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Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

EM PAUTA - MORTE DA PALAVRA?

 

A melancolia em Kafka como perda da linguagem: considerações sobre A construção

 

Melancholy in Kafka as loss of language: some thoughts on The Burrow

 

 

Camila Lousana Pavanelli de Lorenzi*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo faz uma análise da novela A construção (1923) de Kafka tendo como foco a psicologia do narrador-personagem. O personagem apresenta traços tanto da melancolia descrita por Freud (1917) e Ogden (2005), com suas autorrecriminações e seu enclausuramento em si mesmo, quanto da melancolia dos escritos de Benjamin, que compreende o impulso para a criação. A melancolia presente em A Construção, porém, ultrapassa as reflexões de Freud e Benjamin: em Kafka, ela assume contornos ontológicos, pois caracteriza-se como perda da linguagem.

Palavras-chave: Kafka, Freud, Benjamin, Melancolia, Linguagem.


ABSTRACT

This paper analyzes Kafka's 1923 novel The Burrow with a focus in the psychology of the character-narrator. The character has traces both of melancholy as described by Freud (1917) and Ogden (2005) with his selfrecriminations and his self-imprisonment, and of melancholy as described in Benjamin's writings, which comprises the impulse towards creativity. The melancholy found in The Burrow, however, surpasses Freud's and Benjamin's considerations: in Kafka's writing, it assumes ontological features, since it is characterized as the loss of language.

Keywords: Kafka, Freud, Benjamin, Melancholy, Language.


 

 

Começo a escrever este ensaio plenamente identificada com o personagem principal de A construção: sem saber exatamente o que sou (não sabemos que criatura o personagem é) nem onde chegarei (o final do conto é inconclusivo), porém, certamente, temendo algo desde o princípio, logo nas duas primeiras páginas do conto, o personagem afirma que "quem tiver vontade... pode invadi-la [a construção] e destruir tudo para sempre" (Kafka, 1923/1998, pp. 63-64).

A construção (1923) é um relato inacabado de Kafka sobre uma criatura inominada que dedicou a vida à construção do título: uma malha de túneis subterrâneos destinados a protegê-la de inimigos externos. A obra, narrada em primeira pessoa, trata em grande parte do medo do narrador-personagem de que a construção seja invadida e destruída. Segundo Carone (1998), no "Posfácio" à sua tradução para o português de A construção, a novela "é a grande ficção autobiográfica de Kafka na sua fase terminal. Ela oferece uma imagem insuperável do modo de existência do escritor, perseguido por dentro pela tuberculose e por fora pelo fascismo alemão" (1923/1998, p. 113).

Ao contrário de Carone, portanto, que faz uma interpretação alegórica do texto – a criatura sendo Kafka e a construção seu modo de existência –, custo a crer que a construção seja sobre qualquer outra coisa que não a própria construção. Neste ensaio, pretendo escrever não exatamente sobre o texto de Kafka, mas a partir dele, já que o texto não me convida a associações de tipo autobiográfico.

Vale dizer que essa "impermeabilidade às associações", que vejo em A construção em particular e na obra de Kafka em geral, não é uma percepção exclusivamente minha: Marthe Robert, biógrafa e comentadora do autor, fala em um "poder de identificação que permite ao poeta ser, de cada vez, a figura, o objeto, o mundo ou a parte do mundo que evoca" (Robert, 1963, p. 102). Ela prossegue: "É assim que [Kafka] é Prometeu e o rochedo, o animal humilhado e o herói fabuloso, o céptico e o crente" (Robert, 1963, p. 103, grifos do original). Isto é, todos os elementos da prosa de Kafka, personagens e cenário, entes animados e inanimados, são carregados de sentido, pois que impregnados da identificação da voz narrativa para com eles. Não há, portanto, "figurantes" no texto, não há objetos ou personagens apenas por motivos funcionais, para "preencher o vazio" (o mesmo se passa estilisticamente com a própria linguagem, onde não há sobras – cada frase e cada palavra construindo o mundo kafkiano em sua justa medida).

Essas considerações de Robert autorizam-me a fazer uma leitura do texto em que Kafka, a pessoa física, não "se esconde" atrás do personagem principal de A construção. Em minha leitura, Kafka – não a pessoa física, mas o estilo literário característico do autor – é o personagem principal – e, seguindo o argumento de Robert, é também a própria construção, o ruído e os inimigos externos.

