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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

Da homogeneidade das massas ao singular do desejo

 

From the homogeneity of the masses to the singularity of desire

 

 

Claudio Kayat Bedran*

Escola Letra Freudiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As novas mídias digitais propiciam maior independência na transmissão e na circulação das informações, além de viabilizarem uma organização comunicacional mais veloz e eficaz. Com isso, é possível produzir furos na estrutura manipuladora mantida pelo poder estabelecido através dos meios de comunicação tradicionais. A psicanálise permite uma leitura destas estruturas ao definir o estatuto do imaginário, nas relações humanas, e da linguagem, na civilização. Neste contexto, o presente trabalho pretende verificar as diferenças e semelhanças estruturais entre as manifestações populares ocorridas no passado e as de junho de 2013 no Brasil.

Palavras-chave: Poder, Mídia, Totalitarismo, Massa, Linguagem e imagem.


ABSTRACT

The new digitals medias provides greater independence in the transmission and flow of information and allows a faster and more efficient communication process. Thus, it is possible to trespass the structure maintained by the manipulative forces that commonly use the traditional media system. Psychoanalysis allows an understanding of these structures to define the bases of the imaginarium and the language used in human relations. In this context, this study intends to investigate the structural differences and similarities between the popular demonstrations and riots that took place in Brazil, in the past and also in June 2013.

Keywords: Power, Media, Totalitarianism, Mass, Language and image.


 

 

Introdução

O indivíduo no Brasil atual, posterior à Guerra Fria e aos processos de redemocratização e estabilização econômica, trava uma relação com duas superestruturas de poder: o Estado e as mídias tradicionais, que visam alguns objetivos em comum como a centralização e legitimação do poder a um grupo limitado de pessoas, uniformizando a conduta da maioria e alienando-a politicamente para integrá-la na ordem estabelecida. Um governo e uma mídia que se utilizam de técnicas de propaganda e censura a serviço do fortalecimento do poder estabelecido e cada vez mais distanciado dos anseios dos cidadãos.

Os efeitos desse processo são o aumento da distância entre representantes e representados e a produção, o estabelecimento e a manutenção de indivíduos fracos politicamente diante dos grandes poderes. Neste cenário, torna-se fundamental a busca por experiências de aperfeiçoamento da democracia através, por exemplo, das novas mídias digitais enquanto campo de comunicação um pouco mais independente das mãos do Estado e da lógica de funcionamento das mídias tradicionais, com suas produções destinadas ao máximo lucro e consumo e ao estabelecimento de um grande público, de uma massa.

Sabemos que esta estrutura de massa remete aos governos totalitários, mais precisamente os governos nazista e stalinista, que ao abolirem classes, desejos particulares e ideias distintas das suas, produzem como efeito uma manipulação das consciências. Os indivíduos passam a entrar em acordo com as ideias vigentes por mais que estas os prejudiquem ou estejam em discordância com suas crenças pessoais. E, com isso, o particular de cada um fica apagado em prol de ideias uniformes, que servem aos interesses de alguns.

Hannah Arendt, a célebre teórica alemã do totalitarismo, analisando os discursos proferidos no julgamento de Adolf Eichmann, no tribunal israelense, toca na complexa questão do movimento de cooperação dos judeus com os nazistas, que caminhavam para o matadouro serena e obedientemente; além da igualmente complicada questão da cumplicidade do povo alemão, e mesmo de alguns ocupantes de cargos no governo nazista que após a guerra se disseram contrários ao massacre humano.

Ela se detém e retorna algumas vezes ao longo de sua análise a dois pontos: a insistente pergunta feita pelo promotor para as testemunhas judias de por que não se rebelaram frente aos nazistas, já que poderiam ter se organizado e estavam muitas vezes em número infinitamente maior em relação aos membros da SS, e a questão da consciência, da capacidade de reflexão sobre os próprios atos. Não apenas de Eichmann, mas de todos aqueles que, como ele, não eram monstros nem sádicos por natureza. Muito pelo contrário, os autores dos mais selvagens extermínios, os Einsatzgruppen, que atrás das linhas de frente do exército alemão vinham dizimando, a sangue frio e de forma brutal, a população de civis no leste europeu, incluindo mulheres e crianças, eram recrutados entre a elite da SS. Eram pessoas com diplomas acadêmicos. Inclusive, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com as atrocidades.

