SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36 número57O lugar da fala na cidadeDa homogeneidade das massas ao singular do desejo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

O singular no plural II: o analista e a multidão1

 

Singular in plural II: the analist and the mob

 

 

Ester Hadassa Sandler*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A disseminação das manifestações de massa no Brasil, a partir de agosto de 2012, foram o ponto de partida para este artigo onde considero algumas ideias de Elias Canetti sobre o assunto em paralelo a contribuições psicanalíticas sobre fenômenos similares. Tento estabelecer um tipo de diálogo entre esses dois conjuntos de ideias.

Palavras-chave: Manifestação, Massa, Canetti, Freud.


ABSTRACT

The spreading of mass manifestations in Brazil from august 2012 onwards was the starting point of this paper where I bring into consideration a few ideas by Elias Canetti on the issue alongside with psychoanalytic contributions on similar phenomena. A sort of dialogue is established between these two sets of ideas.

Keywords: Manifestation, Mass, Canetti, Freud.


 

 

Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém fundo sem fundo

Iniciadas em agosto de 2012, na cidade de Natal, manifestações contra o acréscimo de vinte centavos no valor da tarifa do transporte público, expandem-se ao fim do primeiro semestre de 2013 para praticamente todas as capitais e inúmeras outras cidades do país, mobilizando centenas de milhares de pessoas de forma exponencial e exibindo características dos fenômenos de massa descritos por Elias Canetti. Multiplicam-se os motivos de protesto: reivindicações e protestos muito importantes em termos sociais e políticos e solicitações bastante particulares, e do cotidiano, ocupam lado a lado e democraticamente os cartazes e faixas exibidos.

As forças destinadas a preservar a ordem pública usam de violência ao tentar conter e reprimir os protestos, ferindo manifestantes e profissionais de imprensa, o que mobiliza quase que instantaneamente o apoio da população. As manifestações se agigantam. Os confrontos intensificam a adesão maciça aos protestos, acirrando também a violência dos participantes. Passam a ocorrer atos de franco vandalismo. A situação que se repete quase que diariamente, em vários lugares do país, principalmente durante os meses de junho e julho de 2013, assemelha-se a uma batalha campal com ataques a edifícios públicos, veículos de imprensa, incêndios e saques.

Usando a nomenclatura criada por Elias Canetti (1960/2005), forma-se uma massa aberta2 e de inversão3 que apenas se fortalece e cresce no confronto com a polícia. O cristal de massa – grupo fechado, limitado e claramente identificável como desencadeante do fenômeno de massa – parece ser constituído nessa primeira etapa por um grupo intitulado Movimento Passe Livre, MPL, um movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, cuja principal bandeira seria a migração do sistema de transporte privado para um sistema público, fato que garantiria o acesso universal através do passe livre e traria um sistema de transporte sem exclusão social. Tentativas de infiltração e manipulação do movimento por outros grupos, outros cristais de massa, de modo a tirar proveito das manifestações para fins políticos e partidários são rechaçadas.

As manifestações escapam também ao controle do MPL, cujas reivindicações são parcialmente atendidas, e estendem-se no tempo e no espaço. Aqui e acolá perdem a força, rareiam; preservam a aprovação de mais de 90% da população apesar dos transtornos em seu cotidiano. Grupos com outras características, incluindo a presença de Black Blocs, passam a se infiltrar nas diversas manifestações e protestos que perduram até o momento. A presença e atuação do chamado bloco negro intensifica a violência; suas máscaras e capuzes ocultam a identidade das pessoas que as usam, mas configuram-nas também simbolicamente mais assombrosas e intimidadoras do que as muitas pessoas que passam a usar nos protestos as máscaras venezianas de Guy Fawkes, personagem de uma história em quadrinho chamada V de Vingança, em parte para preservar o anonimato e em parte quase que carnavalescamente. Os componentes do bloco negro consideram-se anarquistas, e sua tática de violência consiste em causar danos materiais às instituições vistas como opressivas. Na prática: depredar e saquear estabelecimentos privados – agências bancárias entre eles – e pichar paredes, atirar coquetéis molotov contra coisas, atingindo eventualmente pessoas.

