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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.58 São Paulo jul. 2014

 

EM PAUTA - O DINHEIRO

 

"A liberdade é azul", mas está no vermelho

 

"Three colors: blue", but the color of freedom seems to be in the red

 

 

Clarice Niskier*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Dinheiro é excitante. Dinheiro é sexo. Dinheiro é liberdade. Comprar é excitante. É erótico. Armadilha. Nem toda soma de dinheiro é capital. O dinheiro torna-se capital no modo de produção capitalista. Assim a mercadoria também torna mercadoria-capital. Entender a mais-valia. O artista vive no azul da liberdade e no vermelho das dívidas. E das dúvidas. Necessidade de esclarecimentos. Estudo. Capital humano. Psicanálise, Ciência, Cabala, Teatro, Amor, Poesia, Humor. Muito humor para suportar as vozes dissonantes. O artista busca diálogo. Diálogo com seu Eu e com o Outro. Erotiza a vida e a vida o erotiza. É livre com ou sem dinheiro. Mas com dinheiro ele é mais livre. "O dinheiro não é tudo. Mas quando você tem muito dinheiro pelo menos ninguém chama: Hei, você aí!", Millôr Fernandes.

Palavras-chave: Casaco Prada, Vestido Channel, O grito do autor, Oduvaldo Vinanna Filho, Karl Marx, Freud, Diálogo, Fetiche, Oportunidades imperdíveis, Humor, Harmonia, Capital humano, Neutro, Eu, Narcisismo, Objeto, Mercadoria, Cosmo, Mistério, Conta-corrente, Poupança, Capital financeiro, Semente, Escambau.


ABSTRACT

Money is exciting. Money is sex. Money is freedom. Buying is exciting. It is erotic. It is a trap. Not all sum of money is capital. Money becomes capital in the capitalism. This way goods also become capitalgoods. Understanding the surplus value. The artist, always in the red, has an account in the black when the topic is freedom. Full of doubts, the artist needs enlightening. Studying. Human capital. Psychoanalysis, Science, Cabala, Theater, Love, Poetry, Humor. A lot of humor to handle the dissonant voices. The artist seeks dialogue. A dialogue between the Self and the Other. He eroticizes life and it is eroticized by it. He is free with or without money. But he has more freedom with money. "Money isn't everything. But when you have a lot of it no one calls you: 'Hey, you there!'", Millôr Fernandes.

Keywords: Prada coat, Channel dress, The author's scream, Oduvaldo Vianna Filho, Karl Marx, Freud, Dialogue, Fetishism, Opportunities one cannot miss, Humor, Harmony, Human capital, Neutral, Self, Narcissism, Object, Goods, Cosmos, Mistery, Transactional account, Savings account, Financial capital, Seed, "My foot!".


 

 

