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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

O poder não corrompe, revela1

 

Political power does not corrupt, it reveals

 

 

Leda Affonso Figueiredo Herrmann*,I; Fabio Herrmann**

I Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se da última conferência de Fabio Herrmann, quando já doente, transcrita e preparada como artigo. O tema do poder é pensado psicanaliticamente de forma semelhante ao trabalho freudiano de formações da cultura. O autor lança mão de três modelos de pensamento para considerar a questão do poder na sociedade atual, principalmente o poder político, perseguindo sempre o ponto em que a interpretação expõe seu avesso, ou seja, a revelação do como o poder se compõe em sua forma de domínio social e do sujeito psíquico. Finaliza com considerações do poder na e da Psicanálise, para a qual o nosso mundo, cada vez mais psíquico, impõe a tarefa de trabalhar a emersão de sentidos pela condição peculiar do método psicanalítico de pôr em relevo o que potencialmente há no sujeito e é na cultura.

Palavras-chave: Poder, Método da psicanálise, Formações da cultura.


ABSTRACT

Fabio Herrmann's last conference, when he was already sick, has been hereby transcribed and prepared as an article. The theme of political power is thought psychoanalytically, similarly to Freud's work on cultural formations. The author depicts three models of thought to consider the question of power in today's society – particularly political power – pursuing the point at which interpretation reveals itself inside out; such interpretation reveals how power is composed in forms of social domination and of the psychic subject. Herrmann ends his considerations on power referring to that which pertains to or occurs within psychoanalytic circles. To Psychoanalysis our world – increasingly psychic – imposes the task of working by the emersion of meanings, that is by the psychoanalytic method's peculiar condition of revealing what is potentially in the psychic subject and in our culture.

Keywords: Political power, Psychoanalytic method, Cultural formations.


 

 

A título de introdução, em 2013

No ano de 2005, o tema do poder circulava no meio psicanalítico paulista e brasileiro, pois compunha o tema do XX Congresso Brasileiro de Psicanálise sediado em Brasília, "Poder, Sofrimento Psíquico e Contemporaneidade". A Diretoria Científica da SBPSP, dirigida por Maria Olympia França, organizou um programa de jornadas preparatórias a esse Congresso, e Fabio foi convidado para apresentar a questão do poder em conferência realizada em outubro daquele ano.

Como pensador da Psicanálise, explorou o tema freudiano de análises das formações da cultura em sua obra, principalmente na perspectiva de como se configuram pensamento e ato no mundo em que vivemos (Herrmann, 2001), encontrando para o pensamento o regime que chamou de processo autoritário, e para o ato, o regime do atentado. É nessa visada que Fabio desenvolve a questão do poder político no início do século XXI, tendo também como referência um artigo seu publicado em 2003 pela revista Trieb, da SBPRJ, "Psicanálise e política no mundo em que vivemos".

Trata-se de reflexões psicanalíticas que, como de hábito em ocasiões de conferência, Fabio desenvolveu sem um texto previamente preparado. Já estava bastante doente e enfraquecido e foi essa sua última apresentação pública.

O título surpreende, pois, psicanaliticamente, atinge o avesso da ideia prevalente de que o poder corrompe àqueles que o assumem, propondo que ele revela o que ainda não se mostrara. E como anunciou Maria Olympia na ocasião, revela também, além do pensador, um poeta.

O artigo que segue é o registro mais próximo possível da transcrição da gravação da conferência. Procurou-se manter o estilo de uma comunicação oral, em que reiterações são inevitáveis, bem como imprecisões no passeio pelo tema. Daí, também, a escolha do uso de notas de rodapé, a inclusão de bibliografia, no final do artigo, para as referências implícitas e a preservação da discussão final com os colegas. O trabalho foi de certa forma facilitado pela clareza com que Fabio sempre se expressou oralmente, fruto provavelmente de seu exercício constante de um autor que pensava por escrito2.

Leda Herrmann

Novembro de 2013

 

O poder não corrompe, revela (2005)

Fabio Herrmann

Nem precisaria dizer, uma vez que estou em casa, mas quero dizer da gratidão por ter sido convidado para falar a vocês esta noite sobre um tema que vai de pronto ao essencial e ao essencial psicanalítico, gratidão em particular à Diretoria Científica.

Gostaria de ser capaz de manter esse equilíbrio delicado com que Freud construiu sua obra, fazendo concomitantemente filosofia do mundo e terapêutica, sem distinção entre esses fazeres. Às vezes um está mais presente que o outro, mas nunca se separam completamente, fundindo-se o método psicanalítico com análises das formações da cultura. Freud sabia fazê-lo com maestria – não sei fazer do mesmo jeito, fico no desejo.

Começo indagando no que nosso mestre Freud mais contribuiu para um tema como este, o poder, que é formações da cultura, e que nos precipita de imediato no mais essencial da prática clínica terapêutica do dia a dia do consultório, consultório em carne viva. Parece-me que Freud, ou nossos Freuds, para dizer tudo antes do começo, é muito melhor quando interpreta a cultura. E o faz tanto na psicopatologia da vida cotidiana – o nosso marco mais querido, por ter aquele encanto da demonstração e prova do inconsciente – como em todos os trabalhos ditos da cultura. E por tanta coisa a mais que se excluirmos os historiais clínicos e alguma coisa de técnica, temos praticamente todo resto de sua obra, incluindo a Interpretação dos Sonhos.

Freud é bem menos feliz no outro polo, aquele em que está propondo uma doutrina que explica, porque explica poderosamente demais. Por exemplo, se todo homem carrega em si a violência do poder e da destruição e Sócrates é um homem, logo também se aplica tal afirmação a Sócrates. Aplica-se a nós todos, enfim. É poderosa demais a demonstração do instinto de morte, uma metralha que atinge tudo ao mesmo tempo.