Essa descrição remete-me à teoria da linguagem de Benjamin, que, por sua vez, é coerente com sua teoria da interpretação. Retomarei ambas brevemente, pois me parece importante mostrar como casam bem com a escrita de Kafka. Sobre a linguagem, em primeiro lugar, afirma Rouanet:

Benjamin especula sobre um estado original da linguagem, em que Deus cria as coisas, nomeando-as. Antes da queda, o homem tinha acesso a essa linguagem divina, pela qual as coisas se revelavam através do nome que correspondia à sua essência. O homem continuava a obra da Criação, chamando as coisas pelo seu nome, e com isso atingir (sic) o saber absoluto, que era, precisamente, o saber do nome. A palavra não se destinava à comunicação entre os homens, e sim à revelação da essência do real, num saber totalmente concreto, que dispensava todas as mediações. O pecado original assinala o fim dessa linguagem adamítica, e o começo do verbo propriamente humano. Depois da queda, o homem abandona a linguagem que nomeia, e passa a utilizar uma linguagem meramente comunicativa. A palavra cede lugar à frase, o verbo que penetra as coisas e através do qual elas falam, é substituído pela proposição, graças à qual os homens falam sobre as coisas, atribuindo-lhes, abstratamente, propriedades, através de atos de julgamento. Em vez de conhecer, o homem julga; em vez do saber imediato, instaura-se um saber mediatizado por abstrações proposicionais. (1981, p. 118)

É evidente que Kafka escreve através de frases e não de palavras isoladas, mas gosto de supor que essa narrativa sobre a linguagem criada por Benjamin só pode ter por base linguagens concretas, isto é, a linguagem adamítica de que Benjamin nos dá notícia deve ter sido inspirada em alguma linguagem por ele ouvida, lida, experimentada. A "linguagem adamítica" de Benjamin soa como uma descrição bastante acurada da linguagem de Kafka: em seus textos, a linguagem não é usada para um ou outro fim, para que sentidos sejam comunicados entre os homens. A própria expressão "uso da linguagem" não faz sentido, pois pressupõe uma linguagem externa às coisas que o homem maneja para os fins que lhe aprouverem; em Kafka, porém, a linguagem é a própria coisa – a linguagem habita as coisas, os personagens e cenários, e faz com que falem através dela. É assim que "[...] todas as coisas do mundo e o próprio Kafka são postos à prova ou, se se preferir, uma vez que é de linguagem que se trata, postos em questão e intimados a responder" (Robert, 1963, p. 103).

Mas talvez seja mais exato aproximar a linguagem de Kafka à tarefa dos filósofos, de acordo com Benjamin. Para ele, cabe à filosofia recordar essa dimensão perdida da linguagem. E é justamente de esquecimento/recordação que trata O processo, segundo Benjamin:

Quando outros personagens têm algo que dizer a K., eles o dizem casualmente, como se ele no fundo já soubesse do que se tratava, por mais importante e surpreendente que seja a comunicação. É como se não houvesse nada de novo, como se o herói fosse discretamente convidado a lembrar-se de algo que ele havia esquecido. (1994, p. 156)

O insight de Benjamin sobre o que fazem os personagens com K. – lembrá-lo de algo que ele deveria saber – pode ser transposto, me parece, à linguagem de Kafka como um todo. Em seus textos, Kafka parece querer lembrar a nós, leitores, de coisas que já deveríamos saber – ou, quem sabe, deveríamos parar de fingir que não sabemos. Para ficar em O processo, retomo aqui a passagem em que K. descobre que as dependências do banco onde trabalha são vinculadas ao tribunal, e que ali se torturam prisioneiros. Ora, quem honestamente poderia dizer que nunca viu nada parecido com isso em nosso mundo, e em nossa cidade, em 2014? De fato, Kafka apenas nos faz recordar aquilo que gostaríamos de ter esquecido.