 

Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão

A massa destrói preferencialmente edifícios e objetos. Como frequentemente se trata de coisas quebradiças – como vidraças, espelhos, vasos, quadros, louça –, inclinamo-nos a acreditar que é justamente esse caráter quebradiço que estimula a massa à destruição. Seguramente o ruído da destruição – o espatifar-se da louça, o tinir das vidraças – contribui de modo considerável para o prazer que se tem nela: são os sons vitais de uma nova criatura, os gritos de um recém-nascido. O fato de ser tão fácil provocá-los intensifica-lhes a popularidade; todos gritam em uníssono, e o tinir é o aplauso dos objetos. Essa destruição... nada mais é que um ataque a todas as fronteiras. Vidraças e portas são parte dos edifícios; elas constituem a porção mais frágil de sua separação do exterior. Uma vez arrombadas portas e vidraças, o edifício perde sua individualidade... o próprio indivíduo tem a sensação de que, na massa, ele ultrapassa as fronteiras de sua pessoa. Sente-se aliviado por terem eliminado todas as distâncias que o impeliam de volta a si próprio e o encerravam (Canetti, 1960/2005, p. 18).

Os excertos acima são um exemplo do que encontramos na leitura de Massa e Poder, escrito ao longo de mais de trinta anos e publicado em 1960. Suas origens remontam às experiências da juventude do autor, poucos anos antes da Segunda Guerra, nas ruas de Viena e Berlim durante as primeiras manifestações pró-nazistas. Canetti relata essas experiências em sua autobiografia e as reapresenta metamorfoseadas nesse livro, um dos mais importantes tratados do século XX.

O livro começa explorando a inversão do temor do indivíduo ao desconhecido e ao contato com outros indivíduos como uma característica da massa.

Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que está tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho... Todas as distâncias que os homens criaram em torno de si foram ditadas por esse temor ao contato. (Canetti, 1960/2005, p. 13)

A busca de igualdade também é considerada:

Somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor ao contato. Tem-se aí a única situação na qual este temor transforma-se em seu oposto. Tão logo nos entreguemos à massa não tememos o seu contato. Na massa ideal, todos são iguais... quem quer que nos comprima é igual a nós. Sentimo-lo como sentimos a nós mesmos. Subitamente, tudo se passa então como que no interior de um único corpo... (Canetti, 1960/2005, p. 14)

Segundo Canetti, o acontecimento de maior importância dentro da massa é a descarga: "É a descarga que a constitui, no momento em que todos os que a compõem desvencilham-se de suas diferenças e passam a se sentir iguais. [...] Enorme é o alívio que isso provoca. É em razão desse momento feliz, no qual ninguém é mais ou melhor que os outros, que os homens transformam-se em massa" (Canetti, 1960/2005, pp. 16-17).

A massa descrita por Canetti tende sempre a se expandir e homogeneizar, e busca sempre destruir fronteiras, aquilo que sente como oposição à sua expansão; pode ser vista como um gás cujas moléculas são os seres humanos individuais que a compõem, sujeita a que seus componentes individuais entrem em ressonância com facilidade e vibrem em uníssono, amplificando o estímulo inicial e, ao mesmo tempo, buscando um estado de menor entropia.

Na clínica, escuto de alguns analisandos impressões de espanto, perplexidade, temor, interesse, curiosidade e entusiasmo. Não são muito diferentes os comentários desorientados de especialistas, ninguém atina com o que se trata; a rotina já pesada da vida nessa grande cidade, São Paulo, passa a incluir a ocorrência das manifestações como a interferência dos fenômenos climáticos imprevisíveis e dos acidentes nos impedimentos de caminhos, no chegar ou não aos compromissos ou até conseguir voltar para casa. Alguns comparecem às manifestações, por curiosidade, ideologia ou desejo de participar de uma espécie de confraternização, onde se pode até encontrar amigos ou conhecer pessoas; para outros, a oportunidade serve para dar vazão à violência e ao ódio de modo anônimo e isento de responsabilidade, de se livrar de aguilhões.

 

Uma parte de mim pesa e pondera, outra parte delira

O aguilhão é um conceito chave para Canetti: aquilo que permanece oculto, invisível, e que não se imagina que exista em quem cumpre uma ordem – e toda ordem para o autor veicula uma ameaça de morte. Em sua concepção, o aguilhão é algo que permanece armazenado para sempre, à espera do momento em que seja possível dele se livrar impondo-o a outro alguém:

Os destinatários mais afetados pelas ordens são as crianças. Parece um milagre que não sucumbam ao peso de e que sobrevivam aos atos de seus educadores. Que, mais tarde, e com crueldade nada menor do que a destes últimos, elas façam o mesmo com seus próprios filhos, é algo tão natural quanto o comer e o falar...