Ao apontar duas características extremas desse momento histórico, a passividade e a cumplicidade, Arendt traz à tona os alicerces dos sistemas totalitários de poder e também de todas as relações onde um lado deseja subjugar o outro para garantir a manutenção de seu poder. Tal como acontece nos governos com traços autoritários, em maior ou menor grau, onde estejam envolvidos interesses antidemocráticos em suas essências, uma vez que num sistema democrático existem princípios de soberania popular, respeito às instituições, limitação da autoridade e divisão dos poderes.

 

A irredutível ambição por poder nas relações entre indivíduos

Sabemos que desde que o homem começou a viver em grupo e a se organizar em relação com outros homens houve o impulso natural de buscar obter ascendência de uns sobre os outros. O desejo e a luta por ocupar lugares de poder parece intrínseco a qualquer relação, não sendo privilégio das relações humanas. Numa breve observação do mundo animal, fica evidente também que em todas as categorias e espécies, dos onipotentes leões e ursos pardos até frágeis insetos e peixes, encontra-se essa tendência. Primitivamente, parece ser a inclinação de todo e qualquer organismo vivo na direção evolutiva de suas espécies. E aqueles que sobrevivem e evoluem, o fazem através da luta pelo poder: somente os fortes vencem.

Numa sociedade primitiva ou no reino animal, essa vitória ocorre através da força física: os mais fortes intimidam, chegando ou não ao confronto propriamente dito, e os mais fracos recuam, intimidados e com medo de sofrerem danos físicos, sem perceber que o recuo frente ao embate produz efeitos infinitamente mais danosos, muitas vezes até fatais. Além do mais, a existência e a necessidade de confronto estão atreladas à sobrevivência.

Em sociedades mais avançadas culturalmente, a luta pelo poder pode estar relacionada com diversos fatores que não necessariamente de sobrevivência, visto que esta está supostamente garantida por uma organização civilizada de convivência. O que prevalece são ideais, de pequenos grupos, geralmente insaciáveis, mais ligados a interesses pessoais, como a ganância, a sedução, a prepotência e a vaidade. Além do mais, e acima de tudo, os seres humanos são atravessados pela linguagem, que instaura a demanda muito além da necessidade, estabelecendo um buraco impreenchível, mas que não cessa de desejar um encontro com um objeto que o suture, relegando o sujeito a uma eterna condição inquietante de desconforto. Diferentemente do reino animal ou de sociedades primitivas. O leão se contenta em dominar seu pequeno grupo somente para garantir sua alimentação, procriação do seu gene e sua sobrevivência. Não se esforça por aumentar seu poder, dominando grandes ou outros grupos. Essa sede insaciável e expansiva pelo domínio e ascendência sobre os outros é uma característica das sociedades civilizadas e de Estados jovens como o Brasil, com sistemas políticos recentes, instituições fragilizadas e alto índice de analfabetismo. Uma maioria pouco florescida politicamente contribui para que essa sede de poder perpasse os limites do inteligível e do necessário.

De todo modo, em qualquer sociedade sempre haverá aqueles que ocupam lugares de poder, os que comandam, e os que devem respeitar e consentir com o estabelecido por este poder, os comandados. Contudo, observa-se no mundo contemporâneo e, particularmente, no Brasil uma submissão com pouca ou muitas vezes nenhuma luta, uma aceitação passiva daquilo que é imposto pelo poder vigente. Quando vem a ocorrer alguma mobilização, esta se dá sempre de forma extremada, pouco civilizada e violenta, buscando efeitos radicais e efêmeros. Como o movimento dos caras pintadas, ocorrido no decorrer do ano de 1992 no Brasil, que forçou a derrubada do presidente da República, como símbolo de um sistema político inoperante e corrupto, mas que não foi continuado e não serviu para produzir reformas neste mesmo sistema político.

Para um possível funcionamento das engrenagens de uma sociedade é fundamental que haja aqueles que dirigem e os dirigidos. Mas entre eles é preciso haver o diálogo, para encurtar a distância e para equilibrar os interesses. Não se trata de derrubar ou mudar sistemas de governo, ou mesmo buscar abolir as ambições pelo poder, mas sim, um equilíbrio e refinamento maiores nessas relações. Revoluções podem ser mais serenas e conciliatórias do que seu termo, atrelado a um significado histórico de violência, pode denotar. Na maioria das vezes substituir um sistema, uma ideologia, uma estrutura ou mesmo um grupo por outro é ficar no mesmo lugar.