Passemos agora à teoria da interpretação de Benjamin. Afirma Rouanet:

Benjamin compara a obra com um palimpsesto: o texto superficial, que corresponde ao conteúdo objetivo, precisa ser lido em primeiro lugar, antes que se possa iniciar a leitura do segundo texto, recoberto pelo primeiro, e que corresponde ao conteúdo de verdade. [...] a verdade da obra não está nem na superfície, nem numa camada profunda, que anule a superfície. O conteúdo de verdade só pode ser obtido através do conteúdo objetivo. [...] O palimpsesto é a unidade dos dois textos, e não a substituição do texto latente pelo manifesto. (1981, p. 15)

A insistência em que não existe um conteúdo manifesto recobrindo um conteúdo latente que deva ser resgatado é perfeitamente condizente com a teoria da linguagem de Benjamin: a verdade só pode ser acessada através do "conteúdo objetivo" da obra, isto é, o conteúdo é a própria linguagem – a própria forma, portanto. Mais adiante, Rouanet contrasta essa concepção de interpretação – e, particularmente, o modo como Benjamin interpreta os próprios sonhos – com a deutung freudiana:

Se para Freud o caráter caótico da fachada do sonho deveria ser reconduzido à coerência do texto latente, o valor do sonho, para Benjamin, consiste exatamente nesse caos. [...] Seu sentido [do sonho] não está onde Freud o via, e sim naquela camada que precisamente parece escapar a qualquer sentido, que é a do texto manifesto. Através do conteúdo manifesto, o sonho tem o poder de tirar as coisas do lugar. (1981, p. 88)

Aquilo que Freud considera acidental portanto – os restos diurnos que são aproveitados no conteúdo manifesto do sonho – é o que Benjamin considera mais interessante e revelador (e, de fato, mesmo um psicanalista estritamente freudiano não deveria se furtar a perguntar por que tais restos diurnos e não outros foram escolhidos para dar vazão a um determinado desejo inconsciente reprimido). Em suma, o que importa para o presente contexto é ressaltar a importância dada por Benjamin ao conteúdo objetivo do texto, pois é exatamente este o procedimento que adotarei em relação a Kafka: farei uma leitura próxima de algumas passagens de A construção, visando acercar-me da psicologia do personagem principal.

Se o texto de Kafka não pede para ser interpretado como sonho, nos moldes freudianos (e certamente não como sonho ou sintoma do autor), é fato que foi lido em diferentes registros ao longo do tempo, tendo permanecido vivo e influente por obra de diferentes comunidades de leitores:

Da mesma forma que Kafka parece ter previsto os acontecimentos com uma precisão surpreendente, assim também dava a impressão de ter percebido, confirmado ou antecipado tudo o que o pensamento moderno armazenou como saber. Existencialismo, psicanálise, marxismo, sociologia, teologia, foram as disciplinas exteriores à leitura que o interrogaram com mais paixão [...]. Ao multiplicarem-se, no entanto, os diferentes sistemas de interpretação fizeram-no exprimir tantas coisas contraditórias que se começou a duvidar se, com toda essa ciência, não se teria perdido Kafka ao longo do caminho, para grande prejuízo de sua obra. (Robert, 1963, p. 56)

O texto de Kafka, que tanto teve a dizer a diferentes leitores em diferentes épocas, continua nos dizendo respeito. De fato, não podemos dizer que fomos capazes de construir uma sociedade pós-kafkiana. O texto continua nos provocando, nos afligindo e nos interpelando. Assim, ao contrário do que afirma Robert, não são necessariamente excludentes as leituras sociológica, teológica, psicanalítica ou mesmo "profética" (do nazismo que estava por vir). Só o fato de todas elas serem viáveis – isto é, encontrarem apoio e sustentação no texto – aponta, antes de tudo, para a polissemia e para a plasticidade do texto; o fato de essas leituras eventualmente entrarem em contradição umas com as outras não indica que haja sistemas interpretativos inerentemente superiores e inferiores. É preciso analisar caso a caso, considerando como cada crítico e cada comentador articula suas observações com o texto de Kafka – e é perfeitamente possível que se tirem conclusões opostas a partir de uma mesma passagem.

O registro de escolha para este trabalho é o psicológico, pois desejo me aproximar e considerar detidamente um traço da psicologia do personagem principal. Vejo-o melancólico, mas de uma melancolia estranha – com traços tanto da melancolia descrita por Freud, em seu texto clássico "Luto e Melancolia" (1917/2006), quanto da melancolia segundo Benjamin. Parece-me uma melancolia híbrida, mas que, além de híbrida, não se esgota ou se resume em nenhum desses dois modelos.

