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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.58 São Paulo jul. 2014

 

CARTA-CONVITE

 

 

Caros colaboradores

O tema que escolhemos para a próxima ide é espinhoso, complexo, árduo e atual: O dinheiro. Nada melhor para estimular vocês, caros colaboradores, do que iniciar por um imortal da literatura, que inspirou muito Freud e Marx, William Shakespeare:

Ouro? Amarelo, brilhante, precioso ouro? Não, deuses, não sou homem que faça orações inconsequentes... Esta quantidade de ouro bastaria para transformar o preto em branco; o feio em belo; o falso em verdadeiro; o baixo em nobre; o velho em jovem; o covarde em valente. [...] Esse ouro vai subornar vossos sacerdotes e vossos servidores, afastando-os de vós; vai tirar o travesseiro de debaixo da cabeça daquele que está morrendo; esse escravo amarelo vai unir e dissolver religiões, bendizer amaldiçoados, fazer adorar a lepra lívida, dará aos ladrões lugar, título, homenagem e elogios, fazendo-os sentar no banco dos senadores, é ele que leva a viúva inconsolável a casar-se novamente e que perfuma e embalsama, como um dia de abril, aquela perante a qual entregariam a garganta, o hospital e as feridas em pessoa...Vamos!, metal maldito, puta comum a toda a humanidade, tu que semeias a discórdia entre a multidão das nações...
(Shakespeare, Tímon de Atenas, Ato IV, cena III, tradução minha da versão em francês)

Freud e Marx viveram num mesmo contexto cultural, apesar de um não mencionar o outro. Quando decidimos pelo tema do dinheiro, logo vimos que seria impossível não falar da concepção de Marx sobre o "fetiche da mercadoria", por exemplo. Vemos hoje, num estádio de pleno desenvolvimento da sociedade de consumo capitalista, o quanto o mecanismo de fetichismo dos objetos de consumo parece ser um aspecto importante para refletirmos sobre o mundo contemporâneo.

Não é possível resumir aqui as inúmeras referências em que Freud escreve sobre o dinheiro, sua simbólica e o papel do ato de pagamento (único ato autorizado na análise). Desde os artigos sobre a técnica, "Conselhos aos médicos" (1912), "O início do tratamento" (1913), Freud fala do ato do pagamento como importante a ser considerado, uma vez que certos aspectos inconscientes às vezes só aparecem nesse ato. Entre 1915-1917, Freud descreve a simbólica do dinheiro, ligando-o ao erotismo anal, como sabemos ("Sobre transformações das pulsões, em particular no erotismo anal", 1917). Nesse último texto, Freud apresenta a noção de "pequena parte destacável", como possibilitando as transformações das pulsões.

O dinheiro também abre para o estádio fálico e a genitalidade (pênis-bebê). Ele pode favorecer a diferenciação dentro/fora, sujeito/objeto. Nesse ponto, podemos discutir o problema do custo de uma análise, assim como as questões que colocam uma análise gratuita ou com pagamento simbólico. Não pode surgir neste caso uma fantasia de um seio inesgotável, sempre pronto a alimentar o sujeito?

Em "Para introduzir o narcisismo" (1914), Freud aborda a dimensão narcísica do dinheiro. O pagamento questiona os limites do ego, do narcisismo, do poder e do tempo. Outros autores mostraram a ligação desse ato com um ódio inconsciente.

Diante das feridas narcísicas, o desejo de posse inextinguível de dinheiro pode se impor, levando ao domínio sobre o objeto, à negação da castração, da perda e do luto.

Marx mostra que o dinheiro é um equivalente universal e, por isso, pode se desfazer de qualquer significação e constituir um sistema que funciona por ele mesmo. A abstração ligada ao caráter puramente quantitativo do dinheiro favorece a ruptura das ligações com o corpo, com os objetos e a destruição do sentido. Quando isso ocorre, ele perde sua ligação com o inconsciente e o sujeito funciona numa lógica contável alienante. Muitos hábitos e comportamentos das populações das grandes cidades, caracterizando um império do consumo, também não poderiam ser compreendidos como uma lógica de recusa (ou negação) da realidade (mecanismo do fetichismo)?

Termino com essas palavras de Marx: "No seu simples aparelho de coisas que saem das entranhas da terra, o ouro e a prata são ao mesmo tempo a encarnação imediata de todo trabalho humano. Donde a magia do dinheiro" (Marx, O Capital, livro I, capítulo II, tradução minha da versão francesa).

Boas reflexões!

 

 

José Martins Canelas Neto
Editor