Mais fácil é que se modifique a aparência de um homem, aquilo em função do qual os outros o reconhecem... do que a forma da ordem que, na qualidade de um aguilhão, nele permaneceu armazenada e inalterada. E igualmente inalterada, essa ordem é expelida, bastando que se apresente a oportunidade para tanto. A reprodução invertida de tais situações antigas constitui uma das grandes fontes de energia psíquica na vida do homem. ( Canetti, 1960/2005, p. 306)

A transição entre o inventário dos movimentos das massas e as descrições da gênese e formas de poder se faz quase imperceptivelmente, conquanto os títulos dos capítulos a indique. A experiência da morte, seu reconhecimento e, principalmente, o sobreviver a alguém – não a sobrevivência em si, mas o ser sobrevivente –, crucial para Elias Canetti, é o ponto de inflexão na troca de planos entre massa e poder, sempre interligados.

[...] O momento em que um homem sobrevive a outro é um momento concreto e eu creio que a experiência desse momento tem conseqüências muito importantes. Creio que essa experiência é ocultada pelas convenções sociais, pelo que se deve sentir quando se experimenta a morte de outro ser humano, mas que por baixo, escondidos, existem determinados sentimentos de satisfação, que às vezes podem inclusive ser de vitória – por exemplo no caso de uma luta –, pode derivar-se algo muito perigoso se eles se produzem com freqüência e se acumulam. A meu ver, essa experiência da morte alheia, perigosamente acumulada, é um germe essencial do poder. (Adorno & Canetti, 1962/1988, p. 117)

Também não há cesura entre a descrição de funções fisiológicas, gestos puramente físicos e comportamentos; entre estes e os estados mentais, entre animais e homem, antropos: "Pode-se muito bem contemplar a ânsia de destruição nos macacos e nos homens como exercícios de dureza para a mão e os dedos..." (Canetti, 1960/2005, p. 217). Um inventário completo do homem no plural, tomado genericamente e visto em sua dimensão grupal, escrito de modo à primeira vista desapaixonado e distante, como um tratado físico-químico sobre substâncias inertes, mas sem a formalidade dos textos científicos. Ao mesmo tempo, a qualidade literária e estética, a subjetividade das descrições fazem dessa leitura uma experiência de intensa angústia e dor, no reconhecimento do desafio do tornar-se humano. O que vem a ser isso, tornar-se humano?

Paulo Sandler, em Bion and Poetry, livro que se encontra ainda no prelo, escreve:

Há quatrocentos anos, Francis Bacon (1625) e Baruch Spinoza (1655) iniciaram leitura não religiosa, isenta de misticismo, dos escritos considerados até então "sagrados", apócrifos ou não, usando o confronto crítico de correspondência: examinar se hipóteses ou ideias teriam contrapartida na realidade, algo que lhes confere – ou não – Verdade. Estes mestres renascentistas reintroduziram o termo "verificação", pois a Ciência mesopotâmica havia sido proibida por dogmatismo político-religioso imposto pelo catolicismo romano e havia sido depositada temporariamente na Civilização Andaluz. Fizeram-na renascer de suas próprias cinzas; em sua esteira Giambattista Vico (1744) demonstrou a origem da palavra "humano": cadáver e/ou a terra que o envolve, húmus. Do trabalho deles evolveu na França, Alemanha e Inglaterra, o Iluminismo. Totem e Tabu, como todas as contribuições de Freud após a descoberta da psicanálise, têm na realidade psíquica sua base mais profunda.

Reúno essas ideias com as de Canetti: Humano é, pois, aquele que testemunha a morte de outro humano, um sobrevivente.

Em Totem e Tabu Freud conta a história da humanização do homem, quando descobre e realiza a concepção de pai, mãe e casal criativo. Quando experimenta a culpa, mesmo sob forma persecutória pela morte de alguém que também é amado. Quando tem de aprender com essa experiência e tentar controlar e postergar a realização de seus desejos, homicidas ou sexuais. O postulado básico, a universalidade do complexo de Édipo, remontando suas origens aos primórdios da própria civilização que ele mesmo inaugura, Freud derivou da sua experiência clínica.