Esta ideia fica patente no comentário do filósofo Roland Barthes sobre o movimento revolucionário de grandes proporções que instalou uma greve geral na França e ficou conhecido como "maio de 68". Ele pontua que "a maior parte das liberações postuladas enunciava-se sob as espécies de um discurso de poder: vangloriavam-se de pôr em evidência o que havia sido esmagado, sem ver o que, assim fazendo, se esmagava alhures" (Barthes, 2007, p. 33).

 

As estruturas de poder e o anseio popular

Houve um momento ao longo dos intensos embates políticos externos no período da Guerra Fria em que os tradicionais instrumentos de poder do Estado pareciam estar perdendo seu vigor (Gaddis, 2006). Foram tempos de anarquia, onde as tradicionais e centenárias instituições estavam sob ataque popular. Um momento onde o ocupante do cargo mais poderoso do mundo, o presidente dos Estados Unidos da América, Richard Nixon, se permitiu ficar frente a frente, sem anteparo ou artifícios defensivos, com um grupo de estudantes. Nesse período histórico de luta entre ideologias, nações e blocos, a questão da autoridade interna na manutenção do poder ficou relegada a segundo plano. Os governos, tanto ocidentais quanto orientais, estavam envolvidos numa intensa disputa em escala mundial pelo poder político que dependia dos avanços tecnológicos e da ciência. A direção traçada para esta empreitada foi o maciço investimento na formação educacional.

As consequências em suas relações com o anseio popular, embora evidentes, foram inesperadas para os líderes, tomados pela miopia da política externa naquele momento: investimento em educação combinado com uma Guerra Fria no impasse foi o estopim para a insurreição. Nunca antes na história política contemporânea houve um momento em que o poder estabelecido tenha se permitido ficar tão vulnerável diante do clamor das ruas. Os revolucionários fizeram barulho, abalaram a ordem estabelecida por grande parte do globo terrestre, mas, ao final, não derrubaram nenhum sistema de poder, muito pelo contrário, deram uma lição a esses sistemas que não seria esquecida e passaria a servir como referência básica para os dirigentes no manejo da consciência popular.

Os efeitos foram diferentes em cada país: alguns, com instituições democraticamente mais avançadas, com direitos, deveres e leis mais elaboradas e garantidas, tiveram que levar estes pontos em consideração no manejo e na retomada dos instrumentos para o reestabelecimento do poder. Outros, como os países do bloco socialista, historicamente influenciados por práticas totalitárias, se valeram da força física e militar. E havia nações como o Brasil, que por se tratar de um país com idade mais nova do que as potências mundiais tradicionais, vivia em um sistema político variante e pouco estabelecido, onde a estrutura de poder vigente era indefinida e mutável.

Foi nesse amálgama de ideologias, de experiências e de indefinições que se estabeleceu o sistema democrático brasileiro que vigora até os dias atuais. E é a partir dessa mistura com limites mal delineados e conceitos pouco solidificados que esse sistema vem progredindo e se desenvolvendo no Brasil. As consequências disto são governos que se valem de expedientes que têm como herança as práticas autoritárias, uma mídia tradicional onde em sua maioria prevalece a lógica comercial em detrimento da lógica social do jornalismo e, acima de tudo, um povo conivente com estas práticas e que se permite facilmente ocupar o lugar de joguete das artimanhas que enfraquecem seus próprios direitos e liberdades.

No Brasil atual há uma classe de representantes cada vez mais autônoma e isolada dos representados, além de uma população tendendo radicalmente para o silêncio ou manifestações extremadas e bissextas, com a aceitação dos desmandos imorais dos governantes. Seria raso e simplificador demais creditar esta circunstância somente ao sistema educacional cada vez mais propositadamente abandonado e relegado a condições precárias, criadoras de uma massa sem ensino, iletrada e intelectualmente fragilizada, visto que, há, ao mesmo tempo, uma classe média, com acesso a ensinos de qualidade e informação, que igualmente silencia. A população caminha com cumplicidade para o vazio existencial, moral e financeiro da mesma forma que os judeus se organizavam em acordo com as forças nazistas para serem apresentados, listados e organizados em direção a sua dizimação.

