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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

Massa e práxis

 

Mass and praxis

 

 

Camila Salles Gonçalves*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata da construção de um ponto de partida para a compreensão de certos aspectos da vida contemporânea. Assinala que o conceito de Sartre de práxis e outros, correlacionados, como o de prático-inerte, criado em seu estudo crítico do movimento da razão dialética, podem elucidar a realidade de grupos humanos, através dos vínculos que os constituem e das práticas que os definem. A autora argumenta que é possível aproximar este estudo filosófico da análise que Freud faz da massa ou do grupo, para mostrar que os movimentos de massa são inteligíveis, se aquele que os investiga apreende seu concreto vir-a-ser na História.

Palavras-chave: Eros, Grupo, Massa, Prático-inerte, Práxis.


ABSTRACT

This article is concerned with the construction of a point of departure to the comprehension of certain aspects of contemporary life. It points out that Sartre's concept of human praxis and other co-related, as the practico-inert, coined in his critical study of the movement of the dialectical reason, can elucidate the reality of human groups, through the links that constitute them and the practices that define them. The author claims that it is possible to put this philosophical study together with Freud's analysis of mass or group, in order to show that the mass movements are intelligible if the investigator grasps their concrete coming to be in the History.

Keywords: Eros, Group, Mass, Practico-inert, Praxis.


 

 

Ano de 2013. Um clube paulistano, considerado de elite, promove noite de rock para seus associados, com a banda Skank. Estrutura de palco de grandes dimensões, telão lateral, sistema de luz e som de última geração. Pode-se dizer que o evento foi um sucesso, se o critério para tanto é a frequência maciça de sócios, o esgotamento rápido dos convites pagos por não sócios e a movimentação participativa da maioria dos presentes durante o espetáculo.

Burgueses de quatro gerações movimentavam rítmica e uniformemente os braços, sem que ninguém pedisse. A imagem poderia ser a de um show em qualquer das inúmeras partes do mundo, inclusive os promovidos em praça pública, em jogo de futebol, em show popular de funk, funk gospel ou outro qualquer. O serpenteio de braços, mecanismo de gesticular, modo de participar de espetáculos, na sociedade do espetáculo, ocorre em todas as classes sociais. Expressam alegria os gestos? Os interessados em tal interpretação responderão, de imediato, que sim, é claro. Como saber? O que se evidencia é o processo de contaminação, que Le Bonn já constatava no comportamento de massa, acompanhado pela sugestionabilidade que caracterizaria o estado hipnótico.

Concordando com isso, Freud apontou algo em comum no enamoramento: há um deixar-se conduzir, um arrefecimento do controle racional. Evoco algumas curiosas e belas imagens que trazem as freiras possuídas pelo demônio, em Madre Joana dos Anjos, filme de Jerzy Kawalerovsky (1961). À mercê do contágio, elas realizam a insensatez espetacular. Os delírios, encenados ou não, de Madre Joana, sua coreografia alucinada, têm imediata propagação nos movimentos das demais freiras. Regida com maestria, a linguagem cinematográfica faz-nos penetrar na beleza que pode emanar deste fenômeno.

O psicanalista e pensador da psicanálise, Fabio Herrmann, situou o reino do contágio na patologia dos possíveis, que faz parte da formação do "limiar delirante, a condição necessária para a instalação de um delírio (Herrmann, 1998, p. 129). Com efeito, entre a festa e as manifestações que ocorrem nas ruas, pode estender-se o campo onde o sujeito se perde de si mesmo.

É difícil não haver, para um indivíduo ocidental, algumas representações tanto da massa inofensiva, potencialmente impotente, do eterno retorno do panis et circenses, quanto da massa difícil de controlar. Hoje, ou seja, desde junho deste ano, 2013, jornalistas, especialistas de diversas disciplinas consultados, dedicam-se a pensar a respeito das manifestações populares de protesto que vêm ocorrendo em várias cidades do país.

