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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

Nossas moedas de troca

 

Our trading coins

 

 

Clarice Niskier*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A democracia brasileira avança. O medo da chegada de um poder totalitário não é suficiente para impedir a marcha contra o que nos aterroriza: corrupção, investimentos mínimos em transportes públicos, saúde, educação. A marcha é pela vida. É pela arte de viver. A linguagem democrática abre seu leque, segue livre para além das conhecidas reivindicações de classes sociais. Como incluir novas linguagens na política do século XXI? A violência interrompe o diálogo. Como a sociedade civil deve lidar com a violência? O amor que torna tudo coeso. As perdas. Como viver sem a amiga da vida inteira? Como marchar sem ela? Manter a libido viva, através da arte, do amor, da esperança. Seguir para além dos fantasmas do mundo. Manter nossas moedas de troca.

Palavras-chave: Manifestações de 2013 no Brasil, Black Blocs, Maio de 68, Vida. Morte.


ABSTRACT

The Brazilian democracy marches. The fear of the appearance of a totalitarian power is not enough to stop the march against what frightens us: corruption, minimum investments in public transportation, health and education. The march is for life. It is for the art of living. The democratic language spreads its wings beyond the well-known claims from the social classes. How to include new languages in the 21st century politics? Violence breaks the dialogue. How should the civil society deal with violence? Love making everything become cohesive. The losses. How to live without your friend for life? How to march without her? Keeping the libido through art, love and hope. Surpassing the ghosts from this world. Keeping our bargaining chip.

Keywords: Spontaneous riots around Brazil in june 2013, Black Blocs, May 1968, Life, Death.


 

 

Não há você sem mim / Eu não existo sem você

Tom Jobim

"Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! / Ninguém me peça definições! / Ninguém me diga: vem por aqui / A minha vida é um vendaval que se soltou / É uma onda que se alevantou / É um átomo a mais que se animou / Não sei por onde vou / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!". Assisto Maria Bethânia recitar este poema de José Régio, Cântico Negro, em um de seus magníficos shows disponíveis no YouTube. Após a récita ela é ovacionada pelo público que acolhe sua interpretação como se cada palavra tivesse saído de seu próprio coração. O sentimento de entusiasmo que arrebata o público e o faz explodir em paixão neste show, em 1982, é o mesmo que, multiplicado por uma ordem de grandeza infinita, sai às ruas em junho de 2013 em todo o país contra os abusos do poder econômico e político do Estado. "Se ao que busco saber nenhum de vós responde / por que me repetis: 'vem por aqui?' / Prefiro escorregar nos becos lamacentos / Como farrapos, arrastar os pés sangrentos / A ir por aí..." A massa sensível ganha o espaço público a fim de marchar pela vida. "Não sei por onde vou / não sei para onde vou / só sei que não vou por aí." "Não sei por onde vou / não sei para onde vou / só sei que não vou por aí." É o poema de ordem. A poética ganha as ruas em um fluxo vital onde cada cidadão não segue mais a linguagem conhecida das passeatas, mas a si mesmo, por metas que ainda virão, na massa humana que o representa.

Meu filho de 14 anos não sabe o que quer ser quando crescer. Mas ele sabe que não quer ser administrador de empresas, não quer ser engenheiro civil, não quer ser médico. E eu sei que a eliminação é uma operação matemática eficiente e legítima como qualquer outra. Pela eliminação podemos chegar à essência da vida, assim como Rodin chegava à essência da escultura eliminando o material bruto que a encobria. O genial escultor acreditava que a obra já estava pronta no interior da pedra. Quando no dia 18 de junho a Folha de São Paulo estampa na primeira página a manchete "Milhares vão às ruas contra tudo", é a multidão afirmando o desejo de eliminar o que nos aterroriza: corrupção, investimentos mínimos em saúde, cultura, educação, transportes, habitação, infraestrutura. Não se trata de uma indefinição perigosa. Trata-se de uma afirmação consciente: "eu não quero isso"; "isso não me representa"; "não é por aí". É a democracia brasileira avançando. Caetano Veloso canta "Coragem grande é poder dizer sim". Clarice Lispector escreve, "Tudo no mundo começou com um sim". Já podemos dizer sim ao não, sem medo que as instituições brasileiras quebrem como se fossem frágeis pais que não suportam ver seus filhos negando o caminho por eles percorrido. O que nos une agora não é uma ideia redentora, libertadora, pragmática ou até mesmo revolucionária. Nesse momento não temos líder, partido, bandeira. O que nos une agora é uma energia amorosa legítima que ganha as ruas, como a energia arrebatadora de um show que convida a todos para a festividade da vida. Talvez, nunca antes na história desse país, estivemos tão afetuosamente ligados, como em junho de 2013.

Mas em que essa energia difere das outras se em toda massa humana está contida uma energia amorosa, como afirma Freud, no texto "Psicologia das Massas e Análise do Eu"?

"Farei a tentativa de aplicar ao esclarecimento da psicologia das massas o conceito de libido, que tão bons serviços nos prestou no estudo das psiconeuroses. 'Libido' é uma expressão tomada da teoria da afetividade. Chamamos assim a energia, considerada como grandeza quantitativa – ainda que por ora não seja mensurável –, daqueles impulsos que têm a ver com tudo o que podemos reunir na categoria 'amor'. O núcleo do que chamamos de amor naturalmente é constituído por aquilo que de hábito é chamado como tal e por aquilo que de hábito cantam os poetas, o amor sexual com a meta da união sexual. Mas não separamos disso outras coisas que também tomam parte no termo 'amor'; por um lado, o amor-próprio, e, por outro, o amor parental e o amor filial, a amizade e o amor universal ao próximo, e tampouco a dedicação a objetos concretos e a ideias abstratas. [...] Assim, faremos uma tentativa com a hipótese de que as relações amorosas (expresso de maneira indiferente: as relações emocionais) também constituem a essência da psique das massas. [...] Primeiro, a massa evidentemente é mantida coesa por meio de um poder qualquer. Mas a que poder se poderia atribuir esse feito senão a Eros, que tudo mantém coeso no mundo? Segundo, quando o indivíduo na massa renuncia à sua singularidade e se deixa sugestionar pelos outros, temos a impressão que o faz por existir nele uma necessidade de estar antes em harmonia com eles a estar em oposição a eles; ou seja, talvez o faça 'por amor a eles'" (Freud, 2013.).

"Eros, que tudo mantém coeso no mundo."

Estampo na primeira página do jornal imaginário da minha mente, após a leitura do texto de Freud, a seguinte manchete: "Manifestação pacífica em louvor a Eros". Assim senti as manifestações, depois que a repressão policial fez multiplicar a massa que inicialmente expressava seu descontentamento com o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus.

No Movimento Hippie todos eram a favor do amor livre, evocavam o símbolo de paz e amor, tinham os mesmos ídolos, gostavam das mesmas músicas, amavam a natureza e vestiam-se cobertos de flores e panos coloridos. No Movimento de Maio de 68, em Paris, os estudantes também estavam contra tudo – "Viva a alegria, o amor e o trabalho criativo"; "Sejamos realistas, que se peça o impossível", eram algumas das palavras de ordem. Um movimento dificílimo de nomear, com algumas bandeiras transcendentes. "Levante? Revolta? Revolução?", pergunta Olgaria C. F. Matos, no livro Paris 1968, As barricadas do desejo. Mas, sem dúvida alguma, um movimento estudantil. Massa homogênea que ocupou universidades, com seus mentores intelectuais definidos e que mais tarde contagiou de forma precisa a classe operária. Aqui vale um parêntese. Vou transcrever um trecho do livro de Olgaria, da Coleção Tudo é História, da Ed. Brasiliense, editado em 1981. "O Maio francês significou uma crise de autoridade generalizada. Já não havia poder, a não ser 'o poder repressivo da polícia'. Isto também é demonstrado pelo fato de que, passados 12 anos, ainda não se pode escrever uma história de 68: 'Os partidos não foram capazes de uma análise séria, nem mesmo o partido comunista. Quando, durante a greve da Renault, os sindicatos perguntaram aos operários a razão pela qual estavam em greve, estes responderam que não sabiam, que só queriam parar de trabalhar. Naquele momento o importante não era querer algo mas sim recusar algo'." (Matos, 1981.). Olgaria fala em "suspense histórico", quando a massa movimenta-se sem saber exatamente o que quer. Suspense histórico que não deveria desembocar necessariamente em nenhuma forma de governo totalitário.

Enfim, poderíamos continuar enumerando e estudando diversos outros movimentos, Diretas Já, Caras Pintadas, comparando formas e conteúdos à exaustão. Mas está claro para todos. O que tornou original e coesa a massa humana das últimas manifestações foi justamente a ausência de uma bandeira única no decorrer dos acontecimentos. A ausência de um único segmento social na liderança. A ausência de uma única classe social determinando reivindicações específicas. Ausência de vestimentas e hinos únicos. A massa que saiu às ruas em todo o país em junho de 2013 era heterogênea. Sem uma identidade preestabelecida que o Estado pudesse classificar de imediato. Os atos "ultrapassam mecanismos tradicionais das instituições, dos partidos, das entidades de classe e da mídia", afirmou a presidente Dilma Rousseff, nos jornais. Ela mesma fruto político da luta contra a Ditadura.

Nos atos não havia um único símbolo que pudesse ser transformado em mercadoria lucrativa e vendido depois em butiques, como fizeram com o símbolo de paz e amor dos hippies. Lembram da expressão "hippies de butique"? Não havia também um único mentor intelectual que pudesse ser preso e acusado de escrever livros subversivos à ordem. Foi uma manifestação sem líderes visíveis. Sem tribos ou nações únicas, sem hegemonia de qualquer instituição, partido político ou segmento religioso. O Movimento Passe Livre que liderou inicialmente a convocação contra o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus estava mais para "Cristais de Massa", como ensina Elias Canetti no genial e poético livro Massa e Poder, do que para organizadores definitivos das manifestações.

"Designo cristais de massa grupos pequenos e rígidos de homens, muito bem delimitados e de grande durabilidade, os quais servem para desencadear as massas. É importante que esses grupos sejam avistáveis em seu conjunto, isto é, que se possa abarcá-los com os olhos em sua totalidade. Sua unidade importa muito mais do que seu tamanho" (Canetti, 2011.), escreve o extraordinário Elias Canetti.

Talvez o grupo Black Bloc tenha sido o único bem organizado dentro da massa heterogênea. Tinha bandeiras definidas: reagir com violência à repressão policial, incendiar lixeiras e carros nas ruas, destruir o patrimônio público e privado, principalmente, os Bancos, símbolo do capitalismo selvagem. Agiam de forma idêntica em todos os estados brasileiros mesmo que isso esvaziasse as manifestações. Até por isso mesmo, ou muito pelo contrário, nunca saberemos ao certo. A revista Época, na edição de novembro, publicou uma reportagem investigativa: "Por Dentro da Máscara dos Black Blocs", do jornalista Leonel Rocha. Nela, o jornalista Leonardo Morelli, coordenador da ONG Defensoria Social, "um braço visível e oficial que apóia os Black Blocs, diz: 'Manifestante é pacífico. O que fazemos é protesto'", justificando os atos violentos do movimento, rejeitados pela maioria dos que integravam as passeatas nas ruas. Morelli afirma que os Black Blocs recebem financiamento de várias entidades nacionais e estrangeiras, algumas ligadas ao meio ambiente, outras à religião. Procuradas pelo repórter Leonel Rocha, as entidades negam o apoio. "O dinheiro financia os treinamentos dos militantes, como o ocorrido no fim de semana de Finados e outro realizado em julho na cidade de Cáceres, em Mato Grosso", segue a reportagem. Mas, o que querem os Black Blocs? "O cientista político canadense e ativista Francis Dupuis-Déri, da Universidade de Québec, afirma que os Black Blocs são mais uma tática que um movimento político, mais uma demonstração de rua que uma ideologia", tenta esclarecer a matéria. Protestam contra a globalização. Não sei a serviço do que e de quem estão, isso só o tempo dirá. Em outubro de 2013, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, ainda se lia, em um tapume que cobria as vidraças quebradas de um Banco privado: "Esse Banco quebra vidas".

O que fazer com a violência que se instaura no rastro do louvor amoroso e se expande num caos de interesses que mistura fascínio e fascismo, dilacerando a poesia no cerne de sua raiz? O que fazer com as contradições inerentes e violentas do capitalismo? É sabido que "muitas ditaduras – nazistas, fascistas ou comunistas – começaram com bandos nas ruas quebrando vidraças e batendo em quem pensava diferente", como escrevem os jornalistas João Gabriel de Lima e Hudson Corrêa na matéria "Todos Contra A Violência", também na revista Época de novembro. A democracia do país esteve ou está ameaçada? A massa que não obedece a nenhum líder pode ser destituída de sua alegria mais facilmente do que a que segue alguém? Poderemos reinventar a roda da política? Uma roda dentada que ficou desfalcada de estruturas importantes como a opinião do homem comum? A marcha não era para derrubar um poder e empossar outro. A marcha queria legitimar a opinião do homem comum. Um homem comum ávido por expressar seus sentimentos, sua opinião. Continuo afirmando: é a democracia avançando. A política pode acolher a poesia arrebatadora que vem de seus cidadãos artistas e poetas? Compreendê-la? Traduzi-la em ações, em qualidade de vida para os seus cidadãos? Ou os políticos só abrem um diálogo com quem domina a linguagem burocrática dos protocolos oficiais?

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes teto,
E tendes regras, estradas, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho,
A arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cântico nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam,
Mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe,
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui".
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí!
(José Régio, Cântico Negro)

A política não tem que ser feita só de reivindicações claras e objetivas, senão as instituições democráticas enfraquecem e os regimes totalitários sobem ao Poder. Eu sei. Mas nossos fantasmas são imensos... Se o Brizola tomasse o poder, os militares voltariam. Se o Lula fosse presidente, os militares voltariam. O que é real? O que é delírio? Quem está no comando da História? Eu? Você? Nós? Ninguém? Ok. Não passo de uma cidadã ingênua. Prato feito para os totalitários de plantão. A individualidade e o coletivo nunca conseguirão se harmonizar... O que fazer? As utopias persistem. Os políticos poderiam pensar menos em dinheiro e observar mais os artistas, não para suas propagandas, mas para entender melhor as demandas de seus eleitores. Bethânia inspira construções de Museus da Língua Portuguesa por todo o Brasil, bibliotecas públicas, Escolas de Poesias, Museus Vivos de Rezas Populares e Anônimas. Estou viajando? Sim. Mas qual é o problema? Como não sonhar?

Em 1974, meus pais foram assistir ao show "Brasileiro – Profissão Esperança", dirigido por Paulo Pontes, no Canecão, RJ, com Paulo Gracindo e Clara Nunes. Foi um show histórico e na saída compraram o LP. Ao chegarem a casa recomendaram a mim e à minha irmã que o ouvíssemos com toda atenção. Paulo Gracindo recitava o poema Cântico Negro, de José Régio, com seriedade e paixão. Eu escutava atenta. Eu tinha 14 anos. O que ele movia em mim... Ouvi esse LP milhares de vezes. Em junho de 2013, no Hospital Albert Einstein, em SP, enquanto acompanhava as manifestações pela televisão, recitava baixinho: "Não sei por onde vou / não sei para onde vou / só sei que não vou por aí". Era o meu sentimento mais íntimo e autêntico acompanhando as passeatas, impossibilitada que estava de segui-las. A amiga da vida inteira estava internada lutando bravamente pela vida. E eu estava com ela.

Li em algum jornal que a polícia respeitava bastante o Movimento Passe Livre. Um policial teria dito: "eles são sinceros". Gostei. Posso ser ingênua. Mas sou sincera. Se essa sinceridade tem valor político, não sei. Deveria ter.

O Movimento Passe Livre em determinado momento saiu de cena. As passeatas continuaram. O Movimento não liderou a grande massa. Velhos, crianças e adultos de classes sociais diferentes saíram às ruas aos milhares na alegria de pertencer a uma onda que os acolhia como irmãos. "Não temos problemas em nos declararmos sem nação, sem pátria, sem identidade, porque nos apegamos a um desejo de igualdade que desconhece fronteiras", escreveu o colunista da Folha de São Paulo, Vladimir Safatle, em seu artigo do dia 22 de junho de 2013. Um desejo de igualdade que desconhece fronteiras. Rivalidades foram suspensas. Na mesma passeata estavam grupos reconhecidamente rivais como alguns segmentos dos Skinheads e dos Punk Antifascistas. Lá estavam reunidos pelo humano direito de se manifestar democraticamente sem levar porrada do Estado. A pulsão de vida no comando, com sua generosidade anônima e horizontal. Massa festiva, onde todos se igualavam em suas diferenças, conscientes de uma unidade maior, a vida. "Ou nos salvamos todos, ou vamos todos juntos para o buraco", como diz o diretor teatral Amir Haddad.

E a violência, diante dela, como agir? Pulsão de morte, com ambição desmedida, vertical, em guerra direta com o outro, sem diálogo, manipulando a libido das massas, marginalizando sua expressão pacífica. Policiais x Black Blocs. A violência fez decrescer a massa pacífica. O medo, o pânico tomou conta da maioria. No dia 7 de setembro, o Estado aguardava uma imensa manifestação, pacífica, com os habituais focos de violência, mas o movimento já estava perdendo forças. Nem mesmo a greve dos professores em outubro, no Rio de Janeiro, que tinha todo o apoio da população, conseguiu a mesma adesão solidária que a moedinha de R$ 0,20 havia conseguido em junho. Quando a violência é um ato heroico? Quando é puro vandalismo? Quando é crime? Terrorismo de Estado? Terrorismo de facções? Fascismo? Pura bandalheira? Os empresários de ônibus estavam por trás da violência? Há organizações religiosas por trás dos Black Blocs? Quem poderá responder? Difícil falarmos do nosso próprio tempo. Faço parte da maioria que não topa a violência. Tenho medo, em todos os sentidos. E não sinto prazer em praticá-la. Prefiro canalizar minha violência na arte. Tenho essa oportunidade. Essa escolha. Penso que a solução sempre será a longo prazo: educação, arte, cultura, saúde, trabalho para todos. Assim, restaria um número tão pequeno de bárbaros que por si só estariam para sempre isolados em seu mundinho, sem grandes ameaças para ninguém. As utopias persistem.

"Eros, que tudo mantém coeso no mundo."

Não fui às passeatas uma única vez. Como disse, minha melhor amiga, a amiga da vida inteira estava internada no Hospital Albert Einstein. Dia e noite estávamos com ela. A família, os médicos, os amigos, ninguém sabia o que ia acontecer. Eu, ela, os manifestantes, os artistas, os médicos, os pacientes, os enfermeiros, a massa, as famílias, os que lutavam contra as doenças ainda incuráveis, os que lutavam pelas curas possíveis, todos unidos pela esperança. A violência é uma doença incurável? A barbárie na política um dia terá fim? Encontraremos a cura definitiva para todos os tipos de câncer? Brasileiro: Profissão Esperança, eu, ela, os manifestantes. Artistas da vida, da resistência, do amor. Pelos jornais, eu lia os cartazes pedindo padrão FIFA para a educação. Eu pedia padrão FIFA de cura para a minha amiga. No dia 15 de julho ela partiu. Chorei copiosamente na porta do Einstein. Muitas vezes disse a ela que as passeatas reivindicavam sua saúde. Ríamos juntas. E ela brincava: "o médico vem aí, vou passar blush pra ver se ele me dá alta". Dois corpos distintos: o corpo da multidão que ganhava vida e crescia, o corpo da amiga que se contraía em angústia e lutava bravamente contra a morte. A morte é sempre precoce. Foi precoce o fim do Movimento. Precoce a sua morte, amiga querida. Ainda me despeço de você. Esse texto é de alguma for ma uma homenagem a você. À nossa convivência de mais de 40 anos. À nossa libido que através da amizade pôde ser vivida plenamente. Eros nos manteve coesas. Ainda sinto demais sua falta. "Anota aí, eu sou ninguém sem você." Li na Folha de São Paulo que foi montada uma "UTI jornalística" para as reuniões de emergência dos repórteres durante as manifestações. A UTI médica do Hospital Albert Einstein onde tentávamos entender o que nos acontecia. Massas abertas, massas fechadas, corações abertos, corações fechados, em luto, em dia ou não com a vida. Tentamos entender. A violência é o câncer que mata. O voto é o melhor remédio. Mas ao mesmo tempo, nada garante nada. Sei que não há mais salvação individual. Nem para mim, nem para você, nem para o Brasil. Temos futuro, voz e poemas. Os poemas também não garantem nada, só garantem o grito, que de geração em geração vai se expandindo, se contraindo, anéis fechados, anéis abertos, extraordinário Elias Canetti, você ia adorá-lo, minha amiga. Se é que não o conheceu, estudiosa que era. Viva a História e a história de cada um que compõe a massa do mundo moderno. Massa que vai desde os porões mais cruéis do abandono e da exclusão até os céus mais nítidos sem fronteiras onde vivem nossos sonhos de igualdade, justiça e amor. E onde vivem alguns dos nossos melhores e mais queridos amigos.

Tom Jobim sintetiza em seus versos o que de mais íntimo e político hoje eu sinto: "Não há você sem mim / Eu não existo sem você".

P.S.: Na infância, gostava de histórias em quadrinhos. Sentia certo fascínio pela moedinha número 1 do Tio Patinhas. A moedinha não vivia na Caixa-Forte como as outras. Vivia destacada numa redoma de vidro. Seu valor ia muito além do monetário. A moedinha número 1 trazia sorte. Tio Patinhas a protegia com a própria vida. Sabia que se a sorte lhe faltasse sua fortuna podia abandoná-lo. Um dia, já adulta, almoçando com a família em SP, ganhei do meu tio Sylvio Niskier uma moedinha de 25 centavos. "Pra nunca te faltar verba para o teatro." Era um gesto simbólico de apoio irrestrito a minha escolha profissional. Eu guardo a moedinha até hoje. Eu a protejo com a minha própria vida, tesouro que é o teatro para mim. Fomos contra o aumento dos 20 centavos nas passagens de ônibus. Nunca um valor foi tão simbólico. A moeda de 20 centavos foi a mais imaterial das moedas. A que vamos guardar numa redoma de vidro. A moeda que nos trará sorte. A fortuna da coragem, dignidade, valentia, razão, emoção, amor.

A fortuna de nossos limites também. Moeda de troca que devemos proteger, muitas vezes, com a própria vida.

 

Referências

Lispector, C. (1998). A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Canetti, E. (2011). Massa e Poder (S. Tellaroli, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Freud, S. (2013). Psicologia das Massas e Análise do Eu (R. Zwick, trad.). Porto Alegre: Coleção L&PM Pocket.         [ Links ]

Matos, O. C. F. (1981). Paris 1968, As barricadas do desejo. São Paulo: Ed. Brasiliense.         [ Links ]

Pelbart, P. P. (2013). Anota aí: eu sou ninguém!. Folha de São Paulo, Caderno Tendências/Debate.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
CLARICE NISKIER
Rua Viúva Lacerda, 249 – bloco 03 – ap. 603
22261-050 RJ – Rio de Janeiro – RJ
tel.: 21 7848-2457
E-mail: clariceniskier@gmail.com

Recebido: 19/11/2013
Aceito: 06/12/2013

 

 

* Atriz e escritora. Entre outras obras é autora da adaptação teatral do livro A alma imoral de Nilton Bonder.