No entanto, em relação aos judeus pode-se tentar justificar com o fato de os nazistas, num primeiro momento do empreendimento da "Solução Final", esforçarem-se por dissimular e manter distorcidas suas reais finalidades. Eles usavam eufemismos para obter a cooperação do povo judeu. Para falar em extermínio usavam palavras como reassentamento, na busca por estabelecer os conselhos com líderes judeus, que organizavam as deportações para campos de extermínio. Não há um documento oficial que faça referência ao extermínio de uma raça. Nada era dito claramente. Nenhuma ação era explanada. A busca por dissimular suas reais intenções ia das razões para se fazer aceitar usar uma estrela amarela no peito, identificando-se como judeu, até o momento final nas câmaras de gás, onde na entrada lia-se: "banho e desinfecção". Num primeiro momento, muitos judeus até ficaram satisfeitos com o estabelecimento por Hitler de proibições antissemitas no começo de seu governo. Acreditavam que após tempos de antissemitismo não oficial saberiam a partir destas leis quais eram seus direitos e limites. Além do mais havia ainda a brutal e insana violência empreendida pelas forças policiais orquestradas por Himmler, o líder da SS, que deixavam claro que poderia haver sofrimento maior do que a morte e um longo e tortuoso caminho para se chegar a ela.

Em contraposição a essa estrutura de terror, encontramos no Brasil atual forças vigentes que buscam manipular por vias incomparavelmente mais amenas e sutis. Embora os veículos de mídia tradicional se utilizem de técnicas para dissimular o real, dirigir consciências e manobrar a opinião pública, além de os ocupantes dos principais cargos políticos buscarem distorcer os fatos, se valendo da comunicação política oficial, as possibilidades de manobras, sem o uso permanente de força física, possuem um limite claro e curto para alcançarem seus objetivos.

Apesar disto, em contraste com esta verificação, identificamos uma população submissa, e consentindo com seu próprio declínio, confirmado pelos números nas urnas e pela falta de mobilização política, organizada e contínua, mesmo com a posse dos infinitos instrumentos possibilitados pelas novas mídias digitais. Mesmo dispondo de tantos exemplos históricos advindos do cenário político mundial, tal como aquele ocorrido na Segunda Guerra, que num momento em que a Alemanha nazista dominava, ainda e de forma cada vez mais brutal, grande parte da Europa e forçava, sem encontrar resistência nativa declarada, os países sob seu jugo a entregarem seus judeus, verificamos o isolado posicionamento da Dinamarca que se opôs claramente a esta orientação (Arendt, 1999, p. 189). Diferente de países que, mesmo sabotando as ordens de Berlim, como Itália e Bulgária, jamais contestaram a política nazista enquanto tal.

Este posicionamento dinamarquês não apenas forçou o recuo das assassinas garras nazistas, que qualificaram a operação na Dinamarca como um fracasso, como produziu intensos efeitos políticos e psicológicos. Tanto na população dinamarquesa, que se mobilizou para ajudar na fuga ou a esconder os judeus, quanto, e surpreendentemente, na "dureza impiedosa" das autoridades alemãs na Dinamarca, que mudaram de ideia e deixaram de ver com naturalidade o extermínio de um povo, passando a sabotar as ordens de Berlim. Donde Hannah Arendt conclui que "o ideal de dureza, exceto talvez para uns poucos brutos semiloucos, não passava de um mito de auto-engano, escondendo um desejo feroz de conformidade a qualquer preço"(1999, p. 194).

Notamos, então, a partir de inúmeros exemplos históricos, um recuo do poder estabelecido nos momentos em que existe um posicionamento político e um enfrentamento a ele. Mas, de um modo geral observamos também grande passividade da população diante do real dos fatos, que permanecem evidentes, embora haja um esforço de manipulação para mascará-los ou uma não continuidade de posicionamentos populares bem-sucedidos.