 

Uma parte de mim é permanente, outra parte se sabe de repente

Em 1921, Freud enfoca as diferenças entre a psicologia de grupo e a do ego, valendo-se de ideias de Le Bon e Trotter. Do primeiro, a observação de que indivíduos ao se tornarem membros de um grupo perdem suas singularidades e passam a apresentar uma mentalidade coletiva "que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento" (Le Bon, 1855/1920, citado por Freud, 1921/1976).

Quais seriam as características predominantes desses atos que, segundo Le Bon, se expressam apenas em condição de grupo? A tendência de uivar com os lobos ou caçar com a matilha justifica-se, em última análise, pelo princípio do prazer, pelo temor à autoridade detentora de um poder ilimitado e pela ameaça representada por um perigo insuperável, enquanto o instinto gregário, descrito por Trotter, fica respaldado pela teoria da libido. Freud reformula a ideia de Trotter, ao observar no grupo a necessidade psicológica de seguir a um líder:

O sentimento social, assim, se baseia na inversão daquilo que a princípio constituiu um sentimento hostil em uma ligação da tonalidade positiva, da natureza de uma identificação. Na medida em que, até aqui, pudemos acompanhar o curso dos acontecimentos, essa inversão parece ocorrer sob a influência de um vínculo afetuoso comum com uma pessoa fora do grupo. Nós próprios não encaramos nossa análise da identificação como exaustiva, mas, para nosso presente objetivo, basta que retrocedamos a esta característica determinada: sua exigência de que o igualar seja sistematicamente realizado. Ousemos, então, corrigir o pronunciamento de Trotter de que o homem é um animal gregário, e asseverar ser ele de preferência um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida por um chefe. (Freud, 1921/1976, pp. 153-154)

Bion acompanha Freud na ideia de que a psicologia de grupo não pode diferir da psicologia do indivíduo, porque esta última é uma função da relação de uma pessoa com outras pessoas, e na relutância de atribuir à dimensão quantitativa a capacidade de despertar em nossa vida mental um novo instinto que, de outra maneira, não iria entrar em atividade. Mas, acresce à necessidade de postular um instinto de horda, outra dimensão, pois, para Bion:

[...] o indivíduo é um animal em guerra, tanto com o grupo quanto com aqueles aspectos de sua personalidade que constituem sua "grupicidade". Freud limitou esta guerra a um embate com a "cultura", mas eu espero mostrar que isso requer uma expansão maior. (Bion, 1992/2000, p. 168)

Penso que a expansão a que Bion se refere diz respeito à postulação de uma bipolaridade de todos os instintos, o polo que chama de narcisista e o que chama de socialista, resultando em um conflito intrapsíquico ubíquo e inescapável:

Essa bipolaridade dos instintos refere-se à sua operação como elementos na satisfação da vida do indivíduo como indivíduo e à sua operação como elementos na sua vida social, ou como Aristóteles descreveria, como um "animal político". Quando mencionamos apenas a sexualidade, desconsideramos um fato contundente: que a atividade dos instintos agressivos oferece ao indivíduo um problema ainda mais perigoso para ele solucionar. Estes instintos agressivos, graças à bipolaridade já mencionada, podem impor ao indivíduo a necessidade de lutar pelo seu grupo, o que implica necessariamente uma possibilidade de morrer; concomitantemente, esses mesmos impulsos agressivos impõem também a necessidade do indivíduo agir no interesse de sua sobrevivência. (Bion, 1992/2000, p. 117)

A pulsão que predomina a cada momento em cada polo – pulsão de vida ou de morte – será fundamental para definir cada configuração possível.

 

Uma parte de mim é só vertigem, outra parte linguagem

Em "Totem e Tabu", Freud faz sua primeira tentativa de aplicar o ponto de vista e as descobertas da psicanálise a alguns problemas não solucionados da psicologia social, procurando, em suas palavras, atingir três metas: diminuir a distância existente entre os estudiosos dos diferentes assuntos, oferecer a ambos os lados o que a cada um falta e incentivar a crença de que uma cooperação ocasional entre disciplinas seria proveitosa para a pesquisa. Supondo que a vida mental do homem considerado primitivo poderia ser o "retrato bem conservado de um primitivo estágio de nosso próprio desenvolvimento" (Freud, 1913/1974a, p. 17), Freud acreditava que uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos, como vista pela antropologia social, e a psicologia do neurótico, como foi revelada pela psicanálise, poderia mostrar numerosos pontos de concordância, lançando nova luz sobre fatos familiares às duas ciências.