"O dinheiro é a mais violenta das invenções humanas. "
Millôr Fernandes

Rio de Janeiro, setembro de 2013, dia de semana. Estou em uma das ruas mais populares de Botafogo, um bairro carioca. Faz trinta e dois graus à sombra. Trânsito intenso na rua principal, inúmeras lojas abertas, estou com uma pressa danada. Já fui ao banco, agora sigo em direção ao supermercado para depois ainda realizar todas as tarefas preparatórias da peça A Alma Imoral que apresento à noite. Ao lado de uma locadora de vídeos que insiste em sobreviver há uma lojinha que mais parece uma garagem. É uma espécie de bazar permanente onde trabalham uma senhorinha e uma balconista sem prática, mas com muita boa vontade. Algumas peças de roupas usadas estão penduradas em uma arara exposta na rua. São roupas femininas, com preços promocionais. Um casaco de inverno de estilo arrojado, protegido por um plástico transparente, me chama a atenção. É um casaco robusto, moderno, de cor refinada – gelo perolado –, e está pendurado no meio das roupas usadas. Há nele uma quantidade exagerada de etiquetas. Parece coisa importada. Apesar da pressa, me aproximo. O capuz é forrado com pele de coelho. Meus dedos encostam levemente na pele para sentir se é falsa ou verdadeira. Gostam do que sentem. Vejo que há três bolsos embutidos, um cinto de segurança com local específico para guardar dinheiro, forro com costura dupla, tripla, fecho ecler interno da mesma cor refinada do fecho ecler externo. É um casaco raro, caro, e sem dúvida para ser usado em um inverno glacial. Numa das etiquetas do casaco está escrito a marca: Prada. "Chegou hoje", diz a senhorinha da loja com expressão humilde. E completa: "Sem uso". O que um artigo de luxo desses está fazendo em uma loja escondida em Botafogo? penso. E como se a senhorinha lesse meus pensamentos, responde: "Eles tentam entrar no país com esses casacos sem pagar os impostos. Às vezes, não passa. A mercadoria fica detida na alfândega. Esse ficou detido dois anos. Eram mais de 20 casacos iguais a esse. Distribuíram hoje para venda em postos beneficentes". Então, vejo o preço em uma etiqueta escolar colada num cantinho do casaco: R$600,00. "Fazemos à vista para senhora por R$500,00." Por que eu compraria um casaco de neve Prada naquele calor infernal? Sabe quando vou usar esse casaco? Nunca. Minhas próximas viagens são para Salvador, Maceió, Teresina. Nem a Porto Alegre eu vou esse ano. Para a apresentação da peça A Alma Imoral em Nova Iorque tem teatro, mas está sem patrocínio. "Podemos fazer em duas parcelas de R$250,00." Saquei o cartão. Comprei. E lá fui eu para o supermercado segurando um cabide com um casaco de neve Prada, envolto em um plástico transparente que queimava minhas costas ao sol. Eu estava mais para uma entregadora de tinturaria do que para uma turista de primeira classe que se preparava para viajar à Escandinávia, passear de trenó.

Tempo.

A adrenalina baixou.

Por que comprei a droga desse casaco? Parece mais um urso polar capturado. Vou ser detida pelos ativistas ambientais. Tem ideia de quanto vai custar só a lavagem desse capuz?

Clarice, foi uma ótima compra.

Que mundo é esse que inventa oportunidades imperdíveis para você que não tem a menor necessidade de nenhuma das oportunidades imperdíveis que ele inventa para você?

Não comece a se torturar.

Seduz você a comprar algo, fazendo com que acredite que está economizando ao comprar. Gastei R$500,00 sem a menor necessidade e sem que tenha entrado nada na poupança. Como economizei? Comprei um casaco que nunca desejei comprar. Nunca desejei? Que mundo é esse cheio de armadilhas?

Entrei no supermercado.

Que esconde o tomate podre na bandeja de tomates pouco se importando se você vai morrer depois de comer pelo que pagou? Que adultera preços, prazos, pesos, validades, medidas, valores, embalagens, se lixando para a moral ou a higiene? Que faz você gastar o pouco que tem na fantasia de um dia ter o muito que não bastará? Confina você numa alienação tal que você não consegue enxergar mais ninguém, além de você mesma, a um palmo do seu nariz? Tira o que é teu, para te cobrar pelo que te empresta? Te vicia, te promete o paraíso? Vaticina que serás um pária se dele escapares com vida? Ou o mais feliz dos homens se possuíres todos os bens materiais disponíveis sobre a face da Terra?

Foram só duas prestações de R$250,00

Que mundo é esse?

Fui para a fila do caixa.

Gera tanta desigualdade social que a desigualdade entra dentro de você fragmentando sua personalidade em mil faces descontínuas. Para que tantas vozes dissonantes em um único cérebro? Esquizofrenia social e individual onde o imaginário e o real se confundem de tal maneira que não sabemos mais qual voz é a derradeira. Que mundo é esse? Que nos oferece em holocausto no trânsito, nos hospitais, nas escolas? Que mata, destrói e quebra para cobrar pela reconstrução, pelo conserto e pela vida?

Para.

Cheguei a casa.

Como diz a grande atriz Camila Amado: "o que me cansa não é o que eu faço, é o que eu sinto".

Escuta.

Eu não tinha a menor necessidade de comprar um casaco de neve. Não importa se foi caro ou barato. Tenho mil outras prioridades no momento.