O título desta palestra – "O poder não corrompe, revela" – serviria como uma epígrafe de certas coisas do Brasil de hoje. Dito isso poderíamos encerrar. Não precisaria dizer muito mais, porque quando até os juízes de futebol mostram ao que vieram, esse mundo está perdido3. No entanto, ele está circulando por aí e nós em cima dele. Mas não, somos psicanalistas, e psicanalista advinha o passado, não é um adivinhador do futuro, não é Prometeu. Começaria a expor para vocês alguns modelos de pensamento, pela linha da interpretação, mais do que pela linha da discussão doutrinária.

O primeiro é o argumento da rua sem saída. De fato, para nós analistas, poder e Psicanálise se opõem radicalmente, porque a Psicanálise exige que não se doutrine o paciente, que não se lute contra associações psicanalíticas, contra os outros grupos ou correntes. Há toda uma doutrina envolvida nisso, verdadeira ponto por ponto, principalmente no que diz respeito aos pacientes – "não abusarás da transferência", "não exercerás poder sobre o paciente". Por ser tudo tão verdade, o pensamento não é solicitado, e muitas vezes acontece de falhar. É mais ou menos como se dissesse: "Irmãos, hoje ninguém dará um tiro um no outro" – é verdade, espero, e daí? – nada de metáforas, leitura literal sempre. Assim só é possível usar efeitos retóricos mais fortes para dizer a mesma coisa, e é nesse ponto que o pensamento estanca, por excessivamente verdadeiro.

O ponto chave está no enunciado mais simples, por exemplo: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de forma absoluta, uma dessas frases famosas. O analista deve ter seu terceiro olho, ou terceiro ouvido, dirigido para o lugar da dúvida sobre as coisas famosas. Corromper significa, afinal de contas, revelar uma natureza oculta e oposta à natureza que sempre existiu. O que nós estamos vendo sob certas circunstâncias no país4, mas que se vê a todo momento em qualquer circunstância, é que, uma vez o poder posto em jogo, a natureza era aquela mesma, não era outra. Simplesmente o poder pôs em relevo e fez com que aparecesse o que já era – a mala preta do juiz de futebol apenas ainda não havia aparecido antes. Sendo assim, ao não se pensar estritamente na luta entre colegas ou no poder e seus abusos – exercido sobre os pacientes, usado no ensino, na transferência, no trabalho dentro do Instituto –, vamos considerar o poder de um jeito diferente.

Deixe-me sugerir-lhes algumas coisas. Primeiro, que o poder serve para revelar. Segundo que, como Didier Anzieu considera em seu artigo sobre a pele psíquica, a respeito de Lacan, esse poder de conquista analítica só chega àqueles que o desejam fortemente e que sabem manejar com habilidade a psicologia coletiva para consegui-lo. Esse tipo de poder, este poder de fascínio sobre o outro e de tentativa de domínio, principalmente quando em grande escala, não cai do céu, nem é exercido exatamente por acaso. Mas é interessante para nós analistas observarmos que, embora a nossa prática analítica, do ponto de vista político, gire onde a moral e a ética são mais apertadas, e o mundo político gire onde a ética tenta ser negada de forma absoluta, nem uma coisa nem outra são conseguidas.

Como estamos vindo de uma longa viagem ao Oriente, me ocorre, por exemplo, uma questão sobre as guerras do ópio na China, que já propus algumas vezes. Perguntei a colegas e estudantes de pós-graduação o que foram essas guerras do ópio. Por esse mistério de se produzirem ideias e coisas, sem que se saiba como – Freud foi quem chegou mais perto de dizer por que –, sistematicamente a resposta afirmava ter sido uma tentativa das potências ocidentais de impedir que os chineses espalhassem ópio pelo mundo. Obviamente quase certo, só que ao contrário, porque as guerras do ópio foram uma tentativa dos chineses de impedir que os ingleses propagassem o ópio hindu em seu território.

Houve duas guerras, ambas no século XIX. A segunda delas, por exemplo, para dar uma ideia da relevância do motivo próximo, teve como causa a retirada da bandeira inglesa, por oficiais chineses, do mastro do navio inglês Arrow, quando apreendido pela marinha chinesa por contrabandear uma carga de ópio. Isso foi considerado uma ofensa ao império britânico e a China foi invadida. Os franceses se aliaram aos ingleses sob o pretexto de que tinha sido morto um missionário francês no interior da China. Sempre se pensou que os missionários teriam o destino de se tornarem mártires. De mártires não está o céu cheio, afinal de contas? Pelo visto é um equívoco.

Evidente que os chineses foram vencidos. Mas, se recordássemos Nietzsche, não nos surpreenderíamos. Em uma de suas críticas, na Gaia Ciência, ele diz que os povos primitivos (não se referindo à China, é claro) apossavam-se das coisas do Ocidente, de seus narcóticos – pela ordem, aguardente e cristianismo. Na verdade, os chineses só estavam querendo se defender da oficialização do contrabando de ópio. Perderam a guerra, a corte teve que se refugiar em Xian. Como represália, as tropas anglo-francesas destruíram o Palácio de Verão de Pequim. Assustados, os chineses fizeram aos ocidentais as concessões para a venda do ópio na China e do que mais quisessem. O fato interessante é que quando se fala das guerras do ópio na China, a imagem suscitada é a da comunidade internacional tentando impedir que os chineses corrompam o mundo com alguma coisa de ruim. Esse é o ponto onde a ética – enquanto racionalização e em seu pior sentido, no sentido em que ética é quase um palavrão – acaba invadindo a política ao revés, nessa forma amalucada.

No caso do poder exercido pelo psicanalista, de fato a comparação é válida, o poder dá nisso mesmo e dá exatamente em Xian. Todos sabem que Xian é o berço da China, onde se instaurou a dinastia Chin, que deu nome à China, inaugurada pelo Louco Chin, como também se poderia chamar a esse imperador que previu dez mil gerações para sua dinastia, e acabaram sendo três. Nem por isso a China acabou. Aliás, em matéria de oferta de emprego, o Louco Chin certamente entraria num recorde internacional pelo número de pessoas que trabalharam construindo o exército de terracota de Xian, além das tantas cidades subterrâneas que ainda não foram escavadas. O fantástico espetáculo dos guerreiros pôde ser apreciado quando de sua exposição em São Paulo há pouco.