Sempre me chamou a atenção o fato de Elias Canetti não fazer nenhuma referência à psicanálise e evitar cuidadosamente usar qualquer de seus conceitos, até mesmo o termo "inconsciente", tão implícito na definição de aguilhão mencionada acima. Freud nunca é citado, suas ideias tampouco contestadas, mesmo no último capítulo do livro Massa e Poder, que trata do caso Schreber. Conquanto fale de emoções, sentimentos e fenômenos psíquicos, nenhum conceito ou autor psicanalítico integra a vasta bibliografia relacionada por Canetti.

Tampouco encontro referências a Elias Canetti em autores psicanalíticos, por exemplo, Roger Money-Kyrle, que escreveu sobre tantos temas correlatos e, a princípio, teria grande chance de conhecê-lo ou a suas ideias. Foram contemporâneos, possivelmente estiveram muito próximos em experiências de guerra e de manifestações de massa no princípio do nazismo, nos círculos culturais e nas ideias vigentes na primeira metade do século XX. Ambos eruditos, estudiosos de ciências humanas, humanistas.

Para mim, a correlação de descrições de Canetti com contribuições da psicanálise ocorrem com alguma facilidade. Como não pensar em "Uma criança está sendo espancada" na observação sobre a vulnerabilidade das crianças às ordens de adultos? Outra passagem em que considero natural estabelecer a correlação é a que se refere à misericórdia, que Canetti chama de "poder do perdão" (1960/2005, p. 298). Refere-se a toda gama de mecanismos por meio dos quais o ser humano tenta dar conta de suas pulsões e que Freud descreveu como as vicissitudes dos instintos. Penso ser relevante fazer uma menção especial ao mecanismo de reparação, proposto por Klein, e cuja complexidade talvez não tenha sido ainda devidamente reconhecida.

Em função dessas indagações, li e reli a entrevista concedida por Canetti a Theodor Adorno, ocorrida em março de 1962 e publicada como "Diálogo sobre as massas, o medo e a morte" (1962/1988).

 

Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida e morte – será arte?

Já no início dessa conversa, Adorno indaga sobre a distância que guarda de Freud e da dureza de suas críticas em relação às suas ideias.

Adorno: Eu sei que freqüentemente o senhor se distancia muito de Freud, e que mantém posições críticas muito duras em relação a ele. Mas não há dúvida de que o senhor está de acordo com ele em uma questão de método, que é a seguinte: Freud salientou com insistência – sobretudo na época em que a psicanálise se achava ainda em fase de formação, quando ainda não havia se constituído totalmente – que não tinha de maneira nenhuma intenção de contestar ou rechaçar os resultados de outras ciências consolidadas, mas simplesmente queria acrescentar algo que havia sido esquecido por elas. E para Freud os motivos desse esquecimento são algo muito essencial, uma espécie de caráter-chave para a vida coletiva do homem, precisamente como no seu caso. (Adorno & Canetti, 1962/1988, p. 116)

Canetti desenvolve suas ideais, mas contorna elegantemente a questão das suas ressalvas:

Vi que o senhor falou de Freud: eu sou o primeiro a admitir que a forma como Freud começava as coisas, desde o princípio, sem se deixar assustar ou desviar por nada, me marcou profundamente, durante meu período de formação. É certo que atualmente eu já não acredito em alguns de seus resultados e que devo me opor a algumas de suas teorias específicas. Mas tenho, como sempre, o máximo respeito pela maneira como ele enfrentava as coisas. (Adorno & Canetti, 1962/1988, p. 117)

Outras menções de Adorno a pontos de contato com Freud, ou diferenças, não são respondidas por Canetti, como na seguinte passagem:

Adorno: Na tradição da psicologia social mais recente repetidas vezes se chamou a atenção para o arcaísmo que transparece nas formações de massas – primeiramente Gustave Le Bon que, em sua Psicologia das Massas, em uma primeira aproximação, entendeu esses modos de comportamento arcaicos, irracionais das massas em uma série de momentos, de maneira puramente descritiva, e posteriormente os reconduziu à categoria bem mais problemática e vaga de sugestão; a seguir Freud, que em sua pequena mas muito importante (ao menos a meu ver) obra "Psicologia das Massas e Análise do Ego", tratou de sustentar a descrição das massas de Le Bon, que ele aprovava, com uma derivação genético-psicológica. (Adorno & Canetti, 1962/1988, p. 123)

