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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

CARTA-CONVITE

Revista ide 59 – A morte da Palavra

 

 

[...] Para então descobrir de novo e de novo que a palavra não pode salvar. Que as palavras serão sempre insuficientes para dar conta da vida. Essa é a tragédia, essa é a graça. Dessa busca condenada ao fracasso que todos nós fazemos aqui. Mas, ainda assim, de uma beleza tão pungente.1

Caros colegas e colaboradores

No texto em epígrafe, transcrevemos o depoimento de uma jornalista e escritora que se defronta com a morte ao acompanhar o trabalho de uma equipe dos Médicos Sem Fronteiras. Ele nos remete ao tema difícil e polêmico que, todavia, nos mobilizou para o novo número da revista ide: Morte da palavra?

Não era segredo para ninguém as conversas de Freud com a morte e a finitude, amplificadas por situações objetivas, como a morte de seu pai, de sua filha, Sophie, durante a primeira guerra, e a eventualidade de sua própria morte. Em textos como "Introdução ao narcisismo", "Luto e melancolia", "Além do Princípio do prazer" e "Transitoriedade", só para citar alguns, os temas relacionados à finitude, à incompletude, ao desligamento, são enfrentados. Mesmo receoso diante da morte, Freud convocava à conversa, assim como fazia com os demônios.

Diz-se também que a palavra é a morte da coisa: narrar é desprender-se, apartar-se, privar-se? Cabem muitas considerações diante dessas questões.

O texto clássico de Benjamin, "O narrador", pode aqui nos auxiliar a introduzir o tema. Benjamin entende o narrador como alguém que conta o que extrai de sua experiência vivida, o que pressupõe um outro que escuta. Nessa narrativa, a palavra é viva, encarnada. Não é mera informação, mas experiência, e ao ser veiculada tem um potencial transformador: transforma quem narra, quem escuta e o próprio relato. A formulação dessa ideia, que alude à morte das narrativas e dos narradores, coincide com o clima de guerra enfrentado por Benjamin, devastador, alienante, cujo saldo mais nefasto seria anular a experiência de narrar, fazer história.

Para Agamben, o homem é o ente que fala e o que morre. Ou, sob outro ângulo, o sujeito é o resto entre a linguagem e a morte. E o resto é o avesso da falta, é o que sobra. "Se entrar no portal da lei é ter acesso à linguagem, a partir do momento em que se entra, se morre" (Carta de São Paulo aos romanos).

"Perdi a confiança na linguagem. As armas significam o que dizem." Essa frase foi dita por um oficial da SS na Conferência de Wannsee (onde sabemos, foi oficializada a "solução final"). Anos depois, sobre o mesmo período e sobre sua própria experiência da guerra escreve o poeta alemão Paul Celan:

Só uma coisa permanecia ao alcance, próxima e segura em meio a todas as perdas: a linguagem. Sim, a linguagem. Apesar de tudo, permaneceu segura contra as perdas. Atravessou a falta de respostas, em meio a um silêncio aterrorizante, atravessou as várias escuridões do discurso mortífero. E seguiu. Não me ofereceu palavras para descrever o que acontecia, mas prosseguiu. Prosseguiu e ressurgiu, 'enriquecida' por tudo isso.

O mundo atual, marcado por excessos, velocidade, instantaneidade, nos aproxima da experiência da morte da palavra viva, forjada na angústia e na elaboração. Assim, a vida e seu sentido se esvaem numa sucessão de atos, desprovidos da dimensão simbólica da palavra, num eterno presente. Espécie de abolição do tempo e da história, sem futuro e sem passado. O que também nos leva a pensar numa crise da ética, recurso que a humanidade dispõe contra o que Arendt chamou de "banalidade do mal".

Para Heidegger a linguagem é a clareira do Ser e, o homem, o ente que habita a morada do Ser, como o ser-aí para a abertura, ser temporal, ser-para-a-morte, por isso, ser feito de linguagem. Daí que poiesis indica para Heidegger a manifestação do que põe em obra o sentido, aquilo que doa o sentido da verdade do Ser.

Lacan, em seu retorno a Freud, introduziu uma reflexão psicanalítica sobre a linguagem:

A experiência psicanalítica descobriu no homem o imperativo do verbo e a lei que o formou à sua imagem. Ela maneja a função poética da linguagem para dar ao desejo sua mediação simbólica. Que ela o faça compreender, enfim, que é no dom da fala que reside toda a realidade de seus efeitos; pois foi através desse dom que toda a realidade chegou ao homem, e é por seu ato contínuo que ele a mantém (Lacan, 1998).

A "morte da palavra" também aparece em reflexões sobre as questões da exclusão e da humilhação social. Esta pode ser entendida, segundo Gonçalves Filho (1998), como uma modalidade de angústia relacionada ao impacto traumático da desigualdade de classes, questões de difícil articulação que estão implícitas nos olhares, no isolamento da favela, na fala de seus moradores. O humilhado é bloqueado por muitos lados, mas principalmente por dentro. Algo como um afeto pungente e desorganizador gerando uma angústia que não pode ser nomeada, que transborda, muitas vezes passando ao ato violento, ou à vivência de invisibilidade, não pertencimento, vazio de existência, morte em vida.

Com Arendt enfatizaríamos que as condições para a vida humana são, decisivamente, condições que garantem a comunicação do homem com os outros homens e com o mundo: são condições que garantem a "palavra" e o seu mais livre exercício. Palavra pela qual os homens retomam e ressignificam o sentido de suas ações e de seu mundo comum. A palavra é ingrediente decisivo na realização da vida humana.

Que a palavra viva inspire a todos vocês, nossos colegas e colaboradores!

 

 

José Martins Canelas Neto, Corpo Editorial da ide, e Marcos Brias

 

Referências

Arendt, H. (1993). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Giacóia Jr., O. (2013). Heidegger: urgente introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas.         [ Links ]

Gonçalves Filho, J. M. (1998). Humilhação social: um problema político em psicologia. Psicol. USP vol.9 n.2 São Paulo.         [ Links ]

Heidegger, M. (2010). A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70. Biblioteca de Filosofia Contemporânea.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). Escritos. Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

 

 

1 Eliane Brum, FLIP – Feira Literária de Paraty – julho de 2014.