No entanto, há dezenas de cidades enterradas espalhadas no circuito de Xian, tanto da dinastia Chin como de outras, até os Ming. Quando exercido no mundo psicanalítico, entre os analistas – pegando o poder pelo chifre, pelo seu lado ruim, de chifre do diabo –, há algo desse aspecto tônico, desse aspecto de debaixo da terra, do poder que quis ter para sempre o Louco Chin, enterrando exército poderosíssimo, essa força para todo o sempre, para milhares de gerações, um reino dos mortos de dar inveja aos egípcios. O que nós conseguimos com o poder dentro da Psicanálise – com nossos pacientes, formando escolas, grupos de influência de poder e mesmo nas nossas brigas mais triviais – tem esse caráter de uma cidade de brinquedo, mal enfiada no chão, que ninguém aproveita, a não ser os turistas. Talvez algum dia esse lado da Psicanálise se torne um lugar de visitação. E os turistas dirão: "Mas que perfeição, até pareciam gente, mal se nota que eram de barro".

Tomemos, porém, o outro lado da questão, em que se começa a ver como o poder tem pelo menos um sentido importante para nós, o de revelação. Por exemplo, aquilo que é dominante na política contemporânea: o regime do atentado. Simplificando muito o problema, trata-se de algo meio diabólico, descrito em meu artigo de 1981.

A ideia me veio em 81 com o atentado ao papa João Paulo II. Não dizia respeito propriamente ao problema do papa, nem ao atentado enquanto tal, mas ao fato – resumindo o argumento – do homem ter sido levado a um desprestígio ontológico tão extremo, de valer tão pouco, de haver tamanha exclusão do homem com respeito à personalidade que se tornou periferia do mundo. O papa, tomado como exemplo, é simplesmente um fortíssimo símbolo da personalidade, da personalidade política, que não mais tem grande poder.

É mais ou menos esta a ideia: há um limite de rebaixamento do meu valor, da minha capacidade de ação, do meu poder. Tenho algum poder numa pequena cidade, em minha rua talvez eu tenha alguma influência para conversar, juntar três ou quatro vizinhos para fazer uma reclamação. Numa cidade um pouco maior, ou num pedaço maior da mesma cidade, pode-se exercer algum poder. Mas no mundo, do jeito como está estruturado, esse poder do indivíduo atinge um patamar quase igual a zero. A ação morde o freio e o pensamento sucumbe por falta de raiz de tempo, de eficácia e de mínimo de crença na sua possibilidade de modificar as coisas. Não é um mero acting out – é muito mais grave. É como a revelação, essa que vem no lugar da corrupção. Daí a previsão, nesse começo da década de 80, de que o futuro das relações humanas seriam atentados, basicamente regidos por ações de máxima eficácia e de mínimo alvo oferecido. Àquela época não consegui imaginar a perfeição de alguém carregar a bomba em si, quando não há alvo algum porque o autor do atentado explode junto. Minha imaginação perversa – mea culpa – não chegou a tanto.

O que estou descrevendo é interpretação psicanalítica e como ela acontece. Se é razoavelmente certa, a realidade mostra que está errada, que a coisa é pior ainda. Como quando se chega àquele resultado matemático sobre algo e se pensa que deve ter algum erro, mas não tem. De fato, a situação era pior do que se imaginava.

O regime do atentado (Herrmann, 2001, 3ª parte) é talvez o modelo mais clássico, dentro de minha experiência – evidentemente não estou me referindo às grandes experiências psicanalíticas de Freud ou Lacan –, de se surpreender com uma interpretação do mundo, e de repente ver que é assim mesmo, embora à época quase não pudesse acreditar nos resultados dessa previsão. Passados quinze anos, não tinha como duvidar. O regime do atentado chegou a seu ápice no atentado às torres gêmeas5 e passou de interpretação à mera descrição, como a do exército de terracota. Alguém poderá dizer: "Mas que interessante, alguém antever isso, por outro lado, era tão óbvio que só poderia ser assim mesmo".

Queria dar um segundo modelo de revelação, felizmente não totalmente instalado, mas em vias de se instalar. É o que poderia chamar o console das opiniões – console no sentido de móvel de controle de sistema telefônico ou de luzes em que se aperta um botão e acende uma luz. Digamos que as opiniões sejam feitas assim: botão verde é sim e acende a luz verde; botão vermelho é não e acende a luz vermelha, reduzindo o que se passa no mundo a um modelo simplificado demais. Em todo caso a ideia é para ser a mais simples possível: verde/vermelho, luz verde/luz vermelha, sim/não.

Por esse modelo, pensemos em outros três grandes modelos, três grandes formas de constituição na política. No totalitário, temos a lâmpada verde e a vermelha e o botão verde, faltando o vermelho – pode-se dizer que sim ou que sim. O modelo autoritário, o segundo modelo, difere do totalitarismo e consiste na existência efetiva de um botão vermelho, um botão não, com o detalhe de que foi eletrificado. Pode-se apertá-lo, a luz vermelha vai acender e se receberá a dosagem de 1.500 volts. Não se o aperta uma segunda vez, porque quem apertou da primeira não está mais lá. E há o terceiro modelo, aquilo a que chamamos democracia, o que se augura como democracia. Também aqui espero estar equivocado. Neste se tem pelo menos a luz vermelha e a verde e o botão vermelho e o verde. No entanto, aperta-se o botão verde e acende a luz verde; aperta-se o botão vermelho, acende a luz verde.

O modelo do console das opiniões, embora nos console pouco, vai se ampliando em grupos. Ainda não é um fenômeno tão dominante como o do regime do atentado, mas é poderoso e terrível. É claro que não é a mesma coisa estar em qualquer dos três consoles. Há uma diferença efetiva, mesmo porque há contradições suficientes no sistema democrático, o que resulta bastante melhor do que levar um choque mortal ou simplesmente não existir canal de expressão – e nem sempre funciona dessa maneira. Nessas análises, é bom não irmos para a destruição universal, pois se destrói tanto o valor, a ponto de não ter mais o que discutir.

