão exemplos na longa história da Humanidade de que é preciso manter o otimismo mesmo quando os ímpetos mais grandiosos fracassam, mesmo quando parecemos ainda presos ao mundo que queríamos deixar para trás, ainda subjugados pelo sistema que duramente criticávamos. O caso é que as lutas históricas dificilmente rendem frutos imediatos – e aqui vou tomando a liberdade de sugerir que a luta que travávamos e ainda travamos era veladamente contra um sistema maior, contra o capitalismo em seu semblante municipal, e que essa luta, portanto, não era nem um pouco nova.

A novidade que trouxeram as jornadas de junho, e esse me parece seu maior saldo particular, foi a emergência de uma impressionante força política potencial. A massa olhou-se no espelho e viu-se desperta, viu seus músculos plenamente desatrofiados, revigorou-se com sua própria vaidade e talvez não vacile mais quando a ocasião se apresentar. Penso que não devemos temer o tal gigante que acorda, que não devemos nos furtar de olhá-lo direto nos olhos, de compreender suas vontades. Depois que o entusiasmo se vai, quem diz é Žižek, é que começa a verdadeira luta, é que as questões verdadeiras emergem. Penso que nos cabe batalhar na pauta diária dessas questões, nos cabe construir com honestidade as nossas versões, nos cabe debater novas propostas e conciliá-las com as nossas lutas atemporais, nos cabe disputar os sonhos e disputar a história – por mais incerta e imprecisa que ela sempre se mostre. Penso que, assim, lutar com palavras jamais será a luta mais vã.

Mas tanto falei de sonhos, tanto abdiquei da veracidade dos fatos, que vou me permitir nestas últimas frases uma muito temerária alusão a Freud, em sua noção consagrada de que os sonhos expressam desejos reprimidos e vontades irrealizadas. Se de fato, como temo em meu íntimo e como cuidei de expressar com estas palavras desajeitadas, se de fato não vivenciamos algo que possa ser concretamente chamado de jornadas de junho, se tudo aquilo que testemunhamos não se alça à condição de acontecimento histórico, limitando-se fatalmente à evanescência dos sonhos, será decerto porque muito o desejamos, porque esse algo constitui uma vontade imensa que ainda há de se realizar. E, se de sonho se tratou e de sonho se trata, convém agora vasculhar o conteúdo latente que, apesar de tantas manifestações, nós ainda não soubemos manifestar.

 

 

Endereço para correspondência
JULIÁN FUKS
18 Rue de L'Hôtel de Ville, 1440
75810 – Paris
tel.: 00 33 060 1340559
E-mail: julianfuks@yahoo.com

Recebido: 01/10/2013
Aceito: 06/12/2013

 

 

* Julián Fuks é escritor, jornalista e crítico literário. É autor de, entre outros, Procura do romance (2011) e Histórias de literatura e cegueira (2007). É mestre em literatura hispano-americana e doutorando em teoria literária pela Universidade de São Paulo.