Você fez muito bem em comprar. Esse casaco deve custar no mínimo uns R$6.000,00. Você teve uma sorte tremenda. Por que tanta angústia? Culpa? O fato da marca ser de luxo não significa necessariamente que ele não seja apenas um casaco. Você comprou um excelente casaco por um preço que podia pagar. Pronto. Só isso. Fazer uma boa compra faz parte da vida. Gastar um extra para aproveitar uma oportunidade é a coisa mais natural do mundo. Agora, é torcer pela sua estreia em Nova Iorque.

Tempo.

Na peça teatral Corpo a Corpo, de Oduvaldo Vianna Filho, escrita em 1969 e encenada pela primeira vez em 1971 por Antunes Filho, com Juca de Oliveira no papel da única personagem – o atormentado publicitário Luiz Toledo Vivacqua –, a questão da divisão interna dos homens em relação ao sistema político e econômico em que vivem é soberba, e tragicamente atual. Após saber que seu amigo perderá o emprego porque não serve mais à empresa publicitária que ajudou a construir, Vivacqua vivencia uma noite terrível, angustiante, confessando seu cansaço em servir a um sistema que embrulha o estômago. Bêbado, drogado, ele passa a madrugada amaldiçoando a empresa pelo embrutecimento da alma. Promete o rompimento total. Até que toca o telefone. É o seu patrão convidando-o para ocupar o lugar do amigo que será despedido. Vivacqua esquece toda a angústia e aceita a promoção, aliviado por ainda pertencer ao sistema que agora o protege e o beneficia. A virada da personagem é o grito de alerta do autor. No fim, Vivacqua olha para o público e diz: é a regra do jogo. "... agora ficam com nojo quando descobrem que alguém ganhou esse jogo?". "Um Fausto tropical", como definiu o diretor teatral Eduardo Tolentino, em 1995, quando remontou a peça em São Paulo com o ator Zé Carlos Machado. Corpo a Corpo deu origem também ao filme Carreiras, de Domingos Oliveira, que rendeu à atriz Priscila Rozenbaum o Kikito de Ouro de Melhor Atriz no Festival de Gramado, em 2006. Domingos adaptou a peça para o contexto do jornalismo na TV. Mas ali estava a questão: realizar a ambição individual de ascensão social mesmo que a própria alma morra de insatisfação e o mundo se exploda, ou romper com um sistema de valores ilusórios e se engajar na construção de uma sociedade que distribua suas riquezas de forma a não gerar misérias, adequando ambições individuais às necessidades coletivas?

Ter ou não ter dinheiro, não é essa a questão. Porque a resposta é simples, pelo menos para a maioria dos mortais. A questão é articular a riqueza à nossa consciência. À nossa alegria de viver, à nossa liberdade, saúde, inteireza. A liberdade é azul, mas às vezes fica no vermelho. Estou, neste momento, curiosamente, no azul (conta poupança), e no vermelho, (conta-corrente). Por quê? Porque tenho aproveitado oportunidades imperdíveis. E não quero baixar nada da poupança. Se o inconsciente é dominado pela lógica paradoxal, a administração financeira de um artista também o é. É clássica a cena da moça rica, prisioneira de seu conforto, olhando com inveja a alegria da moça pobre, flor do campo, que brinca livremente na chuva com seu vestido de chita. É clássica a inveja da moça pobre olhando a moça rica desfrutar de seu prestígio social, sua segurança, seus direitos e escolhas materiais sem fim. Eis a questão: como não nos tornarmos escravos do dinheiro? Nem da falta, nem do excesso? Como não nos tornamos cínicos? "Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço. " Como não sucumbirmos ao fetiche da mercadoria? Não trocarmos nosso reino de valores por chicletes, confetes, serpentinas? Como seguirmos em frente na solidão de nossas escolhas? Como ser ao mesmo tempo a cigarra e a formiga? Eu sou a cigarra e a formiga. Como superar obstáculos e aumentar nossos níveis materiais de vida sem perdermos nossas fontes puras de sobrevivência? Como nos relacionarmos com o dinheiro sem medo da liberdade? Dinheiro: medida de valor que ultrapassa nossa capacidade de entendimento. Não compreendo uma cédula sem lastro. Uma vida sem lastro. Status? O que é status? Como discernir no abrir e fechar da carteira o valor real das coisas? Um vestido Channel pode alcançar o preço de R$51.000,00 sem nos causar espanto? Em janeiro deste ano, no JK-Iguatemi/SP, a Channel colocou à venda um vestido, estilo futurista, a este preço.

Tempo.

Após consultar o verbete "capital" no Dicionário do Pensamento Marxista, editado por Tom Bottomore (2012, p. 67), compreendo o seguinte: o processo de produção social no capitalismo transforma em caráter natural o valor material das coisas, como se esse valor expandido fosse inerente à natureza das coisas, quando na verdade não é. "Este é um dos exemplos mais importantes do fetichismo pelo qual o caráter social conferido às coisas pelo processo de produção social é transformado num caráter natural inerente à natureza material dessas coisas." (Bottomore, 2012, p. 66). Na realidade, a "autovalorização do valor" é consequência de um processo de produção que gera a mais-valia e transforma não só o dinheiro, mas também mercadorias em capital. O que é capital? O que assegura "taxa de retorno", "relação social que toma a forma de coisa", "fonte de renda", "processo de expansão do valor", ou como escreve Tom Bottomore, "categoria complexa que não é passível de uma definição simples" (p. 64). O importante é entender que o nosso processo de produção, a maneira como as forças de trabalho se entrelaçam ao modo de produção, não é propositadamente claro, transparente. É um processo velado, ocultado por diversas camadas de ideologia, o que resulta no fetichismo do ponto de vista econômico. Ao vermos as mercadorias expostas (principalmente as caras), elas nos enchem os olhos. São promessas, juras de amor, juros, compensações, seja no JK-Iguatemi ou na arara de um bazar beneficente, pois mesmo com os preços fora do mercado, o capital contido nas mercadorias se eterniza de alguma forma e a compra desse capital é o que chamamos de "oportunidade imperdível".

O.k., devolve o casaco, Clarice.

Nada nesse mundo do dinheiro é tão natural quanto parece.

O.k. Devolve o casaco.

Não, hei de usá-lo em Nova Iorque.

Karl Marx demonstra que na esfera da circulação do dinheiro existem duas transações importantes, de acordo com o Dicionário de Tom Bottomore: a série Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria (M-D-M) e a série Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro (D-M-D). A primeira, M-D-M, está a serviço da "reprodução do trabalhador", quer dizer, uma equação onde o salário tem poder de compra e assim o dinheiro se mantém nas esferas que engendram o próprio sistema produtivo de mercadorias. O dinheiro assume formas agressivas em sua circulação, mas não tão devastadoras como na segunda equação: Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro (D-M-D). Nesta, mesmo que aqui e ali o capital promova paradoxalmente um legado positivo – grandes magnatas construíam grandes museus em grandes metrópoles, como aconteceu nos E.U.A –, a vida vai se tornando mercadoria. Ela se desdobra na terrível série Dinheiro- Vida-Dinheiro. O dinheiro não é mais um meio de pagamento, mas um fim em si mesmo. Nossa vida passa a ser o meio para que trocas de mercadorias aconteçam. E não ao contrário, mercadorias circulam para que possamos viver. Isso significa, entre outras coisas, que o legado cultural, espiritual, científico, filosófico, afetivo, artístico se afunila para se transformar em mercadorias. O capital suga a vida de canudinho. É o nosso momento histórico: vivemos uma luta titânica pela sobrevivência. O capital é coercitivo e genocida, enquanto a vida resiste espalhando conhecimento e semente. O interessante é pensar que a partir do capital financeiro – bancos controlando setores produtivos, complexas formas de transação do dinheiro através da globalização –, mudanças profundas para o bem poderão ocorrer em nossa civilização. O capital financeiro, talvez, seja uma das últimas etapas possíveis do capitalismo. Por isso, estamos vendo surgir o Capitalismo Verde, Sustentável, Social, Zen, o escambau. Há muitos anos atrás acompanhei a tese de um amigo que estudava sociologia na PUC-RJ. Ele demonstrava que a abertura política do governo Figueiredo na realidade tinha começado nos porões do governo Geisel. (Por onde andará o Aluisio?) Não estou dizendo com isso que devemos ficar diante da TV esperando o capital se humanizar. Estou querendo dizer, como o Vianninha nos ensina, que o sistema tem tantas contradições quanto nós (o sistema é o homem) e essas contradições são fragilidades, brechas, espaços por onde também podemos avançar e multiplicar a vida.

Escambau vem de escambo?

Não faço a menor ideia. Falar de dinheiro perturba você, não?

Freud, no artigo "Início do tratamento", de 1913, escreve: "poderosos fatores sexuais estão envolvidos na apreciação do dinheiro. [...] as questões de dinheiro são tratadas pelos homens civilizados de modo semelhante ao das coisas sexuais, com a mesma duplicidade, falso pudor e hipocrisia" (Freud, 1913/2013a, p. 175). Ele recomenda ao psicanalista iniciante que trate de dinheiro com seus pacientes, "com a mesma natural franqueza na qual pretende educá-lo em questões sexuais" (p. 175). E durante a leitura de um outro texto de Freud, "Introdução ao narcisismo" (1914/2013b), uma ideia me vêm à cabeça. Uma analogia com a série de Karl Marx. Analogia-brincadeira que fez sentido para mim. Fala da libido, da forma como lidamos com a realidade, com a vida, com o Shopping, com as nossas escolhas amorosas; uma síntese poética entre tantos esclarecimentos. Faço uso do jargão do Dicionário Marxista: há duas séries opostas de transações na esfera da circulação da libido, Objeto-Eu-Objeto (O-E-O) e Eu-Objeto-Eu (E-O-E). Na primeira, o Eu é o meio de amar o Outro; na segunda, o Outro é o meio de amar o Eu. Essa equação nos dá condições de reflexão sobre a fome e o amor, o dinheiro e o furor, a alegria de viver e a dor. E pergunto: afinal, quem nasceu primeiro, o Eu ou o Outro?!?

O NEUTRO.

N ( EU ) TRO.

NEU ( ) TRO.

Silêncio.

(No teatro o tempo é uma coisa bem diferente do silêncio. Silêncio é puro fluxo. Tempo é desejo de fluxo.)

Estávamos falando do Eu e do Outro.

Sim.

Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas afinal é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar. Algo semelhante à psicogênese da criação do mundo, tal como imaginado por Heine:

A doença foi bem a razão
De todo o impulso de criar;
Criando eu pude me curar,
Criando eu me tornei são.

Canções da Criação, de Heine, citado por Freud no texto de 1914, "Introdução ao narcisismo".

Em algum lugar do universo começa a nossa doença: a corrida ao ouro, ao outro, a si.

Em algum lugar do universo começa a nossa cura: a corrida ao ouro, ao outro, a si.

Para a classe média, o gasto de dinheiro exigido na psicanálise é excessivo apenas na aparência. Se considerar que são incomensuráveis, de um lado, saúde e capacidade de realização, e, de outro, um moderado dispêndio financeiro: somando os gastos infindáveis com sanatórios e tratamento médico, e contrapondo a eles o acréscimo da capacidade de realização e aquisição, após uma terapia analítica bem-sucedida, pode-se dizer que os doentes fizeram um bom negócio. Não há nada mais caro na vida que a doença – e a estupidez. (Freud, 1913/2013a, p. 178)

Um homem paga R$1.000.000,00 por um carro, uma mulher paga R$300.000,00 por uma roupa, mas ambos não pagam um tostão por uma terapia de casal. Não podemos julgar se essas pessoas são verdadeiramente ricas ou não, no sentido existencial da palavra, assim como também não podemos dizer se, pelo que gastam, são perversas a ponto de serem internadas ou detidas em prisão domiciliar. Sei que a maioria daqueles que têm muito dinheiro "não estão particularmente preocupados com qualquer forma de harmonia" (Bonder, 2010, p. 47), como escreve Nilton Bonder, no livro A Cabala do Dinheiro. No livro, Nilton Bonder não faz nenhum juízo de valor. Está reconhecendo nossas idiossincrasias diante do misterioso tema: "Justo com uma vida ruim, perverso com uma vida boa" (p. 47). Como perseverarmos na busca de prosperidade em harmonia com o universo, sociedade, natureza, gerações futuras, o outro, o eu, se tantos estão pouco se lixando para isso? "Sou criança e não conheço a verdade", canta Cássia Eller. É tempo de se recolher, e estudar para compreender nosso tempo, tempo de contradições extremas, e partir para o front. "O famoso 'tempo é dinheiro' representa uma aberração para os valores judaicos. Tempo é estudo, qualquer excedente de tempo deve ser acumulado e investido em estudo" (Bonder, 2010, p. 32), diz Nilton Bonder. O conhecimento (chamado por Karl Marx de capital humano) é fonte preciosa para o nosso sustento.

O entendimento reorganiza a libido. A libido reorganiza as ações.

Por falar em ações, preciso consultar a Bovespa.

A verdade me difama.

Clarice, seu tempo excedente acabou.

Só um instante. Estou vendo conteúdo erótico em várias expressões ligadas ao dinheiro.

Retirada da poupança, por exemplo. Poupança na gíria é bunda.

Para.

Injetar uma grana/ Reter o fluxo/ Molhar a mão/ Arrombar o cofre.

Por favor.

Dilatar os prazos/ Ganhar de enfiada.

Futebol.

Quando o cara perde muito dinheiro – o que ele faz? Uma cagada.

Escatologia final.

O assunto é dinheiro. Agora é que a coisa está ficando boa.

E meu tempo excedente de fato acabou. Despeço-me com uma sacada (desculpem o trocadilho) maravilhosa do Millôr Fernandes:

dinheiro é o único veículo de transa social que não utiliza, em sua promoção, imagem de mulher nua ou pelo menos sexy. Você nunca viu papel-moeda com seios, coxas ou bumbuns estampados. Em todo o mundo as notas só nos mostram escritores barbudos, políticos carecas, santos esquálidos. No máximo uma rainha Vitória, uma imagem da República, bonita mas machona, ou uma égua acabrunhada montada por um herói oficializado (o que não teve tempo de fugir). Nenhuma Mata Hari, nenhuma Dubarry, nenhuma Xuxa. Não, o dinheiro não precisa desses reforços afrodisíacos. Formal, careta, feio, sujo, rasgado, colado, ele é sempre mais sexy do que a Marilyn, em seus melhores momentos. Aqui, neste reino do poder supremo, a mulher-objeto definitivamente não tem vez. (Fernandes, 1994, p. 140)

Dinheiro é só a ponta de um iceberg. O iceberg incomensurável do humano.

Clarice, vai ganhar dinheiro, cacete!

 

Referências

Bonder, N. (2010). A cabala do dinheiro. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Bottomore, T. (2012). Dicionário do pensamento marxista (W. Dutra, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Fernandes, M. (1994). Millôr definitivo: a Bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Freud, S. (2013a). O início do tratamento. In S. Freud. Obras completas (P. C. L. de Souza, trad., vol. 10, pp. 163-192). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913).         [ Links ]

Freud, S. (2013b). Introdução ao narcisismo. In S. Freud. Obras completas (P. C. L. de Souza, trad., vol. 12, pp. 13-50). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (2013c). Sobre transformações dos instintos em particular no erotismo anal. In S. Freud, S. Obras completas (P. C. L. de Souza, trad., vol.14, pp. 252-262). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917).         [ Links ]

Vianna Filho, O. (1969). Corpo a corpo. Peça teatral escrita em 1969 e encenada pela primeira vez em São Paulo em 1971, por Antunes Filho (Recuperado em abril de 2014 em anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
CLARICE NISKIER
Rua Viúva Lacerda, 249, ap. 603 - Humaitá
22261-050 – Rio de Janeiro
tel.: 21 9.95941912
E-mail: clariceniskier@gmail.com

Recebido: 07/05/2014
Aceito: 15/05/2014

 

 

* atriz