Por fim, queria apresentar um terceiro exemplo de revelação pelo poder, porque à medida que o poder em qualquer um desses sistemas se mostra pela interpretação, revela-se como é e era. Esse terceiro modelo vai ficar apenas como uma sugestão, pois ainda é coisa do futuro, embora também o seja do passado. É simples. É a fábula básica das histórias que nos alimentaram durante todos esses anos, é o grande tema das histórias de quarta categoria, dos filmes de ficção científica de quinta categoria, dos catastrofismos de sexta categoria, dos gibis, dos livrinhos e de tudo aquilo que a televisão nos faz engolir. Tudo, tirando digamos Dostoiévski e Machado de Assis e umas outras tantas coisas assim, o resto é isso. É a fábula matriz da cidade pacata. A pedidos, pois são ideias tratadas no artigo "Psicanálise e política no mundo em que vivemos", publicado na revista Trieb, do Rio de Janeiro, e que não tem muita penetração em São Paulo (Herrmann, 2003)6.

O resumo do resumo é assim: uma cidade pacata, em que tudo funciona, cujas casas são bonitas e as pessoas têm boa convivência – não sem qualquer problema. De repente, a cidade é ameaçada por algo terrível, a que tenho chamado uma intercorrência catastrófica – é o termo que uso no artigo mencionado. Pode ser um grande incêndio, por exemplo. Geralmente é algo de feitura humana, ou de feitura natural quase humana, uma mistura ecológica, em que o homem impõe e a terra dispõe, como se dizia de Deus antigamente – grande incêndio ou um cientista louco, que descobre que misturando água com Coca-cola pode se produzir um combustível nuclear que vai destruir o mundo, qualquer coisa assim.

Lembrem-se do último filme que zapearam e é isso, a história é sempre a mesma. Em geral, em meio a isso há um homem com seu hobby ou habilidade. Por exemplo, pode ser um golfista (o que não é nada plausível), e no último momento ele salva o mundo porque consegue dar uma tacada e apagar aquela luz, que não era luz, mas parecia, e na verdade era o que ia produzir a explosão atômica e acabar com o mundo. Por que golfe? Não me perguntem. Também pode ser um subproduto da profissão de alguém – um bombeiro que apaga o fogo. Ou um dote pessoal, de um idiot savant motivo de chacota por só ter uma qualidade, uma boa memória, ou coisa que o valha, e no momento crítico ele é capaz de lembrar a sequência de 348 algarismos que impede que estoure a bomba atômica. A história é facilmente reconhecível, não porque se a tenha visto, mas porque nunca se cessa de vê-la. Variações em níveis diferentes são tão populares, que perdem apenas para o manual do usuário, o que não é dizer pouca coisa. Esse manual que foi feito para não se perder tempo com o computador: leia 8000 páginas e compre o modelo seguinte do computador, pois o atual já pode ser jogado no lixo.

Por que é tão popular essa história? É a única pergunta que tenho tempo para responder. Em primeiro lugar, porque o Shazan7 se democratiza e todos nos transformamos, por exemplo, em superanalistas – aquele que no momento em que a coisa está mais para lá do que para cá dá uma interpretação e fiat lux! O apagão se reverte, porque houve um insight geral – mais vale acender um fósforo do que maldizer a escuridão. Uma frase como essa… "já dizia Confúcio".

Pois bem, no fundo será essa a razão? Não acredito. Acho que, como em qualquer interpretação, esse é aquele jogo de corpo da resistência final, o bamboleio anti-heurístico, digamos assim, aquilo que nos segura para impedir uma descoberta. Porque no fundo o problema não é o engrandecimento do sujeito comum, nem o reacionarismo de defender a cidade pacata quando o mundo está passando fome. Não. É que ponto por ponto, se analisarmos as ameaças que cercam a cidade pacata – seja a invasão dos extraterrestres, o cientista louco, o fogo ou a questão ecológica –, aprofundando um pouquinho a análise, descobre-se que cada um desses aspectos é aquilo que constitui em essência a própria cidade pacata. Porque a cidade pacata pintada desse sonho é onde se dá o desmatamento, só que escondido, porque já se deu – caso contrário, não haveria a cidade –, é onde o incêndio está sempre ocorrendo – em lugar oculto –, é onde a loucura tecnológica não se deu tão bem que pôde ser retirada para não aparecer de forma escandalosa. O que acabamos por descobrir é que a cidade pacata é o próprio inimigo da cidade pacata, e que essa luta é como o boxe que se faz na parede, lutando com a própria sombra. Quando o poder se mantém à distância e é exercido por um exército no lugar do cidadão, tudo bem. Quando ele é injetado e se atualiza na cidade pacata e em cada um, tem-se a revelação simples de que não houve uma corrupção – o que houve foi uma revelação.

Terminando, para conversarmos um pouco e não cansá-los a esta hora. Vivemos em um mundo cada vez mais psíquico, o que não significa mais racional – é um mundo muito menos racional. Mas que por ser mais psíquico, abre um espaço de exigências à Psicanálise. Queixamo-nos muito: "não temos chance com a Psicanálise, porque as pessoas não querem pensar". Sim, em certo aspecto é totalmente verdadeiro, devido ao tempo, à correria. Por outro lado, há um aspecto muito paradoxal nisso, porque nunca a Psicanálise foi tão exigida, uma vez que o mundo está ficando cada vez mais psíquico, sem elogios nesta afirmação. Era bom quando as vacas davam leite. Haverá um tempo em que as crianças sequer saberão que as vacas têm algo a ver com o leite. Antes o mundo era mais encarnado, e podíamos trazer o psiquismo, o reino do sentido, como uma novidade para o paciente. De repente, estamos dentro de um psiquismo, desse psiquismo que nos cerca. Sendo assim, há uma conclusão a tirar desse pequeno excurso feito aqui em torno do tema do poder e da revelação.