Muitas discussões, com frequente tom de perplexidade, foram introduzidas pela pergunta: o que está acontecendo? Embora não capacitada para fundamentar respostas satisfatórias, devo afirmar que o que está acontecendo é inteligível, como, há muito tempo, Freud, ao lado de outros pensadores, nos fez ver a respeito de movimentos de massas.

Se nos permitimos traçar um paralelo entre aspectos das referidas manifestações e os exemplos de Freud, em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/1993), notaremos que aqueles que apoiam a discussão do autor com Le Bonn e outros autores a respeito de sugestionabilidade e contágio (Freud, 1921/1993, p. 73) têm semelhanças. Para Freud, o contágio é uma exteriorização da sugestionabilidade, que ele chegou a chamar de enigmática. Porém, não em relação a se constatar que esta se faz presente, e sim quanto à sua origem.

A violência, que eclode em certas manifestações, não se reduz à ação pontual dos vândalos, palavra que tem sido usada de forma indiscriminada pela mídia para designar todos aqueles cuja atuação consiste em danificar, destruir ou apoderar-se de objetos materiais. Sejam quem forem os sujeitos da ação conjunta, é óbvio que desencadeiam ou sofrem o contágio.

Também sob contágio, sob a forma de hordas violentas, as massas fascistas e nazistas assaltavam, destruíam, depredavam. Claro que é sempre possível evocar infinitas cenas de violência urbana cometidas ao longo da História. Por exemplo, para entrarmos no clima, cito as descrições feitas nas páginas de um best-seller recente. No dia 11 de março de 1938, em Viena, a mansão de uma rica família judia é invadida por camisas marrons e seus seguidores: "Nessa primeira noite vasculham o apartamento. Berram do outro lado do pátio, quando dois deles encontram o salão com seus conjuntos franceses de mobília e porcelana" (De Waal, 2011, p. 221).

As personagens do livro, baseadas em pessoas reais da família do autor, são cultas e requintadas. Os invasores não só se apossam, mas também atacam coisas como peças de porcelana, quadros, esculturas, instrumentos musicais, objetos que simbolizam posses materiais, cultura, estilo de vida: "O som das coisas se quebrando foi a recompensa por uma longa espera... os judeus finalmente pagariam por tudo o que haviam feito, por tudo o que roubaram dos pobres" (De Waal, 2011, p. 222).

Sejam mais, ou menos, bem escritas, cenas como esta, para além do estilo literário, parece nada trazer de novo, no que diz respeito à fúria desencadeada. Já vimos semelhantes, em livros e filmes sobre o fascismo, o nazismo, a revolução bolchevique, a revolução francesa. Judeus ricos, czares, Marias Antonietas, que se estilhacem sem piedade suas belas coisas. Sob regressão, ajuntamentos humanos, de diferentes tamanhos, apoderam-se de coisas cobiçadas e atacam seu valor simbólico. Contudo, não faz sentido, não traz esclarecimento algum, listar e comparar os saques e as ondas destrutivas que ocorrem ao longo da história. Estão na Bíblia, nas obras dos grandes poetas trágicos gregos, no desfecho da guerra de Troia, na obra de Ésquilo, por exemplo. Não obstante, faz todo o sentido dispormos nosso olhar e escuta para as características da sociedade que é convulsionada, que se revelam, às vezes de modo indireto, nas revoltas e nas tragédias.

Sempre pode haver criminosos, psicopatas etc., que participam de manifestações e têm ação violenta, mas pensar a respeito exige mais do que rápidas generalizações que os distinguem apenas como infiltrados ou forçam a entrar nessa categoria os mais agressivos. Acrescente-se que não traz esclarecimento algum abordar em termos gerais e abstratos o retorno do recalcado ou reprimido e que tal procedimento não faz jus à disposição freudiana para ir adiante nas investigações.

Considero oportuna a referência a Lacan feita pelo filósofo Vladimir Safatle, em sua coluna no jornal Folha de São Paulo (Safatle, 2013, p. 2), após relembrar dois tipos de explicação que vêm sendo fornecidos para as manifestações: a que afirma estarmos diante de atos de vandalismo, cometidos "por jovens protodelinquentes inebriados por seus delírios narcísicos de onipotência e infiltrados em meio a manifestações de boa vontade", e a que observaria uma violência tida como legítima por corresponder à violência policial. O autor afirma: "Melhor seria se procurássemos analisar tal violência como um profundo sintoma da vida política contemporânea" (Safatle, 2013, p. 2).