***

A melancolia certamente não é o conceito psicanalítico que mais imediatamente poderíamos associar ao texto A construção. A característica do personagem principal que salta à vista, em um primeiro momento, é o medo. O medo dá o tom de toda a narrativa, tanto na primeira parte, quando o narrador-personagem teme um eventual invasor, quanto na segunda, quando aparece o ruído indicativo da chegada do invasor desconhecido, que o narrador-personagem nem mesmo sabe se é um ou se são vários. Mas não é apenas de medo que se trata; junto dele, há o desconhecimento sobre o que está por vir, e o impulso aparentemente inesgotável de compreender tudo a respeito do invasor ou invasores: de onde vem, como adentrou a construção, como é, o que pretende etc. Voltaremos a esse impulso mais adiante, pois ele é exacerbado na segunda parte da narrativa, isto é, após a irrupção do ruído.

Abro aqui um breve parêntese para mencionar a curiosa temporalidade de A construção. No parágrafo anterior, falamos sobre primeira e segunda parte da narrativa, divididas pela irrupção do ruído. De fato, esta é a grande marca temporal do texto: o ruído instala um "antes" e um "depois" – antes dele, o personagem vivia em um tempo eterno e indiferenciado. Passado e presente formavam um continuum perpétuo: entre eles havia apenas continuidade, nenhuma ruptura, até a irrupção do ruído. Veja-se, por exemplo, esta passagem: "Outrora, quando iniciei a construção [...]" (Kafka, 1998, p. 72) – tudo é bastante vago. Outrora quando? O passado mencionado na primeira parte do texto é de todo idêntico ao presente. E, quando o tempo permanece sempre idêntico a si mesmo, torna-se infinito: "[...] tenho um tempo infinito – dentro da construção o tempo, para mim, é sempre infindável" (Kafka, 1998, p. 86).

Volto agora ao medo do narrador-personagem, marcante principalmente na primeira parte da narrativa. Isso porque o medo é sempre indicativo de uma ausência: só se pode temer aquilo que ainda não é, que não se materializou. Na segunda parte, o medo dá lugar a outra coisa, já que aquilo que era temido, enfim, se concretizou: o invasor de fato se fez presente (ainda que apenas por meio de seu som). O medo do narrador-personagem é tanto dos inimigos externos quanto internos ("seres do interior da terra" – Kafka, 1998, p. 65) – e não consegui decidir, mesmo após várias leituras, se ele poderia ser caracterizado como uma paranoia. Essa indecisão, aliás, me parece efeito do texto, e não (apenas) de uma idiossincrasia minha enquanto leitora: como o personagem está sozinho ao longo de toda a narrativa, proferindo um monólogo ininterrupto, não é possível contrastar sua visão de mundo com a de outros personagens; o mundo (a construção) e a personagem estão imbricados a ponto de constituírem uma única e mesma realidade. Pois não é de simples solidão que se trata: Joseph K., por exemplo, também é um solitário, mas certamente é um humano inserido em uma comunidade de humanos. Mas o personagem de A construção não se insere em comunidade alguma; não sabemos nem mesmo que tipo de animal ele é. E não só isso: o personagem não menciona outros seres como ele, exceto pela seguinte passagem, em que discorre sobre os possíveis invasores da construção:

[...] talvez seja, o que não é menos ruim – em mais de um sentido, é o pior de tudo – talvez seja alguém da minha espécie, um conhecedor e apreciador de construções, algum irmão da floresta, um amante da paz, não obstante um vagabundo brutal que quer morar sem construir. (Kafka, 1998, pp. 78-79)

Isto é: o semelhante, quando aparece (ainda que como hipótese), é "o pior de tudo", é um aproveitador e um parasita não menos inimigo (pois há a intenção não menos forte de destruir o personagem) do que um ser de outra espécie. Não há para o personagem, portanto, qualquer possibilidade de convívio fraternal com outros entes. Há apenas o medo, a ameaça, o perigo iminente. O mundo divide-se em inimigos ou presas em potencial: só há espaço para o diferente, não para o semelhante. Falta ao personagem o contato com outros semelhantes; falta-lhe o "tesouro" compartilhado por aqueles que lutaram na Resistência francesa, conforme nos conta Arendt no prefácio de Entre o passado e o futuro: "eles haviam sido, pela primeira vez em suas vidas, visitados por uma visão da liberdade [...] por haverem [...] começado a criar entre si um espaço público onde a liberdade poderia aparecer" (Arendt, 2011, p. 30 – grifo meu). Este tesouro – a experiência de criar e compartilhar um espaço público onde a liberdade pode aparecer – é precisamente o avesso do que ocorre com o personagem principal de A construção.

É justamente a solidão – ou antes, esse isolamento – do personagem que me remete à melancolia. Gosto de pensá-la a partir da leitura que Thomas Ogden faz de Freud: este psicanalista enfatiza a dinâmica objetal do trabalho do luto (consequentemente, da melancolia também). Em "Luto e Melancolia", a ênfase recai sobre a retirada da libido do objeto perdido e seu reinvestimento em novos objetos (no trabalho do luto). O que Ogden aponta é que, concomitantemente a esse desligamento e religamento da libido, o luto envolve também a introjeção do objeto perdido no mundo psíquico do enlutado, juntamente com a reinstalação do objeto bom. O mundo objetal do melancólico, por sua vez, está paralisado e petrificado: não faz trocas com o mundo externo; não há introjeção de novos objetos, nem reinstalação do objeto bom: "[...] o melancólico aprisionado em si mesmo [...] sobrevive em um mundo objetal interno atemporal e imortal (e, não obstante, morto e mortificador)" (Ogden, 2005, p. 43).

Já mencionamos a atemporalidade que vive o narrador-personagem de A construção; parece-me que, além disso, ele de fato vive aprisionado em si mesmo: "Mas ninguém chega e eu fico reduzido a mim mesmo" (Kafka, 1998, p. 79). Ou, então, o que na prática dá no mesmo, vive aprisionado em sua construção, pois há nele uma forte indiferenciação entre mundo interno e mundo externo: "[...] vigio a entrada da minha casa [...]. É como se não estivesse diante da minha casa, mas de mim mesmo dormindo [...]" (Kafka, 1998, p. 75).

Mas a melancolia que vejo no narrador-personagem não é apenas tipicamente freudiana (ou freudiana segundo a leitura de Ogden). Outros elementos do texto me remetem à melancolia segundo Benjamin – particularmente, o modo como se relaciona com a construção. Como vimos, essa relação é, até certo ponto, de indiferenciação ("pertencemos um ao outro [...] nada pode nos separar por muito tempo" – Kafka, 1998, pp. 83-84). Mas, além disso, o narrador-personagem relaciona-se com as várias seções e passagens da construção de forma que me parece análoga ao colecionador com seus objetos:

Por sua causa, ó corredores e recintos, e sobretudo por suas perguntas, ó praça do castelo, eu vim, não dei nada pela minha vida, depois que, durante tanto tempo, tive a estupidez de tremer por causa dela e retardar o regresso a vocês. Que me importa o perigo, agora que estou com vocês! Vocês me pertencem, eu lhes pertenço, estamos ligados, o que pode nos acontecer? (Kafka, 1998, p. 86)

Não importa o perigo, não importa o eu: importam as coisas e a ligação do narrador-personagem com elas:

[O melancólico, segundo Benjamin] trai o mundo, por causa dos objetos. [...] Por amor ao objeto, o melancólico o salva, alegorizando-o. Mas nessa alegorização, ele se esvazia de sua vida própria, e passa a subsistir unicamente como suporte de significações. (Rouanet, 1981, p. 40)

Mas se o narrador-personagem alegoriza a construção e suas múltiplas subdivisões, é para conhecê-las: "Se [o melancólico] mergulha no objeto e se perde nele, é para compreendê-lo, e através dele compreender o mundo. [...] Sua lealdade para com as coisas é de fato tributária da vontade de saber: 'a melancolia trai o mundo por causa do saber'" (Rouanet, 1981, p. 42).

Com efeito, é de conhecimento que se trata: a partir do momento em que inicia o ruído, o narrador-personagem lança-se em um esforço mental (em suas ruminações incessantes) e corporal (buscando o foco de onde provém o ruído) para conhecer exatamente o que se passou, quem é o invasor, como pôde penetrar na construção etc. Resumo aqui as sucessivas etapas desta busca pela qual passa o narrador-personagem:

De início, ele afirma ter plena certeza do que se trata: o ruído é fruto da escavação de um novo caminho por múltiplas criaturinhas subterrâneas. O ruído vai ficando cada vez mais nítido. Enquanto isso, o narrador-personagem tenta se convencer de que as criaturinhas não estão contra ele. Então, começam as autorrecriminações: culpa-se por não ter protegido melhor sua edificação enquanto ainda era jovem. Depois, levanta a hipótese de que não se trata de várias criaturinhas, mas de um animal desconhecido. Confuso, imagina que o invasor pode ser um único animal ou um conjunto de animais maiores que as criaturinhas. Por um momento, pensa que o ruído cessou. Depois, percebe que isso foi uma tentativa de autoengano e que o ruído permanece inabalável, talvez esteja até mais forte. Voltam as autorrecriminações: agora é necessário um trabalho (para descobrir o invasor) para o qual o narrador-personagem já não tem mais capacidade ou disposição. Pensa em desistir de procurar e se entregar ao torpor. Retoma a hipótese de um único e grande animal. A narrativa termina com a frase "Mas tudo continuou inalterado" (Kafka, 1998, p. 108).

Esta busca pelo conhecimento da verdade é algo que caracteriza o próprio Kafka, segundo Robert: "[Kafka] exalta-se sobre-tudo pela descoberta da mais alta justificação da sua arte, que não é a beleza, mas a verdade. [...] a verdade torna-se o único critério pelo qual Kafka mede o valor dos seus escritos" (Robert, 1963, pp. 73-74). Essa passagem é biográfica, isto é, fala do critério pelo qual o autor julga seus próprios textos – não fala de nada intrínseco aos textos em si. Mas parece que a busca da verdade é justamente o que move o personagem de A construção; mais do que sua própria segurança, ele parece estar em busca da verdade do que está acontecendo, precisa saber qual é a causa, a origem do ruído – e por isso se recrimina, por isso traça várias hipóteses. Trata-se de um estado de espírito obstinado de quem procura a verdade ao mesmo tempo em que intui que esta é inalcançável. A frase em que o texto termina ("Mas tudo continuou inalterado" – Kafka, 1998, p. 108) é indicativa não apenas de que o ruído permaneceu como antes, mas também de que o conhecimento que o personagem possui acerca dele não se alterou.

É justamente esta busca, este movimento em busca da verdade, que me parece a diferença essencial nas concepções de melancolia de Freud e Benjamin. Para Freud, a melancolia é um destino pulsional patológico – aliás, trata-se precisamente de um bloqueio pulsional, pois na melancolia a pulsão encontra-se "fixada" no objeto perdido, da qual não pode se desligar para se religar a outros objetos. Mas em Benjamin, se a fixação no objeto perdido também é central na melancolia, isso não afasta o melancólico do mundo: pelo contrário, a melancolia é o "modo de conhecimento" do melancólico – ele se fixa no objeto para, através dele, conhecer o mundo. Isso fica patente no narrador-personagem de A construção: se, por um lado, ele se encontra aprisionado em si mesmo, sem estabelecer relações com outros semelhantes, isso não significa que esteja paralisado, imobilizado, como a leitura de "Luto e Melancolia" poderia nos fazer crer. Nesse sentido, portanto, a melancolia de Kafka aproxima-se mais de Benjamin: assim como este, Kafka também reconhece a força criativa do spleen (o narrador-personagem, afinal, criou o discurso a que temos acesso).

Criatividade é tudo o que Freud não reconhece no melancólico: como aponta Kehl (2010, p. 2), "[...] ao trazer para o campo da psicanálise, sob o nome de melancolia, a explicação desta forma alternada de depressão e mania, Freud apartou-se da longa tradição de pensamento que articulava o melancólico à cultura e à criação artística". Kehl (2010) explica que, na tradição Ocidental, o melancólico "era considerado como um ser de exceção, sujeito à alternância entre momentos de inspiração poética e ataques de fúria ou de inapetência para a vida" (grifo do original). Além disso, a autora assinala que Benjamin "[...] teria sido o último dos pensadores modernos a tomar a palavra melancolia no sentido pré-freudiano" (Kehl, 2010, p. 2).

Por outro lado, o narrador-personagem apresenta autorrecriminações típicas do "melancólico freudiano", dando conta de ser alguém que não cumpriu com seus deveres quando, logo no início do texto, afirma que sua construção jamais poderia estar completamente protegida. Isto é, trata-se de recriminações que não fazem sentido do ponto de vista do observador externo, do leitor; para este, a construção foi invadida não por obra de seu habitante (isto equivaleria a culpar a vítima), mas pela ação do invasor. É preciso, porém, ver a autorrecriminação melancólica como um sentimento deslocado: Freud assinala que as autorrecriminações do melancólico são, de fato, "recriminações dirigidas a um objeto amado, as quais foram retiradas desse objeto e desviadas para o próprio Eu" (Freud, 1917/2006, p. 107).