Em primeiro lugar, que o analista, sim, tem poder, e é muito grande. Em certo sentido está crescendo, o poder da interpretação psicanalítica, é o chamado poder transferencial. Mas para que possa se tornar eficaz, esse poder exige do analista uma espécie de restrição que por vezes me assusto ao enunciar, porque é brutal. Implica não assumir nem mesmo a figura transferencial, de que se sugere que sejamos suporte, seja numa análise de consultório, seja em qualquer outra eventualidade da aplicação psicanalítica. Por exemplo, como a mídia pode usar a Psicanálise, o que é um problema gravíssimo. Ela assume o psiquismo e responde por ele, e de repente é preciso fugir da mídia. Metade de nós corre atrás e metade à frente da mídia – é um perigo, a que o mundo nos leva. E correr na frente, em bom português, significa fugir.

Em particular, pensemos na situação analítica de consultório. É um não assumir a figura que nos é proposta, nem mesmo denunciá-la, nomeá-la, antes fazer com que apareça pelo choque interno entre os componentes do próprio paciente. Senão estaremos numa situação um pouco cômica do analista que diz ao paciente, como antigamente se dizia: "Do que nós precisamos tratar aqui é dos seus aspectos infantis que dificultam a sua percepção daquilo que estamos conversando". Neste enunciado ele afasta a criança que começava a se manifestar no paciente e o próprio paciente e arrisca-se a perder o paciente, como no velho dito: "jogar da bacia a água do banho com a criança junto".

Um segundo aspecto de poder, que envolve fortemente o poder do analista, é a questão que tenho tratado e que tem sido tratado pela Psicanálise e seus autores. Vou usar o nome que tenho usado, que é intimidade da clínica. Quando recebi o convite para este encontro, pensei: "querem que fale sobre o poder e falarei sobre a intimidade da clínica", porque a intimidade da clínica é onde reside nosso poder.

Não me refiro à intimidade com o paciente, que é uma coisa obviamente importante. Se o analista não for íntimo do paciente, no sentido de ter uma abertura, não terá nem paciente nem análise. Mas não é nisso que estou pensando; é na intimidade com os instrumentos da clínica. Usando a terminologia da Teoria dos Campos, intimidade com toda a dialética da ruptura de campo – uma dialética não dialética, porque não há síntese – que compreende um constante movimento de reconstituição e desafio, isto é, um estar íntimo com o método psicanalítico, que exige um passo atrás e um constante questionamento dos fundamentos teórico-doutrinários, que nos sustentam.

Há um paralelo com a interpretação dos temas dessas formações culturais – por isso achei feliz a junção dos temas. Se sobre elas – como as tratei, o regime do atentado, o console das opiniões e a fábula da cidade pacata – é óbvio que se poderia responder dizendo que "o homem é destrutivo", e seria o fim do assunto, na clínica também posso matar a interpretação com uma dose letal de teoria concentrada. Toma-se, talvez por culpa minha, a reincidência nesse discurso como uma espécie de inimizade com as teorias. Para isso, no entanto, precisaria ser inimigo de todas as teorias, inclusive da minha. Meu masoquismo é grande, mas não chega a esse ponto, pois teria de ser um masoquista tão perfeito que abraçou como profissão, e só pratica, aquilo que abomina, apenas cria a própria coisa que está condenando. O problema é não matar a constituição da teoria com a teoria constituída. É preciso um constante movimento de intimidade com o instrumental da clínica, o que daria uma conferência à parte, a ser feita algum dia.

Para finalizar, lembro apenas um terceiro ponto, talvez por questão de simetria – três tópicos com três itens cada. Esse terceiro ponto fechando o ciclo, é a grande contribuição, a meu ver, do nosso mestre Freud, a sua psicopatologia. Viver num mundo que reconheço como psicopatológico – e não só o da psicopatologia da vida cotidiana, nas exceções, mas cuja regra é psicopatológica – faz as coisas mudarem um bocado. O sonho vira parte do mundo e o mundo parte do sonho. Nisto reside o poder legítimo do analista. Porque tanto o mundo vira fantasia e mito, como nós podemos responder com teoria ficcional – e a isso tenho pessoalmente me dedicado e lido cada vez mais colegas que estão construindo nessa mesma direção –, refazendo o trajeto de Freud, tão bem por ele percorrido que o amedrontou e o fez esconder seu Moisés até o fim, mas acabou por revelá-lo. Há coisas mais fortes que nós, e até que o instinto de sobrevivência.

O fato é que por um tempo hesitamos muito em construir teoria ficcional, que não é senão a própria psicopatologia caminhando de cá para cá. O mundo nos oferece amostras de psicopatologia à vontade. Cada um dos temas que discutimos até aqui poderia ser discutido em termos de psicopatologia, e o foi. Se pensarmos bem, a interpretação que estou dando é pura psicopatologia. Como político ou cientista-político, nem zero à esquerda eu sou. Sou apenas um psicanalista fazendo psicopatologia do mundo e, nesse caso, da vida quotidiana.

Quando respondo com o console das opiniões, com essa fábula matricial da cidade pacata e com o regime do atentado, também estou construindo teoria ficcional. Se, por acidente, uma vez ou outra acontece de dar certo, como no caso deste último, a "companhia produtora" recusa qualquer responsabilidade pelos eventos.

Acho que podemos conversar agora.

Maria Olympia França – Vou dizer o que me inspirou quando vi o seu título. A frase proposta era que o poder corrompe, e você afirmou que não corrompe, revela. Você fez um giro aí, me parece, do mundo externo para o interno, com bastante peso, da tônica de um para o outro. Está certa a minha leitura?

Fabio – Está certa demais. Faço um giro em direção ao mundo interno sem dúvida alguma, mas é que o mundo psíquico está ficando externo, também. O que estou dizendo é o que você está dizendo, só acrescentando que o mundo interno está aí, ao nosso redor, não só em nossas cabeças, o que é pior. É verdade o que você está dizendo. Precisamos parar e pensar, pois é isso mesmo.