Safatle retoma aquilo que, a seu ver, Lacan gostava de lembrar: "o que é expulso do universo simbólico sempre retorna no real. Quando não é possível simbolizar uma experiência ou um desejo, ele retorna como uma reação bruta, que acaba por expressar como o próprio universo simbólico se encontra bloqueado" (Safatle, 2013, p. 2). Prossegue fazendo uma competente análise da política brasileira, utilizando sua concepção a respeito daquilo que "é expulso do simbólico". Para ele, "a política brasileira tem expulsado muita coisa de seu interior, tendendo, cada vez mais, a se limitar a discussões gerenciais sobre modelos relativamente consensuais da gestão socioeconômica" (Safatle, 2013, p. 2). Não posso acompanhar ou comentar aqui o desenvolvimento de sua análise, que recomendo. Mas pretendo sugerir, tirando proveito de seu texto, modos pelos quais a psicanálise e a filosofia, sobretudo em conjunto, permitem investigar o que ocorre e mostrar que inteligibilidade existe.

Em sua longa, profunda e exaustiva discussão da obra de Le Bonn, Freud escreveu:

Para julgar corretamente a moralidade das massas é preciso levar em conta que ao se reunirem os indivíduos da massa desaparecem todas as inibições e são chamados a uma livre satisfação pulsional todos os instintos cruéis, brutais, destrutivos, que dormitam no indivíduo como restos do tempo primordial. (Freud, 1921/1993, p. 75)

Também para refletir sobre a moralidade das massas, retomo um livro pouco lido hoje, a Crítica da Razão Dialética (1960/1980), de Jean-Paul Sartre. Quase vinte anos depois de O Ser e o Nada, o filósofo voltava a se dedicar à dialética, procurando ir além de seus primeiros passos em direção ao pensamento de Hegel e realizando um rigoroso estudo do método em Marx. Sua crítica investiga as condições de possibilidade da razão dialética, sobretudo daquilo que ela pode pensar a respeito do movimento dos grupos humanos. Para Sartre, este movimento, inseparável do movimento da História, é, ao mesmo tempo, parte do que, no âmbito desta ciência, é possível pensar. Se há um objeto da História, este é o próprio curso de seu desenvolver-se. História e grupos humanos, por assim dizer, fazem-se mutuamente.

Nas releituras das obras de Marx e dos marxistas, a crítica sartriana encontra a necessidade de disciplinas auxiliares, que permitam aprofundar o estudo de homens e situações ao longo da História, visando o conhecimento efetivo das forças presentes, sem aplicar esquemas estabelecidos a priori. De nada vale, por exemplo, afirmar, em relação a um fato histórico, que o proletariado se insurgiu contra os detentores dos meios de produção, sem analisar qual proletariado, com que características, em que momento etc.

Para Sartre, muitos teóricos do marxismo aplicam esquemas abstratos sem tomar conhecimento de cada situação concreta. A respeito do reducionismo que atribui a Lukács e a outros pensadores, considerou que levaram a filosofia marxista a uma cisão, que jogou a teoria para um lado e a práxis para outro. Assim, "A separação entre teoria e prática teve como resultado transformar esta última em um empirismo sem princípios e a primeira em um Saber puro e congelado" (Sartre, 1960/1980, p. 25).

Para superar este estado de coisas nas investigações marxistas, a psicanálise é considerada uma disciplina auxiliar importante, sobretudo porque só ela seria capaz de reencontrar os efeitos de nossa insuperável infância, só ela poderia inspecionar certas forças em ação entre os homens: "[...] é a infância que dá forma a danos insuperáveis, é ela que faz acentuadamente sentir, nas violências do adestramento e do extravio da besta adestrada, a pertença ao meio como um acontecimento singular" (Sartre, 1960/1980, p. 46).