 

A estrutura de massas na contemporaneidade

A globalização que veio na esteira da queda do muro de Berlim implicou uma nova era tecnológica e de comunicação, que propiciou novos processos de produção e integração das economias. Esta era da globalização é paradoxal: pois ao mesmo tempo que potencializa e incrementa os meios de comunicação de massa, possibilita, igualmente, outros meios de comunicação mais independentes. Ela significou uma crescente interconexão e interdependência. "Com a revolução tecnológica, o universo das comunicações passou a dominar o das produções e a luta política encontrou no terreno da mídia seu novo campo de batalha." (Kellner, 1995, p. 254)

O domínio total que foi buscado pelos regimes nazista e stalinista, que sempre comandavam e se baseavam no apoio das massas, é repetido, após a Segunda Guerra Mundial, pela cultura da mídia. Esta, que foi iniciada com o rádio e alcançou seu ápice na primeira metade do século XX através do cinema, assimilou as outras culturas e se sobrepôs a elas. Uma cultura de modo geral desenvolve e domestica certas virtualidades humanas, mas inibe ou proíbe outras. A cultura da mídia, produzida segundo as normas estritas da fabricação industrial, destina-se a dissolver os gostos particulares, produzindo uma massa social, isto é, um amontoado gigantesco de indivíduos, expandindo seu mercado ao extremo. O fim prático tanto dos regimes totalitários quanto da cultura da mídia "é amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las em ação, para um objetivo" (Arendt, 1951/2012, p. 456) que constitua suas finalidades.

Segundo Hannah Arendt, "as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda" (1951/2012, p. 474). Ela esmiúça a propaganda nazista e afirma que esta "aprendeu confessadamente com a publicidade comercial americana" (1951/2012, p. 477). A eficiência deste tipo de propaganda, diz ela, evidencia uma das principais características das massas modernas, que se deixam influenciar pelo que é sentenciado sem atestar a verdade dos fatos.

Le Bon (citado por Freud, 1921/1969b) diz que os dotes particulares dos indivíduos se apagam numa massa e sua distintividade se desvanece, assumindo assim características que não possuíam anteriormente. Deste modo, passam a sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dela, tomado individualmente, o faria caso se encontrasse em estado de isolamento.

Ele busca a razão disso em três fatores: "o primeiro é que um indivíduo que faz parte de um grupo adquire um sentimento de poder invencível que lhe permite render-se a instintos que, se estivesse sozinho, teria mantido sob coerção. Ficará ele ainda menos disposto a controlar-se pela consideração de que, sendo uma massa anônima, o sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos, desaparece" (Le Bon citado por Freud, 1921/1969b, p. 97); o segundo fator é o contágio, pois numa massa o indivíduo sacrifica seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Um terceiro fator seria a sugestionabilidade, onde o indivíduo havendo perdido parte da consciência dos seus atos "obedece as sugestões do operador que o privou dela e comete atos em contradição com seu caráter e hábitos" (Le Bon citado por Freud, 1921/1969b, p. 99).

Freud também trabalha essa questão das massas dizendo que a sugestão é um fato fundamental na vida mental do homem. Ele aponta, nesse processo, a redução da capacidade intelectual e elevação da afetividade que um indivíduo experimenta quando se funde numa massa. O indivíduo na massa passa a pensar "por imagens, que se chamam umas as outras por associação e cuja concordância com o real jamais é conferida por qualquer órgão razoável. [...] Inclinada como é a todos os extremos, uma massa só pode ser excitada por um estímulo excessivo. Quem busca produzir efeitos sobre ela, não necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes" (1921/1969b, pp. 101-102). Como fica exemplificado na célebre e definidora frase de Joseph Goebbels, o ministro das comunicações do Terceiro Reich, que enuncia: "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade".

Nas massas, "cada indivíduo está ligado por laços libidinais, por um lado ao líder e por outro aos demais membros da massa" (1921/1969b, p. 121). Essa ligação é a essência de uma massa e o principal fenômeno da psicologia das massas seria a falta de liberdade do indivíduo inserido nelas. A força do líder é vital para a existência e o bom funcionamento das engrenagens das massas. Ao relatar, com sensibilidade de artista, sua experiência, inserido na multidão ao longo de um evento popular, a passeata dos cem mil, Nelson Rodrigues sintetiza poeticamente os aspectos preponderantes presentes nesta dinâmica. Diz ele:

Era uma das quase duzentas mil pessoas presentes. Aconteceu então que, imediatamente, perdi qualquer sentimento de minha própria identidade. Ali, tornei-me também multidão. Esqueci a minha cara, senti a volúpia de ser ninguém. Se, de repente, o povo começasse a virar cambalhotas, e a equilibrar laranjas, e a ventar fogo, eu faria exatamente como os demais. E, então, senti que a multidão não só é desumana, como desumaniza. Lá estávamos eu e os outros desumanizados. Pouca diferença faria se, em vez de duzentas mil pessoas, fossem duzentos mil búfalos, ou javalis, ou hienas. Há, porém, um momento em que a multidão se humaniza. Sim, em que a multidão se faz homem. É quando tem um líder. (Rodrigues citado por Castro, 1992, p. 379)

O caráter intrinsecamente fundamental do líder para o funcionamento das engrenagens da massa é exemplificado em uma passagem ocorrida nos últimos anos da Segunda Guerra, em que diante da derrota iminente, os membros do governo nazista intensificaram a propaganda relativa à importância de sacrifício pelo Führer, produzindo certos discursos aparentemente incoerentes emanados da massa. Como o de uma mulher da Baviera que fazia discursos aos camponeses no verão de 1944 em que dizia: "em sua grande bondade o Führer preparou para todo o povo alemão uma suave morte por asfixia de gás no caso de a guerra ter um final infeliz" (Arendt, 1999, p. 126).

 

Os atos psíquicos narcísicos e os atos psíquicos sociais

Um dos pontos essenciais de aproximação entre a psicologia individual e a psicologia grupal é a identificação. Freud coloca que "a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto e se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal" (1921/1969b, p. 136). E, ainda, que pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada entre pessoas. Ele percebe que esses laços emocionais numa massa se constituem através da identificação, que molda o próprio eu de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo.

Ele traça um paralelo entre a psicologia das neuroses e a psicologia das massas, colocando em evidência as características principais dessas duas estruturas, dizendo que tanto numa quanto noutra a verificação do real dos fatos cai para o segundo plano. Desse modo, a atividade mental do indivíduo não se encontra livre e não se guia pelas evidências, mas pela realidade psicológica e pela ilusão. Este caminho é ao mesmo tempo a causa dos conflitos neuróticos e a menos complicada possibilidade de constituição do aparelho psíquico. Podemos notar, então, a prevalência e a função da ilusão e do desconhecimento na estrutura e na constituição de um sujeito e igualmente de uma massa.

Há algo que naturalmente se passa na consciência de cada indivíduo na avaliação dos mesmos acontecimentos. Sabe-se que a pessoa pode interpretar um mesmo fato de inúmeras formas diferentes. Freud destrincha as estruturas de formação e desenvolvimento da civilização, marcadas pelo mal-estar inerente à linguagem (1929/1969a). Esta, tão necessária para as relações entre seres humanos, mas também muito precária e, por isso, propícia a mal entendidos e aberta a manipulações. Ele dedica-se a compreender a forma como a comunicação é feita para induzir consciências para um mesmo objetivo, criando-se assim uma estrutura de massa, onde o particular de cada um fica apagado em prol de ideias uniformes, que servem aos interesses de alguns. Além do mais, Freud traz à tona as engrenagens psicológicas que propiciam esse desviar de foco do indivíduo e sua permissividade em se submeter a interesses outros que não os dele.

Ele analisa, assim, a inerência da ilusão na compreensão e interpretação do que é emitido e recebido. Para Lacan, o estabelecimento e a constituição do aparelho psíquico se dão pelos desfiladeiros ilusórios do imaginário, pois o real é intocável e indizível. É o impossível que está fora do discurso e que, no entanto, alguma relação do sujeito com o real é necessária e possível, estabelecendo-se a partir de uma alienação do sujeito.

Em seu texto "O estádio do espelho como formador da função do eu", Lacan trabalha a constituição do eu especular, imaginário, que tem por funções ser o encobrimento do buraco inacessível do real, produzido para o sujeito do inconsciente com a barra da linguagem, e o lugar onde o ser, ao encontrar uma forma, se situa. O sujeito, então, estabelece seu aparelho mental e se desenvolve no mundo social, à custa de uma ilusão. Ficando aprisionado e mal situado por toda sua vida de ser falante nesta estrutura de linguagem, que tem um caráter alienante.