Maria Olympia França – É parecido com a concepção do fetiche. O mundo interno está materializado no mundo externo, e assim perde as qualidades tanto de natureza intrínseca como extrínseca. Isto que seguro já não é um microfone, é algo qualquer. Há um esvaziamento de toda e qualquer qualidade de essência, ficamos com os atributos.

Fabio – Como vocês sabem muito bem, em congressos psicanalíticos, pelo menos, isto, o microfone, é um símbolo fálico. Charutos talvez não, mas o microfone sim, e em congressos desempenha uma atividade masturbatória constante, pois quem o agarra não o solta. Você tem toda a razão: deixa de ser uma essência substancial, velha de guerra, torna-se quase uma impostura.

Magda Khouri – Sobre a questão da psicopatologia, de como você a entende. Esse olhar via método psicanalítico vai tornando possível ver o mundo do avesso e esse é um olhar da psicopatologia. Mas há uma crítica de que os psicanalistas, os psicólogos, os psiquiatras podem fazer uma análise do mundo de forma a psicopatologizá-lo com interpretações. Não queria que corrêssemos o risco dessa confusão.

Fabio – Acho que essa crítica é totalmente correta e vai no fígado do assunto. De fato, tendemos a dar uma interpretação das coisas que acontecem como se fossem mau temperamento, efeito de impulsos interiores. Entretanto, por vezes o próprio objeto carrega sua patologia, e não é uma pessoa. Deixe-me dar um exemplo, que já dei alguma vez, curtíssimo e oriental também, uma vez que vim enfeitiçado do Oriente. Alguns de vocês já ouviram. Em Kyoto há um belo templo, o Templo Dourado de Kyoto. Ele exerceu tamanho fascínio sobre certo homem, que ele decidiu se tornar monge budista. Passou-se um tempo e ainda assim ele estava tão fascinado que, seguindo um princípio oriental que diz que esse tipo de fascínio só pode ser superado pela destruição do objeto, ele incendiou-o. O templo é do século XV e o incêndio de 1950. Em 55, o templo foi reconstruído como fac-símile do original. Em 89, cobriram-no com placas de ouro, o que fora dourado. Esta é a terrível história do Templo de Kyoto, do Grande Sedutor. Cumpriu-se seu destino, foi efetivamente coberto de ouro. Pode-se dizer que esse homem era um louco? Não. Se era ou não louco, se era piromaníaco, não é a questão e a pergunta, muito infantil, nem se conhece o homem. Mas conhecendo o templo e ouvindo a história, reconhecemos os sinais do Grande Sedutor – aquele em que as coisas se cumprem, porque ele é a psicopatologia. Ele é a doença. Esse caminho foi escolhido pelo Templo, até que conseguiu se fechar no ouro, que era o seu destino. Pensando o mundo deste jeito, vemos que a patologia é tal como você disse, e com razão. É possível dar interpretações das mais tolas. Aliás o que perguntam para os analistas em geral é nessa linha. Perguntaram-me certa vez sobre a motivação dos terroristas que jogaram o avião nas torres gêmeas. Respondi ao jornalista: "Como vou saber a motivação do terrorista? Só saberia se estivesse dentro do avião, mas então eu não estaria dando esta entrevista ou ela seria num centro espírita". São perguntas que fazem a todos os analistas.

(Alguém da plateia comenta se não era esse o destino das torres, sua psicopatologia.)

Fabio – Claro, uma interpretação a levar a sério. O próprio nome, World Trade Center, já apela, piscando, "me ataca, me ataca", até encontrar o seu destino monstruoso, como a atração de um farol. Fiquemos novamente em Nietzsche – desculpem, mas desta vez ele é o inspirador, pois é tão Nietzsche o tema proposto do poder, além do que ele se dizia o primeiro psicólogo do Ocidente. Vivemos nessa rerum concordia discors, nesse discordante concerto das coisas. E concerto no sentido musical é a fonte da discordância. Eis a psicopatologia, como Freud nos ensinou. Isto é, olhar o que realmente é tal como é, ver a revelação – que hoje estamos tomando pelo ângulo do poder –, reconhecê-la e se surpreender. Muito mais não podemos fazer, nem temos poder para isso. O mundo, sendo redondo, cai do divã e rola. Além do que, o divã está dentro do mundo e não daria para fazer essa operação. A interpretação psicanalítica não resolve, mas ela é o instrumento mais poderoso que temos no momento, a meu ver.

Liana Pinto Chaves – Te ouvindo falar agora sobre psicopatologia, pensei que essas ideias são irmãs das suas ideias sobre a cura. Nunca tinha pensado desse jeito. Assim como você fala que o mundo é redondo e rola do divã, e que o divã está contido no mundo, e a psicopatologia é a própria expressão da discordância do concerto das coisas, vejo que tem um parentesco entre esse jeito de pensar a psicopatologia e o seu jeito de pensar a cura. E você falou que se trata de uma dialética sem síntese...