Não, este Sartre dos anos sessenta não se declarou reconciliado com a hipótese do inconsciente. Mas, por outro lado, em suas dramáticas descrições, tudo se passa como se presenciássemos o efeito de mecanismos, em cuja detecção e análise Freud superou as ideias de Le Bonn (que, aliás, por sua vez, já integravam ideias freudianas), seu ponto de partida em "Análise do Eu e Psicologia das Massas".

O movimento da História, que Sartre denomina totalização, só poderia ser apreendido com eficácia pelo método-progressivo regressivo, o método do materialismo dialético que integraria a psicanálise. Como comentei em outro lugar, para o filósofo, "a psicanálise permite recuperar a história vivida no processo da História. A definição de seu objeto, indissociável da definição do método, mostra a relação entre as vivências individuais e a estrutura do grupo humano em que se dão, subsumida pela situa ção histórica" (Gonçalves, 1996, p. 203).

O modo pelo qual o vivido é situado no momento histórico, e as classes sociais não são tomadas como substâncias definidas por seus rótulos. A classe pode ser o meio, a imersão num coletivo num campo prático-inerte. As análises sartrianas mostram que a dialética é movimento de desenvolvimento do indivíduo e de superação de estados dos aglomerados humanos:

pois o ser de classe não é somente... um caráter de materialidade insuperável existindo, a título de qualidade separada, em entidades discretas e separadas umas das outras (como por exemplo a cor dos cabelos ou a estatura). De fato, o ser de classe, longe de se manifestar como identidade de ser de realidades independentes, aparece na experiência como a unidade material dos indivíduos ou, se se prefere, como o fundamento coletivo de sua individualidade. (Sartre, 1960/1980, pp. 303-304)

Sartre nunca parou de inventar sua psicanálise, cujas versões, tanto quanto o método dialético, exigiriam longas e aprofundadas explicações, mas espero pelo menos indicar aspectos do modo pelo qual ele pretende utilizá-la, ao opor um método marxista a outros que pretendem sê-lo, cujas análises abordam as forças presentes na História de modo abstrato e mecanicista, como se investigassem forças físicas.

Posto que a ação dos grupos não pode ser compreendida como algo desencadeado de modo mecânico, peço que consideremos agora a noção de prático-inerte, que designa a situação do indivíduo impotente, anterior ao surgimento de um grupo. Sartre estabelece uma diferença entre aglomerado e grupo. A primeira palavra refere-se ao mero ajuntamento de indivíduos, cuja quantidade é contingente, pois uma quantidade diferente sempre seria possível. O exemplo mais simples é da aglomeração de indivíduos em um ponto de ônibus. Cada um é idêntico ao outro, na medida em que todos esperam.

Mas, na passividade, a espera não tem o sentido de algo vivido em comum. Isolados, os indivíduos estão dispostos como moléculas idênticas e intercambiáveis, são como "exemplares idênticos de uma mesma espera" (Sartre, 1960/1980, p. 313). No aglomerado, a relação é serial. Numa fila, todos esperam o ônibus e cada um toma um número de ordem, como numa série aritmética, em que todos os números inteiros podem ser representados pelo símbolo n+1. No estado prático-inerte, os aglomerados humanos são apenas séries e a relação de coexistência de cada indivíduo com o outro é de alienação. A ação, ou a práxis, é alienada. Reduz-se a um mero permanecer, dispor-se como molécula isolada e impotente. É evidente, o paradoxo de uma ação que consiste em inércia.

Na tradição do materialismo dialético, desde Marx e Engels, a palavra grega práxis (da qual deriva prática), designa a ação. Um dos movimentos da análise sartriana, no temário da práxis, incide sobre as relações de produção e a escassez. Esta última, "sob sua forma mais nua, exprime uma situação na sociedade e já inclui um esforço para superá-la [dépasser]; mesmo a mais rudimentar conduta deve se determinar, ao mesmo tempo, por suas relações com os fatores reais e presentes que a condicionam e com um certo objeto por vir, que ela tenta fazer nascer. É o que chamam de projeto" (Sartre, 1960/1980, p. 63).