Canetti discorre então longamente sobre o conceito de malta, suas subdivisões e desdobramentos, até que o entrevistador insiste, talvez exasperado:

Adorno: Agora me permito voltar mais uma vez à pergunta que lhe coloquei antes e na qual o senhor até agora não se deteve; a pergunta sobre as diferenças entre sua abordagem e suas teorias sobre a massa e as de Le Bon e Freud, que são também muito conhecidas – em geral a fecundidade de uma teoria reside essencialmente nas diferenças mínimas pelas quais se separa de teorias contíguas. (Adorno & Canetti, 1962/1988, p. 128)

Então o entrevistado finalmente se dispõe a falar das diferenças, que consistem principalmente da teoria de Freud depender muito das descrições de Le Bon e da escolha dos dois grupos em que baseia a sua teoria de massa, a Igreja e o Exército, grupos que são hierárquicos, enquanto as massas para ele não o são.

Canetti: O exército é uma reunião de pessoas que são mantidas juntas através de uma determinada estrutura de mando precisamente para que não se convertam em massa. Em um exército é extremamente importante que através de uma ordem cinco homens possam ser divididos e trezentos utilizados em qualquer lugar como uma unidade. O exército é divisível, a qualquer momento. Às vezes, em determinados momentos, no momento da retirada ou de um ataque particularmente violento, pode se converter em massa; mas em princípio, a meu ver, o exército não é totalmente massa. (Adorno & Canetti, 1962/1988, p. 129)

Outra diferença considerada significativa é que Freud na realidade só fala de massa que tem um chefe. Freud vê sempre um indivíduo que as massas têm como ponto de referência, o que conduz à questão do pai da horda (ou malta, como prefere Canetti). Penso que a observação sobre a diferença de grupos com ou sem líder oferece um campo de investigação assim como aquela que diz respeito ao fator quantitativo. De fato, a horda ou malta era constituída por grupos limitados de 10 a 30 indivíduos, com objetivos definidos, enquanto a massa pode reunir centenas de milhares, com múltiplos objetivos e variedade de afetos. A quantidade afetaria a qualidade?

Bion faz a seguinte observação:

Suponha que eu queira ter um método de medição ou manipulação matemática, que fosse apropriado ao mundo da emoção com o qual estou acostumado; ouço um bebê chorando; fico cheio de pena da pobre criaturinha e possivelmente do pai ou mãe que estejam ocupados em cuidar dela. Supondo-se então que eu ouça dois bebês chorando – eu poderia ficar ainda mais perturbado. Supondo-se, no entanto, que eu ouça cinqüenta bebês berrando e chorando do mesmo modo; ao invés de me ver tomado com uma compaixão cinqüenta vezes maior, descubro que estou me divertindo com o alarido. O que estaria ocorrendo? Como expressá-lo matematicamente? Eu poderia dizer que deveria estar – no que diz respeito a qualquer sistema matemático que eu conheça – cinqüenta vezes mais perturbado ou deprimido. No entanto, neste exemplo, a quantidade efetuou uma mudança emocional; assim, as emoções com as quais estou querendo lidar, medir, falar a respeito de, enfrentar, alteraram-se qualitativamente, quando eu esperaria uma alteração em quantidade. (Bion, 1992/2000, p. 366)

Além de sugerir uma mudança qualitativa derivada de uma situação quantitativa, a mudança emocional, no bem-humorado exemplo usado, dá-se em direção a uma espécie de anestesia ou indiferença. Sabe-se que alterações desse tipo ocorrem em termos sensoriais, quando os estímulos aferentes são excessivamente intensos, implicando uma espécie de bloqueio em níveis centrais. Não seria descabido pensarmos que o mesmo possa ocorrer em termos emocionais.

Canetti fala de outras diferenças e discordâncias: a questão da decomposição das massas e, principalmente, o conceito de identificação, tão fundamental em psicanálise.