Um ser humano só vive se necessariamente passar por este processo e for nomeado. As ações e falas da criança, por exemplo, devem ser compreendidas como sua participação na troca afetiva e falada com seus pais. Ela ilustra com seu comportamento o que seus pais dizem. Ela é um representante dos seus pais e não pode se separar daquilo que necessariamente herda deles, ficando capturada no emaranhado do sintoma por toda sua vida de ser falante.

As coisas no mundo também são nomeadas dentro de um sistema estabelecido. Sendo dirigido por poucos para muitos; com palavras estruturantes, influências alienantes e submissões relativamente necessárias. O poder oficial aprendeu empiricamente, e aperfeiçoou ao longo da história, a manejar a função de desconhecimento da estrutura do sujeito, intervindo com suas ferramentas neste ponto da alienação imaginária e criando sutilmente verdades ilusórias. Torna-se possível assim estabelecer um paralelo de funções: uma entre as forças políticas dominantes e os submetidos a ela na sociedade, e, outra, entre os pais e as crianças na estrutura familiar.

 

As manifestações populares e midiáticas ocorridas no Brasil em 2013

As manifestações populares ocorridas no Brasil em 2013 portam características inéditas em diversos aspectos e encontram paralelo nos movimentos acontecidos nos últimos anos ao redor do mundo. Em outras épocas da história política brasileira, a ocorrência desse tipo de mobilização se dava em meio a um processo organizacional, com líderes e propostas bem definidas, onde os atores eram conhecidos e os enredos iam sendo claramente delineados. Essas manifestações atuais ocorreram sob influência dos instrumentos tecnológicos da contemporaneidade. Surgiram instantaneamente, sem fazer parte de um processo nítido e tomaram uma proporção inesperada.

Essas peculiaridades já haviam sido observadas em protestos históricos recentes no globo como os do mundo árabe, celebrizados com a Primavera Árabe, que culminou na derrubada de líderes e regimes que há décadas se eternizavam no poder. Outros como os ocorridos nos Estados Unidos, Occupy Wall Street, e Espanha, Los Indignados, que embora não tenham alcançado efeitos tão amplos e radicais quanto os do mundo árabe, se deram através de uma mesma estrutura organizacional.

Eles foram possíveis a partir das novas mídias digitais que, devido a sua natureza, permitem um pouco mais de independência na criação e divulgação da notícia do que nas mídias tradicionais, além de possibilitarem uma comunicação entre indivíduos inédita e sem tanta influência de intermediários. A expressão "propagação viral" foi criada para definir esta nova estrutura. Sabemos da capacidade de reprodução e disseminação do vírus. Essa expressão atual remete ao termo contágio, utilizado por Le Bon, e endossado por Freud, como um dos fatores que contribuem para a disseminação hipnótica de uma ideia e para a condição livre de conflitos do indivíduo numa massa.

Neste ponto, fica patente que as diferenças entre as manifestações e reuniões populares ocorridas ao longo da história e as atuais encontram-se nos instrumentais tecnológicos utilizados. A condição para o indivíduo se estabelecer numa massa é correlata à do sujeito ao se constituir no universo da linguagem, ou seja, somente se estabelecerão passando pelos imprescindíveis e indispensáveis processos constitutivos que são permanentes e inalteráveis, pois o aparelho psíquico é imutável, sendo o sujeito do inconsciente atemporal. Não havendo, assim, distinção entre as épocas em que ocorreram esses fenômenos populares em termo dos efeitos em cada pessoa inserida numa massa.

 

A estrutura de massa e o sujeito desejante: uma direção possível

A prática clínica em psicanálise nos ensina a condição paradoxal do sujeito frente a seu sintoma. Ele chega ao consultório se queixando e querendo se livrar daquilo que o faz padecer. No entanto, ao longo do processo psicanalítico, ele poderá entrever a existência de outro e único rumo, no qual ele não poderá se desvencilhar de seu sintoma, pois sem ele restaria meramente um pedaço de carne praticamente inanimado. O buraco estabelecido na entrada da linguagem é (mal) preenchido com o sintoma, sendo este o ponto de (des)equilíbrio que caracteriza a estrutura neurótica. Sem sintoma não haveria sujeito neurótico. Aquilo que ele descobrirá numa análise é que o causador de suas dores está na mesma moeda das vias de acesso a seu desejo, tratando-se nesse mecanismo de um reposicionamento, que desembocaria num savoir-faire com seu sintoma, nunca em sua aniquilação. Eis o campo de trabalho psicanalítico.