Quando nos apresenta fatos e momentos históricos, Sartre mergulha no particular, com todas as minúcias que nos permitem entrever a concretude que deve caracterizar a análise, como ele insiste, que não se faz pela imediata aplicação de teorias e conceitos. Diante da escassez, há apenas homens imersos no prático-inerte e o aglomerado só é superado pelo surgimento do grupo. Sobrevém um movimento de fusão, no qual o grupo vem a ser como grupo em paixão. Há identificação, mas, nesta perspectiva, ele não se constitui como massa irracional: cada indivíduo reconhece os outros, mas também a si mesmo. A alienação é assim deixada para trás e a ação, a práxis, é de um e também dos demais, em conjunto.

O grupo surge como paixão e luta contra a inércia que afetava os homens. O acontecimento motor ou fator desencadeante é resposta a um perigo ou está implicado com transformações ocorridas, ou desejadas, no quadro de escassez ou de estruturas existentes na sociedade. Repito o uso didático, que já fiz outras vezes, de um exemplo recortado por Sartre da História da Revolução Francesa, pois este ainda me parece ser o mais fácil de comunicar. Trata da ação da população do Quartier Saint-Antoine, entre 13 e 14 de julho de 1789, quando o bairro foi ameaçado pelas tropas reais. Com a participação de todos, a população ter-se-ia constituído como grupo em fusão. Neste momento, cada um se reconheceria como agente do objetivo comum e o aglomerado inerte estaria superado por sua práxis comum: "Aqui aparece o primeiro 'nós', que é prático e não substancial, como livre ubiquidade do eu, enquanto multiplicidade interiorizada. Não é que eu seja um eu no Outro1: é que, na práxis, não há Outro, há múltiplos 'eu mesmo'" (Sartre, 1960/1980, p. 420).

Talvez esta visão do vir-a-ser do grupo pareça romântica, sobretudo por ignorar as moções inconscientes em situação. Mesmo assim, vale escutar esta narrativa a respeito daquilo que foi acontecendo na massa.

Freud procede de modo semelhante, na medida em que nos dá exemplos concretos daquilo que detecta, sem se isolar na metapsicologia. Mas, também teorizando, de um modo que integra "Totem e Tabu", ele nos diz que, na massa, "a atrofia da personalidade consciente, a orientação de pensamentos e sentimentos nas mesmas direções, o predomínio da afetividade e do anímico inconsciente, a tendência à execução imediata dos propósitos que vão surgindo, responde a um estado de regressão a uma atividade anímica primitiva, como a que atribuiríamos justamente à horda primordial" (Freud, 1921/1993, pp. 116-117).

É fácil pinçar e associar esta descrição com imagens de indivíduos unidos em atos violentos neste ano de 2013, durante manifestações em capitais brasileiras, e opô-la a Sartre. Por outro lado, sem aplicá-la de forma abstrata e sem juízos de valor sobre justo e injusto, cabe ao pensamento psicanalítico deter-se no modo pelo qual determinados ajuntamentos humanos, em determinadas circunstâncias históricas, explodem em ações demolidoras. Nesta hora, a meu ver, é necessário perguntar de que modo noticiários tendem a enviar para a penumbra o sentido explícito das manifestações programadas. A mídia incita e define: vândalos, Black Blocks que desvirtuam a manifestação, e propaga a repetição da cobrança de controle por parte dos poderes constituídos.

Dentre as ocorrências violentas que se dão durante a ação, ponhamos entre parênteses a instituição do saque, provável descendente de nossa primeira pulsão, que encontra esse destino, a de apoderamento. Além desta, outras ideias de Freud ainda oferecem perspectivas de investigação. Detenho-me no momento em que o autor concebe "duas psicologias" (Freud, 1921/1993, p. 118), mantendo a referência ao pai primordial, que ele aproxima do super-homem que Nietzsche teria esperado surgir no futuro. O ponto de partida do desenvolvimento da psicologia individual seria o da psicologia da massa: "A psicologia individual tem que ser pelo menos tão antiga quanto a psicologia da massa, pois desde o começo houve duas psicologias: a dos indivíduos da massa e a do pai, chefe, condutor" (Freud, 1921/1993, p. 117).