A mim interessa sobretudo o conceito de identificação. Considero esse conceito não totalmente ponderado, não suficientemente preciso, não completamente claro. Em muitas passagens de sua obra, quando fala de identificação, Freud diz que se trata de um modelo, que a criança por exemplo se identifica com o pai e queria ser precisamente como o pai. O pai é o modelo. Seguramente isso está certo. Mas o que acontece realmente nessa relação com o modelo ainda não foi descrito com precisão. Com certeza o senhor se surpreendeu um pouco pelo fato de que uma parte de meu livro seja dedicada aos problemas da metamorfose. O segundo volume concederá uma importância ainda maior a esse tema. Eu me impus verdadeiramente a tarefa de estudar desde o princípio todos os aspectos da metamorfose, de maneira que ao final possa estabelecer o que é realmente um modelo, o que acontece realmente entre o modelo e quem assume um modelo. Talvez só então possamos ter conceitos mais claros da identificação. Enquanto isso não acontecer, estaria mais propenso a evitar o conceito de identificação. Ao longo de toda a minha descrição da massa o senhor não encontrará nunca nenhuma referência a ele. Trato de prescindir absolutamente dele. Só citei alguns pontos, também há outros.
Adorno: Essa crítica me parece extraordinariamente fecunda e justa em muitos aspectos. De fato, nesse ponto, precisamente por causa de sua tendência fundamental a substituir a teoria da sociedade por uma psicologia individual ampliada para a coletividade, Freud pensa continuamente nos quanta fundamentais (Grundquanten), invariantes e invariáveis, do inconsciente, omitindo modificações históricas essenciais. Então sua psicologia social fica um pouco abstrata. Portanto, eu subscreveria plenamente que Exército e Igreja não podem de nenhuma maneira ser incluídos no conceito de massa, que talvez sejam mais reações a ele, nas quais esse momento arcaico de massa, que Freud tinha presente, comparece também como momento, mas vem essencialmente negado e dominado precisamente pelos momentos hierárquicos e também por um determinado tipo de racionalidade. E se vai adiante chega-se ao fato de que também os chamados fenômenos de massa com os quais temos que nos haver hoje não podem ser totalmente concebidos como simples manifestações primárias da massa arcaica – como fez Freud durante a I Guerra Mundial –, mas neles se descobrem formas reativas, autênticas regressões a estágios sociais que não são de nenhuma maneira conciliáveis com o presente. (Adorno & Canetti, 1962/1988, p. 130)

Desse instigante diálogo, se não resulta clareza a respeito das razões da inexistência de outros diálogos entre a psicanálise, psicanalistas e Canetti, ficam alguns pontos a serem considerados.

Com relação à questão da identificação e dos modelos, teria Canetti desconhecido as contribuições de Melanie Klein sobre os mecanismos de cisão e identificação projetiva, que correspondem tão bem, em minha opinião, às tentativas de libertação de aguilhões, na comunhão, equalização e apagamento das singularidades dos indivíduos quando engolfados em fenômenos de massa? Fenômenos que podem ter sido descritos por Le Bon e Trotter como sugestão ou contágio?

Para Bion (1992/2000), o mito de Édipo, a versão do mito por Sófocles e as próprias descobertas de Freud são tentativas de resolução de uma encruzilhada de desenvolvimento. Para Money-Kyrle, Édipo sintetiza o "homem em um estágio crítico de seu desenvolvimento, tem que enfrentar um novo tipo de escolha: a que se dá entre o autoconhecimento e o autoengano" (1977/1996, p. 384). Bion esperava mostrar que:

[...] essas tentativas de resolução estão muito mais dispersas no tempo e são muito mais variadas nas suas formas e métodos de resolução adotados do que temos nos dado conta, ou até mesmo suspeitado, até hoje. Podemos discernir uma dessas tentativas nos assuntos envolvidos na produção de um sistema dedutivo científico e do cálculo que o representa. (Bion, 1992/2000, p. 209)

Considero que Melanie Klein, e depois o próprio Bion, detalharam esse retrato bem conservado de estágios primitivos de nosso desenvolvimento, abrindo caminho para outras contribuições; e, novamente, suas descobertas se originaram da clínica. Ao conjunto de formulações, e aos fenômenos que essas descrevem, me referi em outros momentos como o "antes da encruzilhada". Édipo, como Freud o descreveu, não seria então o ponto de partida no processo de humanização, mas o ponto de chegada quase nunca alcançado integralmente por todas as partes da personalidade.

Freud, em mais de um momento, propôs que não olhássemos para estes fenômenos do ponto de vista da destruição de estados mais desenvolvidos; enfatizou a coexistência e superposição de vários níveis de desenvolvimento psíquico, estados mentais de várias naturezas que podem ou não se expressar e, assim, ser ou não detectados conforme as circunstâncias; destacou o papel da regressão nos fenômenos grupais.

O medo, a ambição desmedida, a avidez de poder, sucesso e riqueza de que nos fala Freud (1930/1974b, p. 81) em "Mal-estar na civilização", parecem desembocar, sob condições propícias, em um estado de insanidade contagiante, ao qual parece estar subjacente, sobretudo, um intenso fenômeno regressivo. O conflito sempre presente entre os aspectos narcísicos e sociais do homem, a serviço das pulsões de vida e de morte, potencializa exponencialmente o nível de frustração para o indivíduo e para o grupo. A dificuldade em se efetuar um grau mínimo de reparação, realimenta a culpa e a perseguição, como observamos em 2005 com a passagem do furacão Katrina por New Orleans. Após as mortes, danos e outros prejuízos causados pela violência de uma catástrofe natural, deflagrou-se uma imprevisível reação "selvagem" de vandalismo e crueldade entre os remanescentes. Alguns bombeiros e policiais impotentes para prestar socorro, ou seja, para "reparar", suicidaram-se.

A psicanálise, sem dúvida, trata do desamparo, solidão, desespero e cegueira de indivíduos singulares, no contexto de uma experiência emocional específica; pouca utilidade teriam suas ideias empregadas genericamente, apenas como conhecimento sobre a natureza humana. Mas, a percepção da multiplicidade de modos de funcionamento mentais em cada um de nós, entre elas da massa como "cenário psíquico", como diz Canetti, pode contribuir para incentivar o diálogo e a cooperação entre ciências.

 

Referências

Adorno, T. & Canetti, E. (1988). Diálogo sobre as massas, o medo e a morte: uma conversa entre Elias Canetti e Theodor W. Adorno (O. F. Nunes Jr, trad.). Novos Estudos CEBRAP, (21), 116-132. (Trabalho original publicado em 1962).         [ Links ]

Bion, W. R. (2000). Cogitações [Cogitations] (E. H. Sandler e P. C. Sandler, trads.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1992).         [ Links ]

Canetti, E. (2005). Massa e poder [Masse und Macht ] (S. Tellaroli, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1960).         [ Links ]

Freud, S. (1974a). Totem e tabu. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Ó. C. Muniz, trad., vol. 13, pp. 20-191). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

Freud, S. (1974b). O mal-estar na civilização. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. O. de A. Abreu, trad., vol. 21, p. 81). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Freud, S. (1976). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (C. M. Oiticica trad., vol. 13, pp. 91-179). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Gullar, F. (2013). Traduzir-se. In F. Gullar. Na vertigem do dia (pp. X-XX). São Paulo: José Olympio. (Trabalho original publicado em 1980).         [ Links ]

Money-Kyrle, R. (1996). Política do ponto de vista da psicanálise. In D. Meltzer (Ed.). Obra selecionada de Roger Money-Kyrle [Collected Papers of Roger Money-Kyrle] (E. H. Sandler & P. C. Sandler, trads., pp. 382-390). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1977).         [ Links ]

Sandler, E. H. (2006). O singular no plural: o analista na terra de ninguém. Trieb, 5 (2), 339-360. (Trabalho original publicado em 2005).         [ Links ]

Sandler, E. H. (2012). O plural no singular: uma contribuição à reflxão sobre ética. Revista Brasileira de Psicanálise, 46 (1), 39-51.         [ Links ]

Sandler, P. C. (no prelo). Bion and poetry. Londres: Karnac Books.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
ESTER HADASSA SANDLER
Rua Gomes de Carvalho, 892/71
04547-003 – São Paulo – SP
tel.: 11 3045-4800
E-mail: estersandler@gmail.com

Recebido: 18/11/2014
Aceito: 22/11/2014

 

 

* Membro efetivo e Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Neste texto desenvolvo algumas ideias já mencionadas nos textos "Singular no Plural: O analista na Terra de Ninguém" (2005) e "Plural no Singular: uma contribuição à reflexão sobre ética"(2012). Os versos usados como intertítulos pertencem ao poema Traduzir-se de Ferreira Gullar. Dedico esse artigo à memória de Bertha Lerner Sandler, minha sogra, que em 1987 me apresentou Elias Canetti.
2 Massa aberta: uma massa que se forma espontaneamente e tende a crescer indefinidamente; ela se expande em toda a parte e em todas as direções.
3 Massa de inversão: pressupõe uma estratificação ou hierarquia que se inverte pela reunião de indivíduos em uma massa, de forma que consigam aquilo que isoladamente lhes fora negado.