Agora sim tudo começa a fazer sentido: as recriminações do narrador-personagem dirigem-se, na verdade, à construção (é ela que deveria ter sido totalmente segura e infalível); a recriminação volta-se para o ego na medida em que ambos, personagem e construção, estão confundidos e indiferenciados.

***

Mas existe algo na narrativa de Kafka que escapa a qualquer teoria com que a tentemos relacionar, e este algo é justamente a linguagem. Ela é assim caracterizada por Haroldo de Campos:

A esta deliberada instituição de uma dicção afetada pelo que se poderia chamar de voluntária "deformação profissional" [...] em princípio de estilo, corresponde, no plano do idioma, o especial alemão de K. [...] A "linguagem de papel" é transformada por ele em realidade primeira e com ela ele confronta – mensura – a realidade exterior [...]. (Campos, 1997, pp. 133-134)

A chamada "linguagem de papel" de Kafka, cartorial e elegante, é o habitat primeiro de seus personagens – a construção a que alude o título é, de fato, a própria linguagem. Nessa mesma linha, a melancolia do narrador-personagem é a melancolia de quem sabe que o encaixe entre linguagem e mundo – linguagem de papel e realidade empírica –, longe de ser perfeito, é apenas uma construção.

Se a melancolia para Freud é um fenômeno patológico e se, para Benjamin, além de fenômeno psicológico, a melancolia é também uma ferramenta epistemológica (pois constitui um modo de conhecer o mundo), com Kafka podemos ir além. Neste autor, a melancolia assume contornos ontológicos, pois a perda da (e o aferramento melancólico à) linguagem aparece como sendo próprio ao humano.

Benjamin, em "O narrador" (1936/1994), refere-se não à morte da linguagem lato sensu, mas à morte – ou perda iminente – da narrativa, que para o autor constitui-se como a arte de intercambiar a experiência vivida. "As ações da experiência estão em baixa [...]. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca" (Benjamin, p. 198, 1936/1994). Que melhor modo de comunicar a desvalorização da experiência do que a comparando a uma ação negociada na Bolsa – um reles papel cujo valor é aumentado ou diminuído segundo os humores do Mercado?

À narrativa contrapõe-se a informação, cujo valor reside tão-somente em seu ineditismo:

A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. (Benjamin, 1936/1994, p. 204)

O declínio da narrativa é inversamente proporcional, assim, ao ascenso da informação. Isso é especialmente condizente com o momento histórico em que escreve Benjamin: na guerra, os corpos perdidos na batalha de ontem já são notícia velha que não importa mais; há que deixá-los para trás para que se possa contar os corpos de hoje, e assim sucessivamente.

Mas se Benjamin trata especificamente da perda de uma modalidade da linguagem – aquela que transmite "a experiência que passa de pessoa a pessoa" (Benjamin, 1936/1994, p. 198) –, podemos compreender a construção do conto de Kafka como sendo linguagem em sentido mais amplo. E a linguagem – a palavra, como diz Eliane Brum (Informação verbal, 2014) – "não pode salvar. [...] as palavras serão sempre insuficientes para dar conta da vida". A construção/linguagem é incapaz de proteger contra todos os perigos, enfim.

Para concluir, gostaria de propor um breve quadro esquemático do que seria a melancolia para estes três autores – Freud, Benjamin e Kafka –, a partir do modelo freudiano do objeto perdido.

Para Freud (1917/2006), o objeto perdido da melancolia é um objeto com o qual o sujeito mantinha uma relação de tipo narcísico. Para Benjamin (1936/1994), podemos inferir que o objeto perdido da melancolia é a narrativa, isto é, a capacidade de intercâmbio de experiências entre os seres humanos. Para Kafka, por fim, podemos dizer, a partir da leitura de A construção, que o objeto cuja perda é sentida melancolicamente é a própria linguagem.

 

Referências

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Brum, E. (2014). Festa Literária de Paraty [Depoimento de Eliane Brum]. Julho de 2014.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
CAMILA LOUSANA PAVANELLI DE LORENZI
Rua Agente Gomes, 315/12
02040-090 – São Paulo – SP
tel.: 11 3088 9606
E-mail: ferrazfc@uol.com.br

Recebido: 09.11.2014
Aceito: 05.12.2014

 

 

* Mestre em teoria psicanalítica pelo IP-USP. Doutoranda, estuda os conceitos psicanalíticos de sublimação e realidade a partir da série televisiva "The Wire" (EUA, 2002-2008).