Freud discutiu a tese de Trotter (1916) sobre o instinto gregário e concluiu: "Ousemos corrigir o enunciado de Trotter segundo o qual o ser humano é um animal gregário [Herdentier], dizendo que é antes um animal de horda [Hordentier], o membro de uma horda dirigida por um chefe" (Freud, 1921/1993, p. 115).

A caminho de sua conclusão, Freud revisitou a angústia da criança, a repressão dos ciúmes narcísicos, a submissão à norma do respeito pelo outro, que deve ser tido como um igual, traçando assim o início da consciência moral. Examinou a relação entre hipnotizador e hipnotizado, aproximou o hipnotizador do ideal do eu e do chefe e esmiuçou o "caráter ominoso e compulsivo da formação da massa" (Freud, 1921/1993, p. 121).

Na Crítica da Razão da Dialética, Sartre integrou a vivência do rebento humano, lançado no meio e tateando a sua volta, destinado a ser domesticado, também prescindindo do aparente instinto gregário, invocado por outros autores, que não é nem instinto nem pulsão.

A psicanálise da Crítica parte do reconhecimento de que toda situação investigada é, necessariamente, uma situação em que o homem se perdeu de si mesmo na sociedade capitalista, fundada na exploração. Tanto a psicanálise quanto o existencialismo devem, então, reconhecer o condicionamento das situações pelo tipo de sociedade dominante, e esse tipo de determinação é tido como inteligível. Retomando a posição de Sartre, segundo a qual a única interpretação da História considerada válida é o materialismo histórico, ressaltemos um papel que ele designa para a psicanálise: o de analisar a formação de grupos, pois "A pessoa vive e conhece mais ou menos claramente sua condição através de seu pertencer a grupos" (Sartre, 1960/1980, p. 49).

Talvez o leitor pergunte de que serve pensar a partir de referências antigas, como as feitas em relação à obra de Sartre e à de Freud, que ainda por cima são incompatíveis em seus fundamentos. Utilizo-as porque nelas encontro subsídios para construirmos analisadores, ou operadores de leitura, dos fatos descritos ou televisados.

O surgimento do grupo em fusão diante do perigo permite refletir a respeito de reações violentas, não de vândalos, mas da população, efetuadas em conjunto, em comum. Pode ser o caso da reação ao primeiro recente assassínio de um adolescente, a tiros, na região do Parque Novo Mundo, que foi considerado falha individual. Sobre este tipo de falha, um policial, o tenente-coronel Adilson Paes de Souza, comenta em entrevista à Folha de São Paulo:

O problema é que temos muitas "falhas individuais". Várias por dia. A partir do momento em que eu digo que é uma "falha individual", estou admitindo que o sistema é perfeito. E isso gera um descrédito enorme na polícia. A sociedade diz "Mais uma falha individual?" (Souza, 2013b, p. 14)

Dois dias depois, a 5 km do local da morte do primeiro adolescente, um soldado, que estaria reagindo a um roubo, matou um segundo (Folha de S. Paulo, 2013, 30 de outubro, p. 4). "Ninguém testemunhou o caso, segundo a polícia. Uma série de manifestações aconteceram na rua em que Jean (o segundo adolescente morto) foi baleado e arredores. Vias foram bloqueadas, com objetos queimados e a entrada de uma transportadora foi bloqueada." (Folha de S. Paulo, 2013, 30 de outubro, p. 4) Notemos, nestas linhas e nas que transcrevo adiante, que não há informação sobre criminosos infiltrados. Mas o título da página do jornal, que inclui esta matéria, é: "20 detidos em protesto têm antecedentes criminais", seguido pelo seguinte lead: "Por falta de provas, 77 suspeitos acabam liberados pela polícia". Continuando a informação que citei, temos: "À tarde, quando o protesto reunia cem pessoas, segundo a PM, a corporação usou o helicóptero Águia e a Rota para dispersar os manifestantes. Moradores alegam que a repressão foi violenta e que alguns deles foram retirados de casa pelos policiais. Ao menos duas pessoas foram feridas com balas de borracha" (Folha de S. Paulo, 2013, 30 de outubro, p. 4).