Trata-se do trabalho de equivocação do significante, evidente nos lapsos, sonhos, chistes; nas manifestações da presença do inconsciente se sobrepondo à firmeza sintomática consciente e que evidenciam o caráter instável, da pseudo-estabilidade, da certeza neurótica. Permitindo, assim, ao sujeito assumir outra posição na relação com seu vazio estrutural, visto que, vazio, angústia e desejo estão intrincados numa relação dialética, onde a aproximação ao singular do desejo na estrutura passa pelo não encobrimento da angústia, mas sim, e muito pelo contrário, por sua sustentação no trato com o vazio.

Viver é saber lidar com os mal-entendidos. Ao mesmo tempo em que o indivíduo e o sujeito ficam aprisionados, respectivamente, numa estrutura social e na estrutura familiar, serão justamente essas estruturas que servirão de campo de trabalho para a construção de algo inédito. O saber sobre a impossibilidade de aboli-las permite a emergência do vazio que porta o desejo. Lacan isola o significante, favorecendo uma leitura que distancie o simbólico do imaginário, possibilitando, desta forma, algum vislumbre do real. Seguindo esta mesma linha, há um alcance político e uma dimensão utópica na obra de Roland Barthes que trabalha com a produção, nas estruturas sociais, de um saber que conduza ao desejo e não ao engano. Deste modo, fugindo de estereótipos, de lugares-comuns e de palavras de ordem, suas teorias oferecem instrumentos para o estabelecimento de um novo sujeito que aflore na história; mais liberto do imaginário e de discursos e ideologias manipuladoras.

O poder dominante criou ao longo da história uma rede de elementos para capturar os indivíduos e transformá-los em sujeitos artificiais, com consciências acometidas por ilusões engendradas, sempre limitadas a ideias específicas, que servem a propósitos bem direcionados para interesses determinados nos jogos de poder. Esta rede implica leis, discursos, medidas administrativas, instituições e enunciados científicos, e tem uma função estratégica, que se atualiza permanentemente para responder e se adaptar aos instrumentais contestadores estabelecidos na sociedade. Reestabelecendo e legitimando, assim, sua autoridade e sua dominação.

Esta rede numa estrutura social é equivalente ao sintoma na estrutura do sujeito neurótico. Tanto uma quanto outra tem por função, em seus tempos de instauração, evitar a irrupção do horror, da destruição e do pior; alienando, por conseguinte, o sujeito em uma lógica criada a partir de um lugar fora dele e relegando-o à condição de objeto. Porém, ambas as estruturas são falíveis em seu vigor, portando brechas que podem ser operadas e mais bem direcionadas para propósitos escolhidos, propiciando produções menos atreladas a esses campos simbólicos constituintes.

Assim, como a prática clínica nos ensina que a direção para a mudança de posicionamento do sujeito, frente ao sintoma e ao desejo, está no trabalho com a estrutura de linguagem, Barthes (1978/2007), em sua caça subversiva às ideologias dominantes, diz que a direção de mudar o mundo passa por mudar a linguagem. E para esta direção é fundamental considerar a condição inexorável e de limiar do mundo visível, da ilusão, da imagem e do sintoma, enquanto precariedades necessárias para o estabelecimento da relação do organismo com o real.

O trabalho com a estrutura de linguagem permite colocar o sujeito em movimento. Embora esteja impregnado pelo que vem do mundo da palavra, ele pode vir a estabelecer traços próprios e peculiares, produzindo, com isso, efeitos nesse mundo, que é manobrado por poucas, porém, hábeis mãos. A psicanálise porta um estatuto ético e político em sua direção da cura, que conduz ao inédito e ao singular no trabalho particular de cada caso clínico, e que, conjuntamente, pode servir de inspiração e diretriz para produzir furos nas relações entre indivíduo, massa e poder.

 

Referências

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Endereço para correspondência
CLAUDIO KAYAT BEDRAN
Rua Redentor, 120 / 102
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E-mail: claudiokbedran@gmail.com

Recebido: 25/09/2013
Aceito: 06/12/2013

 

 

* Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana.