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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.58 São Paulo jul. 2014

 

EM PAUTA - O DINHEIRO

 

A metamorfose das necessidades em desejos1 2

 

The metamorphosis of the needs in desires

 

 

Bernard Guibert*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Lacan e Kojève "modernizaram" a ideia hegeliana do desejo colocado como essência da espécie humana, inspirando-se na linguística estruturalista que inscreve o sujeito na linguagem. O capitalismo determina social e historicamente esse desejo, já que as trocas mercantis constituem uma linguagem grosseira, a "linguagem que as mercadorias falam entre si", segundo a feliz frase de Marx. Disso resulta que o propósito aparentemente racional das compras, o imperativo de satisfazer as necessidades vitais finitas, é metamorfoseado na busca compulsiva e inconsciente por desejos venais inacessíveis e infinitos – compulsão assimilável à perversão sexual do fetichismo – o que abre perspectivas de mercantilização ilimitada à globalização capitalista.

Palavras-chave: Dinheiro, Capitalismo, Marx, Lacan, Economia, Perversão, Alienação, Necessidade, Desejo, Fetichismo ilimitado.


ABSTRACT

Lacan and Kojève have "modernized" the Hegelian conception of desire placed as the essence of the mankind, based on structuralist linguistics that inscribes the subject in language. Capitalism determines socially and historically this desire because the mercantile exchanges are a rough language, "the language that the goods speak to each other", in Marx's happy expression. As a result, the seemingly rational purpose of purchases, the need to meet finite vital needs, is morphed into compulsive and unconscious search for inaccessible and infinite venal desires – similar to compulsion in the sexual perversion of fetishism – which opens prospects for unlimited commercialization for the capitalist globalization.

Keywords: Money, Capitalism, Marx, Lacan, Economy, Perversion, Alienation, Needs, Desires, Unlimited fetichism.


 

 

A riqueza de toda a terra basta para satisfazer as necessidades
de todos os homens.
Mas a riqueza de toda a terra não basta para satisfazer os
desejos de um único homem
.
Aforismo atribuído a Gandhi.

 

Introdução

Em nossas sociedades capitalistas – portanto mercantis – a riqueza adquire a forma "social e historicamente determinada" de um "monstruoso acúmulo de mercadorias", como afirma Marx na primeira frase d'O Capital (Marx, 1867/1957). Mostrarei que o paradoxo enunciado por Gandhi deriva de uma dupla metamorfose característica desse modo de produção: a riqueza é metamorfoseada em mercadorias e as necessidades limitadas de um indivíduo são transformadas em desejos ilimitados, de modo que a satisfação destes últimos por meio do consumo daquelas é impossível, a fortiori, para a humanidade inteira.

Começo por lembrar que, se o objetivo de nossas economias fosse tão somente o de satisfazer nossas necessidades, elas não poderiam ser capitalistas. Ora, mas elas o são. Além disso, relembro que, em sua menor malha, o tecido das trocas mercantis se disfarça por um linguajar certamente muito trivial. A estrutura das trocas mercantis tem por consequência um retorno sobre seus elementos e seus agentes que é o de transformar o cidadão da cidade mercantil em ser de desejo. Mas como a continuação desse desejo não pode ser mediada pelo dinheiro, a este último resta apenas ser reificado. Por essa razão, qualifico-o de venal. O dinheiro aparece dotado de um poder mágico, assim como os fetiches e talismãs de sociedades ditas "primitivas". Reencontramos, assim, aquilo que Marx chama de fetichismo da mercadoria. Mas, de um ponto de vista ingênuo, os fetiches são bastões, pedras, conchas, amuletos, talismãs etc., em suma, coisas visíveis e individuais que podemos pegar com as mãos. Na época de Marx, as mercadorias eram, como tais fetiches, essencialmente objetos visíveis, transportáveis e individuais. Mas depois, os serviços mercantis (invisíveis) – o mercado de habitação, as terras agrícolas, florestas, minas e poços de petróleo (bens imóveis) – e os bens públicos, dos quais o consumo não pode ser individual – rotas e redes de transporte, internet etc. – se desenvolveram consideravelmente, a ponto de representarem mais de dois terços do PIB. E a coisificação e a alienação das relações sociais, presentes no conceito de fetichismo da mercadoria proposto por Marx, não parecem, até este instante, ter diminuído.

Enfim, essa coisificação, aplicada à mercadoria específica do capitalismo – a força de trabalho livre – formata a vivência fenomenal do trabalhador. Conduzido, sem se dar conta, pelo movimento de seus desejos venais, ele torna-se obcecado pela aquisição daquilo que parece, à sua consciência, um mínimo necessário para viver. Essa obsessão formata também a subjetividade do acionista, que torna-se adicto ao lucro.

 

Trabalho em geral e desejo genérico

Suponhamos, em primeiro lugar, que a finalidade de nossas economias capitalistas seja a satisfação de necessidades elementares, comer quando se tem fome, se vestir, proteger-se de intempéries, ser educado e cuidado etc. O escândalo da miséria no mundo parece contradizer a primeira parte do aforismo de Gandhi: toda riqueza produzida parece estar longe de satisfazer as necessidades elementares da humanidade. Mas, nos anos cinquenta, a FAO3 havia calculado que, com as técnicas mais eficazes e os produtos dos melhores mercados da época, poderíamos satisfazer a integridade das necessidades de cada ser humano com apenas um dólar por dia na época, o que daria razão a Gandhi.

Ora, a taxa de lucro a longo prazo de uma economia é a mesma que a sua taxa de crescimento. Como as necessidades fundamentais dos seres humanos são constantes, sua taxa de crescimento é igual à taxa de crescimento demográfico. Ora, a taxa de lucro exigida pelos fundos de pensão, da ordem de 15%, é pelo menos igual a dez vezes, se não a cem vezes a taxa de crescimento demográfico. Somente a satisfação das necessidades vitais não é compatível, portanto, com as economias capitalistas.

 

As necessidades "histórica e socialmente necessárias"

Na tradição marxista, denunciamos a ideia de que as necessidades poderiam ser definidas de maneira absoluta e universal fazendo referência a uma natureza humana, ou mesmo animal, em todo caso transistórica, abstração feita de todo pertencimento a um modo de produção determinado. Em suma, as necessidades historicamente e socialmente necessárias correspondem a uma norma de consumo que integra aos poucos os meios necessários para, por exemplo, trabalhar e viver em sociedade. Exemplos nos dias atuais seriam os carros, telefones, padrões de higiene, padrões de educação e de formação, de descanso, de laser, de distração etc. Mas tais modulações não explicam a explosão de desigualdades. No início do século XX, a Ford considerava que a relação entre os salários extremos não deveria exceder 40%; no início do século XXI, essa relação é da ordem de 800. Em suma, para que a economia tenha uma taxa de lucro da ordem de 15%, é preciso que o consumo seja bem superior ao necessário, bem além da satisfação das necessidades, mesmo que esta seja determinada histórica e socialmente.

 

Da necessidade ao desejo mimético

O capitalismo luta contra a saturação das necessidades incrementando o apetite pelo "luxo, este supérfluo tão necessário", como dizia Voltaire, pelo viés do desejo mimético excitado pela publicidade, como mostra a análise de Thorstein Veblen (1970) em sua célebre "classe de lazeres". Para citar um exemplo, até a Guerra de 14 a 18, o automóvel era um dos sinais exteriores de riqueza reservada a uma ínfima minoria de pessoas muito ricas que viviam de renda. Henry Ford, nessa época, serviu os interesses de sua indústria aumentando os salários de seus operários e fabricando os Ford T para que os próprios operários pudessem comprá-los de forma indireta. Criando desejo mimético, ou seja, de uma demanda além da satisfação das necessidades fundamentais, o capitalismo antecipa as políticas de demanda teorizadas por Keynes: a demanda cria a oferta – fato que foi esquecido pelo neoliberalismo.

 

O desejo como essência do ser humano

Mas esta aparência fenomenal de um desejo artificialmente excitado pela publicidade, ao ponto de tornar-se uma simples excrescência quantitativa da pura necessidade, é falaciosa porque isso implica apenas uma pequena parte da explosão de desigualdades. Mas, acima de tudo, ela constitui este contrassenso antropológico que inverte a relação entre o desejo e a necessidade na essência do ser humano. Refiro-me aqui à leitura proposta por Kojève (1947) em seu famoso seminário dos anos trinta sobre a dialética do Senhor e do Escravo de Hegel em A Fenomenologia do Espírito (Hegel, 1807/1967). Sabemos que Lacan frequentou assiduamente tais seminários. O animal é somente um ser de necessidades porque ele não sabe o que é a morte. Por outro lado, o escravo sabe. E é para não morrer que nasce o seu desejo de reconhecimento pelo Senhor por meio de seu trabalho. Em suma, para Kojève, o desejo é a essência do ser humano e é o correlato de seu trabalho.

Hegel foi o primeiro filósofo a se interessar pela economia política nascente, principalmente em sua crítica da filosofia do direito. É por essa razão que, em sua "Lógica de Iena", de 1802, ele expõe a trindade antropológica – do trabalho, da linguagem e da interação – que é retomada mais tarde pela Escola de Frankfurt, especialmente por Jürguer Habermas em seu texto A tecnica e a Ciencia como ideologia (Habermas, 1976). Quanto ao tema do reconhecimento, este é desenvolvido por seu sucessor Axel Honneth (2007). Este último, graças a um romance autobiográfico sobre um negro do sul dos Estados Unidos, mostra que o reconhecimento ocorre quando o olhar daquele que reconhece não atravessa o rosto daquele que faz a demanda por reconhecimento, mas se detém sobre este mesmo rosto. Em suma, o reconhecimento metamorfoseia a simples visão do olho animal em um olhar humano, aquele de uma leitura que sabe decifrar o olhar do outro e afrontar seu rosto.

 

A "linguagem que as mercadorias falam entre si"

Assim, desejo, linguagem e trabalho, e seu intrincamento, pertencem à essência da humanidade. Para identificar sua especificação social e histórica por meio da mercadoria, volto ao esboço do intercâmbio de equivalentes mercantis que Marx interpreta no início d'O Capital: um tecelão (t) teceu uma tela (T) que ele troca por uma roupa (H) confeccionada por um alfaiate (h).

Em nossas sociedades, toda compra (ou toda venda) se inscreve em montagens institucionais e contextuais aperfeiçoadas e implícitas em um linguajar determinado: as vitrines, as etiquetas, os nomes, as marcas, os padrões, os tamanhos, os preços, as liquidações, os descontos e os abatimentos, os regateios, as garantias, os créditos, os serviços pós-venda, os manuais, os contratos etc. Mas, estilizando caricaturalmente, em todo intercâmbio mercantil, a comunicação se resume em dois movimentos contrários, o primeiro consiste em fechar a mão sobre o que é cobiçado, o segundo consiste em abri-la sobre o preço a pagar: aquisição de um valor de uso, de um lado, às custas de um abandono de um valor, de outro lado.

O tecelão lê sobre o rosto do alfaiate a cobiça de sua tela – seu valor de uso – de modo que ele crê que a substância de seu meio de aquisição – o valor mercantil de sua tela – que ele vê espelhado no olhar do alfaiate substitui, assim, a natureza social do valor da tela, sua forma natural, aqui visível – seu valor de uso. Marx denomina este fenômeno – em que o social adquire a máscara do natural – fetichismo da mercadoria. Ele é decorrência, então, de um efeito especular.

O tecelão lê sobre o rosto do alfaiate a cobiça de sua tela – seu valor de uso – de modo que ele crê que a substância de seu meio de aquisição – o valor mercantil de sua tela – que ele vê espelhado no olhar do alfaiate substitui, assim, a natureza social do valor da tela, sua forma natural, aqui visível – seu valor de uso. Marx denomina este fenômeno – em que o social adquire a máscara do natural – fetichismo da mercadoria. Ele é decorrência, então, de um efeito especular.

 

Comércio, permuta e doação

Mas em que sentido a troca de mercadorias se distinguiu da permuta entre riquezas e daquilo que Marcel Mauss (1950) chama de doação, ou seja, a tripla obrigação de dar, aceitar e fazer? Essas três obrigações não contêm a ideia de "livre consentimento" pressuposta em todo contrato – implícita ou explicitamente – de compra ou de venda. As primeiras diferenças relacionam-se à materialização da troca. Para as mercadorias, os deslocamentos espaciais são instantâneos e visíveis. Um exemplo célebre do sistema de doações é a kula. É um sistema de troca de bens prestigiosos, de colares (soulava) e de pulseiras de concha (mwali), mas sem nenhum valor econômico direto. Ele é praticado no leste da Nova Guiné, entre cerca de vinte ilhas (ilhas Trobriand), e foi descrito no início do século XX por Bronislaw Malinowski (1963). Cada objeto possui um nome próprio, adquirindo assim um valor praticamente pessoal. A entrega desse objeto pode durar anos e percorrer centenas de quilômetros. Mas a diferença essencial é que, nas nossas sociedades, a metamorfose da riqueza em mercadorias separadas em valor e valor de uso é o efeito em retorno sobre a troca da existência de uma moeda, ou seja, um terceiro mediador socialmente instituído e quantificador. Sua instituição é uma operação simbólica, e podemos mesmo supor que ela seria a matriz de todo simbólico.

 

A ereção dos "postes de cores"

A operação em questão, com efeito, consiste em eleger (selecionar) uma mercadora particular, por exemplo uma cabeça de vaca na Antiguidade, e em excluí-la do consumo comum, como também dos sacrifícios, para mantê-la prisioneira da esfera das trocas, o mercado. André Orleans e Michel Aglietta (Aglietta & Orleans, 1982) compararam essa criação do padrão monetário com a análise do sacrifício tal como proposta por René Girard (1978). A palavra "padrão" foi traduzida da palavra francesa étalon que, etimologicamente (Benveniste, 1969), vem de "estel", o poste, o totem, o "poste de cores" celebrado por Arthur Rimbaud4. Jean Joseph Goux (1973) generalizou essa análise da instituição da moeda ao estabelecimento de significantes mestres e à sucessão de suas metamorfoses em diferentes domínios, dentre os quais o domínio da psicanálise, tal como foi interpretada por Jacques Lacan (1966). Como consequência, o desejo genérico da humanidade é histórica e socialmente determinado por uma relação simbólica específica, aquela do padrão monetário.

Este padrão monetário tem um valor de uso exclusivamente social (suprassensível) ou cultural (por oposição à natureza), a saber, servir às trocas. Esse valor se inscreve, assim, na oposição que fazem os etnólogos entre a natureza e a cultura. O fato de que sua existência seja simbólica permite aquilo que chamamos de maneira não apropriada hoje em dia de desmaterialização da moeda. Com efeito, a moeda eletrônica não é menos material que a moeda metálica, da mesma forma que, se os elétrons e os programas de informática são invisíveis, eles nem por isso são menos materiais. Esse padrão é ao mesmo tempo imanente ao mundo das mercadorias do qual ele "causa" aparentemente a corrida espacial, como também ele o ultrapassa e o transcende, uma vez que ele exprime os seus componentes suprassensíveis: ele é ao mesmo tempo causa na extensão e expressão do pensamento.

A troca de mercadorias, assim como a permuta e a doação, exprime a equivalência dos produtos trocados. Marx compara essa conservação do valor na troca à conservação da massa de um objeto quando remodelamos sua forma. Isso é resultado da invariância da massa volumosa. Mas ele poderia muito bem ter utilizado a metáfora da conservação de energia ou da quantidade de movimento. Em qualquer um desses casos, uma lei da vida em sociedade se fenomenaliza em uma lei da natureza. Trata-se fundamentalmente aqui do fetichismo da mercadoria. Em suma, toda equivalência mercantil possui a estrutura de uma equivalência matemática. Mas ela não é somente isso: ela é mercantil. Assimilá-la, simplesmente, a uma lei natural da conservação oculta completamente a sua dimensão institucional normativa. É essa norma implícita que faz com que possa haver desperdício ou mercadoria danificada, enquanto que, na natureza, nada se perde, nada se cria. Trata-se do fenômeno de substituição de uma forma natural por uma forma social, que Marx chama de "fetichismo da mercadoria". Isso nos leva a fazer uma distinção entre a visão do senso comum e a visão dos intelectuais. Para o senso comum, com efeito, incluindo os intelectuais em sua vida quotidiana, o sol nasce a leste e se põe a oeste. Mas os intelectuais sabem que, ao contrário das aparências, é a terra que se movimenta de leste para oeste. Assim, também, os intelectuais sabem que o desejo gerado pela comunicação linguística que acompanha toda troca é metamorfoseado, sob o efeito da mercantilização, em uma mediação pelo dinheiro, de modo que este último aparece como o meio universal de satisfação dos desejos. Os desejos se tornam, então, venais. Mas, para o senso comum e de forma manifesta, o fato de que a troca mercantil pareça possuir, por engano, um equivalente na natureza, faz do poder de compra do dinheiro uma propriedade consubstancial e natural ao próprio dinheiro. Ou seja, aquilo que os intelectuais sabem tratar-se de um desejo venal latente gerado pela "língua que as mercadorias falam entre si", seguindo a feliz fórmula de Marx, se manifesta como uma necessidade mínima irredutível.

 

Globalização e sede de poder absoluto

Essa "venalização" explode com a globalização contemporânea. Não que esse fenômeno seja recente. Ele é contemporâneo ao surgimento do capitalismo e talvez seja mesmo uma das suas causas. Mas, quantitativamente, ele assume tamanha proporção que acaba por apagar as fronteiras e por produzir uma homogeneização que garante empresas de escala planetária. A venalização trai sua essência escondida pela emergência de três mercados que a exploram: o das armas, o das drogas e o do tráfico de seres humanos, essencialmente de mulheres, de crianças e de trabalhadores imigrados.

De maneira estrutural, essa globalização disfarça a operação simbólica na origem das moedas nacionais e oferece a elas um padrão de padrões, ou seja, uma moeda – mercadoria global, o ouro, historicamente durante o "longo século XIX" que se estende de 1789 a 1914. Após as derrotas de Keynes em relação às negociações de Bretton-Woods, a moeda global tornou-se um híbrido entre o ouro e o dólar, denominada, por isso, Gold Exchange Standard, na qual a paridade fixa entre o dólar e o ouro foi estabelecida em $35 a onça. Essa paridade foi rompida unilateralmente por Richard Nixon em 15 de agosto de 1972 devido às dívidas acumuladas pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã, o que restabeleceu a regulação do simbólico americano pelos fundamentais reais como o ouro, o petróleo e as matérias-primas.

A dinâmica exponencial da globalização resulta especificamente menos da mercantilização propriamente dita do que de seu motor econômico capitalista. É por isso que existe, na escala do planeta, um valor absoluto, aquele que é veiculado pelos mercados financeiros, mas cuja essência seria uma venalização do desejo, e cuja manifestação seria a adição irrepreensível a esse valor – sua "necessidade vital" – aquilo que designamos acima por "fome demoníaca por ouro" (auri sacra fames). As reservas de ouro de Fort Knox possuem, nessas condições, apenas um valor fantasioso.

 

A religião da vida quotidiana

Para isso, voltamos à noção de fetichismo para interrogá-la de maneira anacrônica como uma religião, à luz da etnologia contemporânea. A palavra "fetichismo" é um neologismo proposto pelo presidente de Brosse, em 1770, para caracterizar o "culto aos fetiches". O termo "fetiche" tem a mesma origem etimológica latina que a palavra factice do francês. Ele é conotado como objeto mágico que engendra ilusões e mesmo bruxaria. Os exploradores portugueses dos séculos XV e XVI designaram, assim, objetos, pedras, bastões, estátuas, talismãs etc., que os chamados "primitivos" dotariam de poderes mágicos.

 

O desprezo colonialista por religiões de sociedades desprezadas como primitivas

No início do século XIX, o fetichismo foi, então, considerado como uma religião caracterizando um estado primitivo na história das religiões. Esse estado era visto com condescendência, não somente pelos escravagistas e pelos colonizadores portugueses, mas mesmo pelos intelectuais ocidentais, em nome da superioridade de sua ciência e de sua civilização. Lembremos que, naquela época, primeira metade do século XIX, a etnologia ainda não existia e, a fortiori, o totemismo ou o animismo ainda não haviam sido descritos. Se Marx queria fazer uso de uma religião "primitiva" para ironizar a boa consciência ingênua e arrogante de seus contemporâneos colonialistas, possuídos pelos sortilégios da cidade mercantil, o único termo de que ele dispunha era "fetichismo".

O inconveniente da neutralização do desprezo por parte da etnologia científica destruiu a ferocidade da ironia marxista!

 

O fetichismo do século XXI

Nos dias atuais, os etnólogos recusam essa visão linear, imperialista e colonialista da história, a ideologia do progresso que lhe subjaz e a soberania das ciências exatas exaltada por Augusto Comte. Eles abandonaram, além disso, o termo fetichismo desde 1903 graças a Marcel Mauss (1950). Hoje em dia, Philippe Descola (2005) distribui de forma estruturalista todas as religiões, sem que haja umas mais primitivas que outras, em quatro classes: o totemismo, o naturalismo, o animismo e o analogismo. O fetichismo não está incluído. Assim, aquilo a que se referiam Marx e Comte entraria no caso do totemismo: com efeito, para utilizar os critérios de Descola nas sociedades totêmicas, as leis que regulam as relações entre os homens são obrigadas a estar em continuidade com as leis que regem os seres da natureza. Nas tribos totêmicas, essas leis são as leis da cultura, enquanto que para os fetichistas ocidentais contemporâneos – nós mesmos – estas são leis da natureza. Nossa filosofia espontânea é aquela de Durkheim: nós tratamos os fatos sociais como coisas. No início do século XIX, essas leis eram as leis da física, ou seja, eram as leis da mecânica racional do ponto material. Foi preciso esperar um século para que a mecânica fosse aplicada a objetos invisíveis, coextensivos a todo o universo e, assim, em particular, não claramente individualizados como as ondas; em suma, foi preciso esperar um século para que a mecânica se tornasse "ondulatória", seguindo a feliz expressão cunhada por Louis de Broglie (1928). No século XXI, aquilo que Marx designa por fetichismo da mercadoria – a reificação das relações sociais – aparece menos como a metamorfose das relações sociais de troca em pontos materiais naturais – sua coisificação – e mais na crença de que as leis que regem as relações entre os homens entre si são tão naturais, inexoráveis e absolutamente deterministas quanto as leis da física. A reificação generalizada consiste, então, em fazer da economia um avatar da "mecânica racional generalizada". Os seres humanos não podem escapar à causalidade mecânica (eficiente). Como dizia Mrs. Thatcher, TINA: "There is no alternative!". A consequência para o desejo venal latente gerado pela estrutura mercantil é que ele se manifesta como uma necessidade vital e imperativa que escapa a toda formação ou civilização, como diriam Freud e Elias (Norbert, 1973, 1975). Tudo se passa como se a venalização do desejo impedisse a sublimação.

 

Desejo venal e perversão fetichista

Mas a popularização desse esclarecimento conceitual atribuído à etnologia contemporânea é difícil, pois o sinônimo de "fetichismo da mercadoria à la Marx" é chamado na linguagem erudita de totemismo. Por outro lado, o sentido histórico da palavra fetichismo é revestido pelo homônimo que designa normalmente uma perversão sexual. Chamarei este de "fetichismo à la Freud" para distingui-lo do primeiro. No primeiro, a magia não consciente consiste em travestir cultura em natureza. O segundo, o "fetichismo à la Freud", no inconsciente, oculta, substitui e evoca a sideração da Medusa. Uma denominação exata e eloquente do "fetichismo à la Marx" que não seja poluída pelo "fetichismo à la Freud" torna-se, então, um desafio. Contudo, a análise formal autoriza uma certa aproximação, mesmo pagando o preço de confusões teoricamente perigosas. Com efeito, a visão (no sentido da vista) que foi empurrada pela porta pela extensão do "fetichismo à la Marx" aos serviços mercantis retorna pela janela do "fetichismo à la Freud". O primeiro resulta da "linguagem que as mercadorias falam entre si". Nessa linguagem, a reificação se traduz por metonímias: a propriedade para o proprietário, a roupa para o alfaiate. As necessidades e os desejos pertencem a dois domínios diferentes. Isso se refere à metáfora. As necessidades são satisfeitas por extensão, enquanto que os desejos colorem com afetos os pensamentos formatados pelas instituições mercantis. Por seu turno, o "fetichismo à la Freud" remete a contiguidades ou a partes pelo todo, o que se refere à metonímia. Em todo ser humano existe, adormecido, um são Tomás que apenas pode ser convencido da realidade de um valor mercantil se tocado ou enviado por ele, nem que em uma pequena dose. Assim, todo serviço mercantil invisível e/ou público apenas pode se assemelhar a um iceberg, do qual uma pequena parte exterior permanece visível. Isso é ainda da ordem da metonímia.

Se consideramos, por exemplo, a assinatura de uma rede de telefonia celular, o "fetichismo à la Freud" não introduz uma solução de continuidade, mas sim de contiguidade entre o Smartphone, a rede de transmissão, o servidor de gestão e o banho de ondas eletromagnéticas no qual se propaga a comunicação linguística. Mas, por seu turno, o "fetichismo à la Marx" reifica esse ecossistema do valor suprassensível, fazendo-o ser representado pela pequena extremidade do Smartphone, que aparece como um fetiche, no sentido comum do termo, do qual a aquisição é vital. Ocorre, assim, a vingança da visão sobre o invisível, sobre o não individual e sobre o não palpável. Mas, no nível profundo da estrutura, houve um deslocamento, uma transferência do serviço mercantil sensível em direção ao dinheiro suprassensível necessário para comprá-lo.

Assim, uma articulação formal possível entre metáforas e metonímias autoriza a aproximação entre o "fetichismo à la Marx" e o "fetichismo à la Freud", entre o desejo venal e a perversão fetichista, de modo que o emprego de tal articulação nos parece, nesse momento, adequado.

 

Venalização mercantil e venalização capitalista

Marx emprega a fórmula M-D-M para anotar a sintaxe da circulação simples, aquela que exprime o consumo comum. Neste nível, não há diferença entre o desejo venal do proletário e aquele do capitalista, já que ambos reproduzem a existência, no contexto do mercado, dos bens e serviços.

Disso resulta que a aquisição do dinheiro necessário – reificação do valor – materialização sensível sob a forma de escrita (e não sob a forma de uma coisa bruta) de um suprassensível (o valor) – é a forma fenomenal do objeto do desejo. Como consequência, este último é essencialmente quantitativo. É aquele "sempre mais" ou de um poder de compra sempre crescente. Isso é válido tanto para o proletário como para o capitalista.

O objeto específico do desejo capitalista, completamente separado de toda necessidade, é aquele valor de uso específico da força de trabalho que consiste em sua capacidade de ser explorada, ou seja, em produzir lucro. Sua sintaxe é D-M-D'. Como consequência, a medida do desejo venal do capitalista não se exprime por uma soma de dinheiro, como é o caso do desejo do consumidor, mas por um número puro, uma taxa, aquela do aumento do capital (D-D') relacionada ao capital inicial (D), ou seja, uma taxa de lucro.

Mas há um efeito de retorno da "segunda reificação" sobre o proletário: este último é metamorfoseado, individualizado, coisificado, tornado visível e manipulável como uma mercadoria visível da força de trabalho "livre": na cidade mercantil o seu estado civil combina sua assinatura com uma conta na qual ele pode receber seu salário.

 

Conclusão

Assim o circuito é fechado: retomo o aforismo de Gandhi. A única correção que teríamos a audácia de pretender fazer é que esse aforismo é particularmente verificado, e mesmo de maneira paroxística, em nossas economias de mercado. Portanto, a riqueza mercantil de toda terra seria suficiente para satisfazer as necessidades animais de todos os seres humanos. Entretanto, todas as mercadorias não poderiam satisfazer seus desejos alienados pelo dinheiro – os desejos venais.

Em um primeiro momento, lembrei que o desejo é a essência da humanidade. O valor acrescentado pela psicanálise lacaniana consiste em fazer desse desejo genérico um efeito de estrutura de toda linguagem. A "linguagem que as mercadorias falam entre si" constitui uma linguagem relativamente grosseira. Nela, o sujeito mercantil é aquilo que representa uma mercadoria para uma outra mercadoria, um valor de troca. Em um terceiro tempo, retorno sobre o fetichismo da mercadoria como religião dita, de forma desdenhosa e irônica, "primitiva" no século XIX pelo pensamento reacionário e colonialista, mas referido de modo irônico e espirituoso por Marx como idêntico à ingênua e arrogante "religião da vida quotidiana" sob o capital. O discurso da etnologia contemporânea analisa o fetichismo como uma variante do totemismo que vê as leis sociais internas à comunidade humana como leis da natureza externa. Nos dias atuais, a satisfação das necessidades não se efetua exclusivamente pelos objetos visíveis, palpáveis e individualizados, mas pelas atividades em campos invisíveis ou não (serviços, por exemplo) ou consumos de bens e serviços públicos não individualizados. As partes da produção global consumida individualmente são tornadas visíveis graças à escrita (principalmente os contratos). O resultado da satisfação impossível dos desejos venais toma então a forma fenomenal da necessidade absoluta de adquirir bens visíveis sob a forma de fetiches, como se fossem necessidades absolutas. Essa restrição incontornável reforça o totalitarismo da venalização latente e da alienação compulsiva que a acompanha.

 

Referências

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Endereço para correspondência
BERNARD GUIBERT
16, rue Georges Clémenceau
14360 TROUVILLE sur Mer – França
tel.: 33 9 67 27 19 64
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Recebido: 05/05/2014
Aceito: 16/05/2014

 

 

* Formado pela Escola Politécnica de Paris, Doutor em Economia pela Sorbonne, ex-economista e estatístico do INSEE (Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos).
1 Texto escrito para apresentação no seminário de psicanálise oferecido por Monique David-Ménard durante o ano letivo de 2013 em Paris (França).
2 Tradução: Patricia Cabianca Gazire, psicanalista membro associado da SBPSP, doutoranda da École Doctorale Recherches en Psychanalyse et Psychopathologie da Université Paris-Diderot (Paris 7). Revisão: José Martins Canelas Neto, analista didata da SBPSP.
3 Food and Agricultural Organization, ONU.
4 N. da T.: citação do poema "O Barco Bêbado" de Jean-Arthur Rimbaud. Texto bilingue. Tradução de Pedro José Leal, Editora Hena, Portugal, 1985.