Fabio – Tem parentesco. Não poderia ser diferente, uma vez que sou o mesmo nos dois casos, e essa dialética sem síntese mostra um lugar aberto na Psicanálise. Cura não é tirar de, resolver para, tirar do mundo, tirar alguma coisa do paciente, esgotar o inconsciente – é óbvio que ninguém pensaria assim. Mas o termo cura foi muito condenado, não só na nossa Sociedade. Foi proposto que não há cura, que é uma ingenuidade falar dela – ideia à qual me oponho com todas as minhas forças. Acho que é uma estupidez não falar em cura, pois estaríamos num caminho, num trilho, que dá volta ao universo, em que iríamos rodar e rodar e rodar e sonhar. É claro que a cura é uma direção. Como a cura do queijo, que atingiu seu ponto. A ideia é que curado, o homem permanece na psicopatologia, porque permanece no mundo. Acho que é essa a semelhança que você está vendo pular diante dos olhos. Ela permite, inclusive, compreender por que se diz que não tem sentido falar em cura, e se questiona o curar o homem e de que curá-lo. Se fosse nesse sentido, estariam certos, mas ele não é só ingênuo, é simplesmente impraticável. É o sentido impossível de "agora vamos resolver seu complexo de Édipo", ou seja, resolver seja lá o que for. Pode haver, no máximo, um declínio do complexo de Édipo. O homem curado é o homem inserido na psicopatologia e vivendo nessa discordância, porém tendo ampliado as possibilidades de lidar com ela, de ser menos infeliz com isso, de se desorientar menos. Uma porção de pequenos objetivos que vêm com esse grande princípio da cura como atingir a possibilidade que existe, e não – por favor – a que não existe. Tentar curar alguém transformando-o em outra pessoa pode ser a instauração da loucura a mais completa – é a "low-cura", uma certa forma de cura muito grave...

Alan Meyer – Fabio, você sabe que sou um entusiasta do seu artigo sobre psicanálise e política. Cito-o porque fiz uma apresentação da correspondência Einstein/Freud. Nela, Einstein fala da Liga das Nações, dos Estados entregarem uma parte da soberania para se ter um poder mais alto, que permita estabelecer um limite para a guerra. Digamos que é uma perspectiva "macro", uma perspectiva social, política. De repente, Einstein questiona: "por que não se consegue isto?" Constitui-se uma Liga das Nações, que não tem poder, o que vale é o poder do mais forte. Einstein responde a sua pergunta dizendo: "porque existe uma dimensão nos homens que é a pulsão destrutiva". Fica então o lado "micro", individual. "Macro" e "micro", dois lados. Obviamente que Freud vai argumentar bem nessa linha proposta por Einstein. Fico pensando, na sua perspectiva, se isso seria doutrinário, uma interpretação ou dado de fato. Há uma questão aí, porque de fato as discussões se dão nesses termos, não só em Freud, mas na ciência política. É um ponto para mim muito interessante. Você citou várias vezes Nietzsche, que fala de pulsão de poder e Freud vai falar de pulsão de poder. A diferença é que, para Nietzsche, a pulsão é sem termo e sem oposição; já em Freud é sem termo, mas tem oposição. Tanto que em Nietzsche a destrutividade jamais será eliminada, nem há caminhos possíveis para eliminá-la, mas para Freud existe o que chama de caminhos indiretos, as artimanhas possíveis para se contornar. Eu queria saber: como você encaixa esse tipo de argumento no seu pensamento?

Fabio – A pergunta é ótima. Não é nada fácil responder, justamente por ser uma boa pergunta. Vai um tanto de cada coisa e depende menos de Freud e mais do leitor e do analista falando. É possível tomar de forma puramente doutrinária, mas vou colocar de outro jeito. Certa vez eu tentei responder esse tipo de pergunta, justamente sobre a agressividade das neuroses, mas num outro contexto. A pergunta era: por que o que Freud fazia tinha valor curativo? A pergunta é válida, uma vez que Freud passava um bom tempo ensinando psicanálise para os pacientes. É que Freud estava inventando o que fazia e isso é uma diferença fundamental conosco. Estava descobrindo a agressividade no homem. Então tinha o frescor da descoberta. É mais ou menos o problema borgiano de Pierre Menard, que reescreve o Quixote. Ou de alguém que decide pintar As Meninas de novo, sem ser Picasso. Há uma queda ontológica na repetição. Esse é um dos elementos e de alta importância. Quando lemos Freud, embora já saibamos o que ele vai dizer – até porque já lemos várias vezes – o texto tem um efeito curativo sobre nós, que não tem se repetirmos as ideias freudianas uns aos outros. Ainda que eu possa dar uma versão melhor que a de Freud, por ter conhecido a dele, não tem o mesmo efeito. A leitura do texto freudiano tem esse efeito curativo por ser descoberta. E por ter os seus buracos, essas maravilhosas falhas, voltas. Por exemplo, o bom objeto não é aquele… E em bom objeto não há chiste algum, é objeto bom no sentido em que se deve entender, não é o objeto que dá forma ativamente, é aquele que pelas suas falhas e incompletudes permite a subjetivação. Não é o que se impõe pela sua presença de preenchimento, mas aquele que se impõe pela sua presença de falha, de incompletude, de meio erro. É pelo meio erro que tem valor do amor materno, se de criança se trata, ou do pensamento se se trata do pensador, seja Freud, sejam outros pensadores da Psicanálise. É diferente Freud falando que o homem tem agressividade de nós reproduzindo-o. Que o homem tem agressividade não é só a Psicanálise que o diz. Cada qual que o diz traz um sentido diferente para esse dizer. Em alguns casos, é um dizer mais interpretativo, em outros, mais doutrinário. Não sei levar muito adiante esta questão sem entrar numa discussão mais aprofundada, o que seria demasiado aqui. O único ponto a acrescentar seria este – é preciso atenção nos termos do diálogo e a quem está em diálogo. Este momento musical psicanalítico é muito especial. Não é Alan falando com Fabio. Você se refere nada menos que a Freud falando com Einstein. Claro que não estou diminuindo o nosso valor, mas Freud e Einstein têm um sentido subespecie eterni de que Freud certamente sabia e Einstein tampouco desconhecia. Aí, de novo, nasce o efeito interpretativo. É essencial para o analista saber a quem fala e o modo desse falar (carta ao grande físico, carta ao inventor da psique moderna). Nesse grande momento, é próprio do analista – como, aliás, diria que é próprio de um físico como Einstein – saber que expressões usar e o que dizer. Nos grandes momentos da vida, e nos pequenos, também. É essa apropriação, de modo que a frase caia em cada mente da sua forma adequada. Presença no tempo. Aliás, se fosse dar um exemplo de intimidade da clínica, diria: sejam íntimos do tempo. O tempo é o nosso instrumento mais poderoso, mais elusivo, mais enganador, é aquele que cura e é o Grande Sedutor.

Thaís Szterling Rosenthal – Queria fazer uma reversão e propor-lhe falar um pouco sobre o poder da vida.

Fabio – A intimidade da clínica é uma variação do poder da vida. É claro que existe vida fora da Psicanálise. O poder da vida manifesta-se de muitas maneiras. Se eu tomasse pelo lado do tempo, responderia que pela recordação – aquilo que volta pelo coração da experiência, e que para o analista volta pelo coração da clínica. Nunca estou tão imerso na teoria psicanalítica, como quando estou com um paciente. É onde a palavra mata, mas o espírito vivifica. Sob este aspecto, não há senão recordar. A surpresa do poder do instinto de morte – ou, se preferirmos, dos impulsos destrutivos – vem só por causa de uma crença, quiçá exagerada, nos poderes da vida, de Eros. É escandaloso esse poder, e somos levados a considerar que a morte não podia ser tão forte. Einstein mesmo, no que Alan nos trouxe, questiona o porquê. Alguém poderia ter-lhe respondido, Hobbes o fez, onde um não cede, tampouco um Estado cede. Porém, em nós é tão forte essa crença no poder da vida, e ele existe, é lógico. Mas justamente por existir, meu espírito responde: "só quero isso, cale-se o resto". E então, é claro, o resto vai crescendo e se dogmatizando, e temos um instinto de morte em crescimento quase incontrolável. Escreveu certa vez Nietzsche sobre o evolucionismo – e vai ser esta a última citação do filósofo, curta, mas maravilhosamente ferina –, que Darwin não teria sido possível sem Hegel. Depreende-se, pois ele não explica, que se alguém não sustentasse que o espírito humano tende à sua absolutização, a Deus em última palavra – uma deificação da própria história –, não seria possível a constituição de uma crença geral de que há uma seta apontando vida e superação constante, observável até nos animais. Ao dizer isso, Nietzsche está criticando Hegel com a mesma severidade com que critica o darwinismo. Mas sem o tomar em consideração, ele está defendendo Freud. É realmente o poder da vida, esse contraditor, que tem que ser contado com o poder da morte, poder que só pode vir junto com seu escândalo. Caso contrário, não estaríamos errados, estaríamos ainda certos e talvez tivéssemos algum ganho. Do ponto de vista estritamente psicanalítico, pensando o tempo e dentro da intimidade da clínica, descontar vida e morte, não usar momentaneamente esses conceitos – é impossível passar a vida sem usá-los – e ficar com o desnorteamento fundamental do homem, tem sido, para mim pessoalmente, talvez não para vocês, um caminho de extrema utilidade, porque me permite descobrir a vida e a morte. É assim que eu penso. Quando algo se cristalizou, ponho de parte, ainda que seja em termos mais ou menos retóricos e digo-me – o homem não tem norte, nem para a vida nem para a morte, deixemos que apareça. Esse deixar que surja para tomar em consideração da Teoria dos Campos não é mais que isso. Acho que Freud fez coisa muito parecida, pensava muito parecido, embora não fizesse idêntico. Ele tinha maior dose de acumulação do que eu pretendo ter. Ainda assim, esse mecanismo de ruptura de campo – porque isso também se chama ruptura de campo – é um dos ingredientes fundamentais também em Freud. Seria matéria para outra discussão. Podemos também fazer isso, pôr de parte a morte e a vida para deixar que elas apareçam para nós. Uma sugestão: façam isso com confiança, porque elas vão aparecer, a morte e a vida, não há risco de escapar delas.

Obrigado.

 

Referências

Herrmann, F. (1981, 12 de julho). O atentado. Folha de S. Paulo, Folhetim, pp. 10-11.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). O mundo em que vivemos. In F. Herrmann. Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (3ª ed., pp. 153-214). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2003). Psicanálise e política no mundo em que vivemos. Trieb, 2(2), 235-263.         [ Links ]

Herrmann, F. (2006). Psicanálise e política no mundo em que vivemos. Percurso, 36, 5-24.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
LEDA HERRMANN
Rua Agrário de Sousa, 106
01445-010 – São Paulo – SP
tel.: 11 3088-8123
E-mail: herrmannfl@globo.com

FERNANDA SOFIO
Av. Eng. Luís Carlos Berrini, 1748, conj. 1608
04571-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3869-8961
E-mail: fernanda.sofio@unifesp.br

Recebido: 03/11/2013
Aceito: 23/11/2013

 

 

* Membro da SBPSP. Presidente do CETEC. Doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP. Colíder do Grupo de pesquisa CETEC, CNPq/UFU. Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento (Casa do Psicólogo, 2007).
** Fabio Herrmann (1944-2006) foi presidente da SBPSP e da FEPAL. Criador de original pensamento psicanalítico crítico heurístico, deixou-o testemunhado em sua extensa obra escrita. Destacam-se, entre outros, os três livros que compõem a trilogia Andaimes do Real, cujas últimas edições são da Editora Casa do Psicólogo.
1 Conferência proferida na SBPSP, em 07/10/2005. O presente artigo foi elaborado a partir do registro gravado de sua fala. Preparação de texto Fernanda Sofio e Leda Herrmann. Notas, referências bibliográficas e resumos de Leda Herrmann.
2 Foi essa a expressão que usou para definir o estilo ficcional da escrita freudiana em A Infância de Adão e outras ficções freudianas (2002, p. 12).
3 Há pouco revelara-se o escândalo do suborno de juízes de futebol em São Paulo que provocou suspensão temporária dos resultados de alguns jogos. O caso da mala preta vai ser referido mais adiante.
4 Foi em 2005 que vieram a público os fatos que resultaram no processo jurídico posteriormente conhecido como "mensalão", envolvendo autoridades políticas do governo federal.
5 World Trade Center, Nova York, setembro de 2001.
6 Em 2006, este artigo foi republicado pela revista Percurso, com um preâmbulo de atualização.
7 O raio que transforma Clark Kent no Super-Homem, nos quadrinhos.