Salta aos olhos que a narrativa dos acontecimentos, quando não é entremeada por interpretações, sugere a precariedade da chamada cidadania nesse bairro e quanto estamos longe de um simples predomínio de mecanismos de "des-repressão". Há sentidos nos movimentos de grupos, que não devem ser, é óbvio, psicologizados de imediato. Sabemos que Freud não se limitou a análises da simples regressão de que são passíveis as massas e que remeteu a Eros o enigma da sugestão. É um prazer relembrar o momento em que ele, parecendo perder a paciência com as reações adversas a seu conceito de libido, ou amor, ou Eros, com as acusações de pansexualismo e recusando a possibilidade de usar um vocabulário mais aceitável, escreveu: "prefiro evitar concessões à covardia" (Freud, 1921/1993, p. 87).

Após ter discutido várias abordagens que veem na formação da massa apenas uma perda da capacidade de pensar, aspecto que ele também considerou, Freud apresenta a seguinte síntese, em um ponto alto de suas considerações, que visam a nada deixar de lado:

Nas relações sociais entre os homens ocorre o mesmo que a investigação analítica tem averiguado para a via de desenvolvimento da libido individual. Esta se define na satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que participam do referido desenvolvimento. E em toda a humanidade, do mesmo modo que no indivíduo, somente o amor atuou como fator de cultura no sentido de uma transformação do egoísmo em altruísmo. (Freud, 1921/1993, p. 98)

Não vou retomar a complexidade das análises freudianas das identificações. Mas notemos que a práxis de um grupo ou de uma massa é permeada por esta forma da libido e lança outra luz sobre as descrições dialéticas, sem contraditá-las. O reconhecimento de si e de outrem, que mencionei acima, comentando que poderia parecer romântico, é perfeitamente plausível do ponto de vista psicanalítico.

Se há o grupo em fusão, é inevitável a ação do exército ou da polícia. A polícia é uma massa artificial, nos termos de Freud, tal como o Exército e a Igreja: "emprega-se certa compulsão externa para prevenir sua dissolução e impedir alterações de sua estrutura" (Freud, 1921/1993, p. 89). Apenas ressalto que, nessa massa, além da submissão a um líder, seja ele um chefe concreto ou uma abstração hipostasiada, existe também a identificação com os companheiros, substitutos dos irmãos, que se tornou necessário ter como iguais, resultado das vicissitudes do desenvolvimento libidinal (Freud, 1921/1993, pp. 91-95). Excluindo-se a especificidade da manutenção artificial do exército e da polícia, ocorre, entre o grupo de populares e a PM, o confronto de dois tipos de massa, em que há elementos psíquicos muito semelhantes.

Mais uma vez, não se trata de generalizar, nem, muito menos, sem buscar as mediações (a concretude das forças em jogo), de opor uma polícia vilã a uma população heroica. Seria preciso analisar e levar a sério as condições dos policiais, sua própria escassez de formação, de recursos, de apoio governamental confiável etc. A entrevista de página inteira dada à Folha de São Paulo pelo tenente-coronel Adilson Paes de Souza traz um panorama sombrio.

Foi publicada juntamente com o anúncio do então próximo lançamento do livro (Souza, 2013a) do oficial, que fez mestrado em direitos humanos na Faculdade de Direito da USP. Não é possível tomar como fatos indiscutíveis os que compõem o quadro que ele descreve. Mas é preciso escutar sua afirmação de que os policiais são estimulados, por vias indiretas, a serem violentos, que é difícil resolver a crise de segurança pública também porque há lobbies poderosos interessados em agravá-la, como o das empresas de segurança privada. Se esta situação não é verdadeira, pelo menos sugere que não é impossível reconstituir as que são constatáveis.

Recortemos, agora, algo da descrição do cenário em que houve a morte dos adolescentes. Vila Medeiros: "bairro proletário de casas simples, sem praças, clubes e áreas de lazer". Favela Bela Vista (onde foi morto o segundo), local em que o soldado que deu o tiro se perdeu: "O soldado disse à polícia que entrou na favela Bela Vista, após se perder, guiando-se pelo GPS do carro, a caminho do trabalho, quando foi abordado por assaltantes" (Folha de S. Paulo, 2013, 30 de outubro, p. 4). Um policial militar matou o primeiro adolescente, um soldado matou o segundo. Na semana anterior, "'black blocs' espancaram um coronel da PM no centro". Quais as condições de trabalho desse tenente-coronel e de sustentação da massa artificial de que ele faz parte? Há muito o que pesquisar.

Vimos acompanhando notícias que nos fazem pensar em ódio crescente, em situações em que basta usar farda, ou usar boné e Havaianas de determinado jeito, para que ocorra o ato e apareçam duas massas odientas. O amor reúne cada uma das massas que se opõem. Voltemos a Freud: "vínculos de amor (ou, expresso de maneira mais neutra, laços sentimentais) constituem também a essência da alma das massas. Recordemos que os autores não falam de semelhante coisa. O que corresponderia a tais vínculos está oculto, evidentemente atrás da tela, atrás do biombo da sugestão" (Freud, 1921/1993, p. 87).

A unidade material dos indivíduos, como diria Sartre, o ser de classe e o fundamento coletivo da individualidade, encontram seu fundamento também no que é esclarecido por esta disciplina auxiliar, a psicanálise. Sobre massa e poder, Freud faz uma afirmação essencial, seguida por uma pergunta retórica: "evidentemente a massa se mantém coesa em virtude de algum poder. E a que poder se poderia primeiro atribuir esta realização [Leistung] senão a Eros que tudo no mundo unifica [zusammenhält]?" (Freud, 1921/1993, p. 88).

Pertencer, ficar à mercê da libido, pode significar tanto a máxima identificação quanto a máxima despersonalização. Com a distância que a reflexão permite, penso que a horda primitiva e o unheimlich devem estar sempre entre nossas considerações, para não negarmos quem somos. Mas para acompanhar nossa história, registremos que não há o ressurgimento do primitivo sem mediações. O que (e como) se faz com nossa besta adestrada, em nossa classe social, em nossas inserções sociais neste país?

Freud termina seu capítulo IV de "Psicologia das massas e análise do eu", denominado "Sugestão e Libido", com as seguintes palavras: "se o indivíduo renuncia a sua peculiaridade na massa e se deixa sugestionar por outros, temos a impressão de que o faz porque sente a necessidade de estar de acordo com eles e a eles não se opor; talvez, então, 'por amor deles'" (Freud, 1921/1993, p. 88).

Na confraternização e na erotização dos shows contemporâneos, assistimos à formação da massa, que é de faz de conta, posto que sem poder, inerte, embora dançante, e com braços a serpentear. Espetáculo e submissão, controlada, à sugestão. Ninguém pergunta o que está acontecendo.

 

Referências

De Waal, E. (2011). A lebre dos olhos de âmbar. Rio de Janeiro: Intrínseca.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
CAMILA SALLES GONÇALVES
Rua Dr. Flávio Américo Maurano, 810 – Morumbi
05656-020 – São Paulo – SP
tel.: 11 3739-446
E-mail: camila_salles@uol.com.br

Recebido: 18/11/2013
Aceito: 23/11/2013

 

 

* Professora de filosofia e doutora pela FFLC da USP, psicóloga pela PUCSP, coordenadora do Conselho Editorial de Resenhas de Percurso/Revista de Psicanálise, autora de Desilusão e história na psicanálise de Jean-Paul Sartre, coautora de Escritas do Desejo – Crítica literária e psicanálise, dentre outras obras.
1 Sartre, antes de Lacan, grafou Autre (Outro) com maiúscula. O que pode haver em comum, entre os termos usados por um e outro autor, levaria a uma longa discussão. Mas, para Lacan, o Autre é o inconsciente e, para Sartre, a hipótese do inconsciente é dispensável, além de levar a concepções mecanicistas da vida psíquica.