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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo Feb. 2015

 

EM PAUTA - MORTE DA PALAVRA?

 

Os ideogramas de francesco

 

The ideograms of Francesco

 

 

Ricardo Trapé Trinca*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os ideogramas são pensados a partir do espanto de um paciente e de sua pergunta: "você é uma mulher ou uma flor?". Percorrendo os diversos sentidos que essa pergunta parece suscitar a nós, leitores, discuto o processo de ideogramatização das impressões sensoriais e a formação dos ideogramas, considerando especialmente significativo o aspecto evocativo presente na sua composição.

Palavras-chave: Ideogramas, Psicanálise, Ideias, Sonho, Palavra.


ABSTRACT

Ideograms are thought to from the astonishment of a patient and his question: "you're a woman or a flower?". Traversing the various senses that this question seems to raise us, readers, I discuss the process of ideogramatization of sensory impressions and the formation of the ideograms, considering especially significant the evocative aspect present in its composition.

Keywords: Ideograms, Psychoanalysis, Idea, Dream, Word.


 

 

Um conflito estético

No trabalho A apreensão do Belo (Meltzer & Willians, 1995), lemos sobre como foi confirmada a suspeita dos autores de que conflitos estéticos estariam na base do processo de desenvolvimento. Conta-nos que essa confirmação ocorreu ao lerem o relato de Diomira Petrelli sobre seu trabalho com crianças autistas. Nesse relato, a autora conta que um menino, Francesco, seu paciente, ao entrar na sala para sua sessão, ficou atônito em frente a ela e murmurou: "Você é uma mulher ou uma flor?". Esse murmuro, que pode emocionar profundamente quem se arrisca a ler tal relato, poderia bem exprimir, segundo o autor, "[...] um lampejo da reação do recém nascido quando pela primeira vez ele se deparasse com sua mãe e o seio de sua mãe" (Meltzer & Willians, 1995, p. 17). Um momento que, de nosso ponto de vista, expressa o conflito que ocorre quando ele olha para ela e tem, nesse olhar, uma experiência perturbadora. Desse modo, podemos entender que essa pergunta de Francesco pode ser inicialmente pensada, por nós, como um problema estético, de apreensão do objeto, mas também da ideogramatização e da conjunção de ideogramas. O objeto que Francesco pretende formular não pode ser formulado, no entanto, senão inicialmente por meio da pergunta que ele faz e que traz justamente um paradoxo: a analista (Diomira), a mulher e a flor, talvez não possa ser uma só. E é dessa impossibilidade de unidade entre esses elementos que Francesco pergunta.

 

Ideogramas compostos

Quando estudamos um pouco sobre os ideogramas, logo descobrimos que os ideogramas são formas, desenhos ou sinais, que apresentam ideias, números, sons (na forma de sufixos e prefixos) ou coisas do cotidiano, como utensílios ou objetos. Eles podem ser considerados unidades vivas, espécies de formas ou de imagens que expressariam movimentos ou ações relacionais. Um ideograma pode significar um verbo, um advérbio, um adjetivo ou um substantivo, de acordo com sua ordem na sentença (Chu, 1977). Podemos dizer, como Cheng (2011), que "[...] os sinais ideográficos visam menos copiar o aspecto exterior das coisas do que figurá-los por traços essenciais, cujas combinações revelariam sua essência, assim como os vínculos secretos que as unem" (2011, p. 31). Nos ideogramas kanji1, por exemplo, existem os ideogramas pictográficos, que assinalam por meio de desenhos os objetos ou as coisas do cotidiano, tais como o Sol, as árvores, a Lua etc., os ideogramas ideográficos, que apresentam certas abstrações, como números ou sentimentos, e os ideogramas complexos, que misturam radicais para a obtenção de uma nova ideia ou uma mistura entre um som ou uma pronúncia e uma ideia ou um sentido. Entre os deste último tipo, temos, por exemplo, o ideograma homem. Homem2 é apresentado por 男. Esse ideograma é constituído por dois radicais (ou ideogramas): 力 e 田. 力 é um ideograma que, por sua vez, apresenta a ideia de "força", "esforço", "vigor", "concentração"; já 田 apresenta-se como a imagem de "campos de arroz", de uma "plantação de arroz". Observamos que um ideograma repousa sobre o outro, de modo que "força" sustenta os "campos de arroz". Este ideograma parece comunicar certas ideias, como a de que o homem é a força que sustenta os campos de arroz por meio de seu esforço, ideia associada ao trabalho, ao cultivo da terra etc. E, sendo assim, podemos ter uma referência do que é 男.Trata-se também de um fonograma, de uma ideia que é expressa por um som, o que cria dificuldades sonoras peculiares para línguas que, como a chinesa, são monossilábicas e há uma quantidade diminuída de sílabas em comparação com outras línguas (Chu, 1977). O ideograma "homem" não é um nome formulado por uma linguagem alfabética, apenas uma palavra, é uma imagem que evoca um som e uma ideia, em uma indicação do que é homem, mas como uma ideia que, se não é a resposta para a pergunta sobre o que é o homem (e que buscaria uma definição de sua substância ou essência), expressa uma tensão entre seu nome (homem) e seus radicais (força e campos de arroz), orientando seu nome por meio desses radicais e pela relação dos radicais com seu nome. Observarmos como, nessas condições, é possível associar e desenvolver um pensamento por meio dessa composição, desse ideograma composto, como a matriz de um pensamento que orienta uma narrativa ou uma cena por meio de palavras faladas ou por uma transcriação/tradução, por meio de palavras compostas pelo alfabeto. A ideia oferecida pelo ideograma não é simplesmente a representação de "homem", mas de algo que está colocado para além de sua apresentação pictórica e sonora e que é orientado por seus radicais, suscitando-nos o caminho de um pensamento não desenvolvido, ou seja, que vai além da ideia de seus radicais e da ideia apresentada de homem; ou melhor, que pertence à própria ideia de homem como seu aspecto inefável. Quando pensamos, por exemplo, que "homem é a força que cultiva os campos de arroz", não conseguimos, assim, esgotar nosso pensamento sobre o homem nessa expressão concreta, mas podemos tomar isso como uma metáfora que fala de nossa natureza. Podemos pensar nessa relação de interação entre os ideogramas, tal como nos mostra Cheng (2011), do mesmo modo como pensamos nos seus radicais, que são, por sua vez, também ideogramas:

[...] cada ideograma é monossilábico e invariável, o que lhe confere autonomia e, ao mesmo tempo, uma grande mobilidade quanto à possibilidade de se combinar com outros ideogramas [...]. A personalidade de cada um e a sua interação transformam o poema num ato ritual (ou numa cena), em que gestos e símbolos provocam "sentidos" sempre renovados. (p. 32)

Podemos citar também, a título de exemplo, mas que vale também como uma demonstração do poder evocativo do universo dos ideogramas, o ideograma 浮. Este ideograma, tal como demonstra Campos (1977), revela a presença, ao seu lado direito, do ideograma criança, que estaria colocado abaixo das patas de um pássaro. Essas patas de um pássaro sobre a criança revelariam o "ato de proteger um filhote" (1977, p. 55), ou a expressão de "confiança". Olhando atentamente essa imagem, observamos que o filhote estaria logo abaixo das patas do pássaro, que permaneceria pairando acima dele. Ao lado esquerdo e combinado a ele, há outro radical, que é o radical pictográfico de água. A conjunção de "água" com o "pairar do pássaro sobre a criança", ou com a "confiança", forma uma imagem, que é esse ideograma, o ideograma de "flutuante". Para que possamos, no entanto, apreender o ideograma "flutuante", é necessário que combinemos todas essas imagens em nossa mente, fazendo delas uma cena ou um quadro em que elas se articulem e se relacionem: parece um convite à nossa própria "atenção flutuante", que se vê convidada a se relacionar com a "confiança". Podemos afirmar ainda que o aspecto relacional das ideias ideogramatizadas está no cerne da linguagem e do pensamento chinês (Chu, 1977).

A importância dada pelo pensamento chinês clássico à arte da escrita como apresentação ideogramática do pensamento, revela-se no alto valor dado à caligrafia. Isso se deve especialmente ao fato de que, se o escritor não desenhasse bem o seu ideograma, a sugestão da imagem não se transmitiria (Fenollosa, 1977, p. 153). Assim, se o escritor desconhecesse o significado dos radicais de determinado ideograma composto, transpareceria sua ignorância em todo sinal de tinta e, em decorrência, a sugestão da imagem composta pela articulação entre os radicais não seria evocada.

 

Ideogramatização

Em diversos trabalhos, Bion utiliza-se dos termos ideograma e ideogramatização. De modo geral, sua utilização ocorre quando o autor procura expressar como uma impressão sensorial tornou-se uma forma e, por meio dela, foi realizada uma comunicação verbal (Bion, 1957/1994). Essa formalização da impressão sensorial é o nome dado para o trabalho de ideogramatização. A forma, tal como é comunicada pelo paciente, Bion designa por ideograma. Em Cogitações (1967/2000) encontramos esse mesmo uso dos termos e, ao discutir sobre a importância do trabalho onírico α, ele diz que:

Em diversos trabalhos, Bion utiliza-se dos termos ideograma e ideogramatização. De modo geral, sua utilização ocorre quando o autor procura expressar como uma impressão sensorial tornou-se uma forma e, por meio dela, foi realizada uma comunicação verbal (Bion, 1957/1994). Essa formalização da impressão sensorial é o nome dado para o trabalho de ideogramatização. A forma, tal como é comunicada pelo paciente, Bion designa por ideograma. Em Cogitações (1967/2000) encontramos esse mesmo uso dos termos e, ao discutir sobre a importância do trabalho onírico α, ele diz que:

A impressão precisa ser ideogramatizada. Quer dizer, caso a experiência seja uma experiência de dor, a psique deve ter uma imagem visual do esfregar de um cotovelo, ou de uma face em lágrimas, ou de algo assim [...]. Se o princípio de realidade estiver dominando, o objetivo do ideograma será tornar a experiência adequada para armazenamento e recordação. (Bion, 2000, p. 78)

No sentido proposto por Bion, podemos compreender que as impressões devem ser transformadas por α para que elas possam primeiramente ser utilizadas como algo a partir do qual seja possível ocorrer associações; e, para isso, é necessário que as impressões tenham se tornado duráveis e sejam passíveis de armazenamento, ou seja, de recordação e de ligação com outras ideias. A transformação por α faz dela, de um fato β indigesto, para um fato emocional ou para um fato "sonhado"; ou seja, transformado em imagem, afeto e som. Essa transformação da impressão em um fato emocional "sonhado" é o que Bion chama de ideogramatização. Essa atividade não deixa de poder ser também compreendida como uma espécie de gramática em forma de imagens visuais passíveis de se relacionar.

Há, nesse sentido proposto por Bion, uma ênfase na importância da atividade do trabalho onírico e, assim, a pergunta de Francesco parece ser uma pergunta em que, diante do assombro da impressão sensorial, do impacto de "O"3, o trabalho onírico transforma o fato da impressão justamente em uma pergunta – e, poeticamente, em dois radicais: mulher e flor.

 

União, somatória (sexualizada) e unidade

A formação dos ideogramas apresenta, em sua união com outros ideogramas, ideias que nascem da somatória. Essa somatória poderia ser descrita como uma conjunção ou como uma montagem, tal como faz Eisenstein (1929/1977), ao utilizar essa terminologia para a interessante comparação com o método cinematográfico. Os ideogramas, como imagens em ação, expressam, por sua própria natureza, uma ideia sucessiva, dinâmica. Eisenstein não somente notou e explicitou isto, como demonstrou haver nessa sucessão os princípios cinematográficos do cinema "intelectual", um cinema em que, no seu processo de montagem, as tomadas, de significados singelo e neutro, pintariam conceitos abstratos, seus decorrentes. Para Eisenstein, esse princípio de montagem seria análogo ao da escrita ideogramática. Mas o conceito, assim, não seria a criação de uma terceira unidade. Suzuki (1995), por exemplo, consideraria que tanto Eisenstein como Fenollosa pensariam que "[...] o ideograma chinês resulta da combinação das ideias contidas nos caracteres que o compõe, não em uma simples soma, mas num produto que cria um terceiro nível de valor" (Suzuki, 1995, p. 84), como um poema ou uma cena.

A ideia oriunda dessa somatória não pode ser considerada exatamente um terceiro elemento, mas como a presença da alteridade decorrente dessa união4. Essa alteridade não se revela como a alteridade de um conceito. Ela é imagética e evocativa e, assim, apresenta-se como uma alteridade em parte incompreensível e que poderia ser compreendida também como "aquilo que não se deixa nunca ver nem alcançar" (Blanchot, 2007, p. 197). Apenas permaneceria assim, como algo "fora de alcance", um "ponto ausente", quando se encontra presente na presença ou de uma conversação, ou de uma narrativa ou entre ideias. O terceiro nível de valor revelaria exatamente isto. A ideia que surge pela somatória é, simultaneamente, um ideograma que apresenta um nome, mas um nome que advém da tensão existente entre ele e seus radicais. Nessa tensão, o nome não tem uma explicação definitiva e produz somente associações. Bion (1967/2000) diz que "[...] o ideograma evoca associação livre, o alfabeto não" (p. 361). O ideograma é evocativo per si, por seu aspecto imagético e por sua relação com os seus radicais e evoca principalmente uma associação entre suas formas; e as letras ou o conjunto das letras de um sistema de escrita, dispostas em ordem convencionalmente estabelecida, tenderiam a manter uma unidade simbólica5.

Podemos ainda conjecturar que o ideograma situa-se neste lugar entre a impressão e a palavra, como um elo, na forma de um umbigo, mas que, ao mesmo tempo em que se propaga em uma continuidade, também implica em uma ruptura, como a cesura (Bion, 1981).

Fenollosa (1936/1977), quando fala do papel dos radicais na formação dos ideogramas, afirma justamente que, "[...] nesse processo de compor, duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre ambas" (p. 124). E ainda diz que "as coisas [ou os ideogramas] são apenas pontos terminais, ou melhor, pontos de encontro entre ações, cortes transversais em ações, instantâneos" (p. 124). O terceiro elemento, como o nome e a combinação dos radicais, não seria uma unidade, porque os radicais não poderiam simplesmente deixar de existir. Fenollosa (1936/1977), desse modo, expressa a importância da compreensão da relação entre os radicais para a compreensão de um ideograma e, assim, enfatiza a reunião e a relação entre eles. Yu-Kuang Chu, em seu trabalho Interação entre linguagem e pensamento em chinês (1977), destaca que a construção dos caracteres ideogramáticos chineses seria baseada em quatro princípios. O terceiro deles (que nesse momento nos interessa) é por ele denominado de sugestão. Ele consiste em colocar juntos dois caracteres para que, por meio deles, seja formada uma terceira ideia, que surgiria justamente pela aproximação dos outros dois; criaria, com isso, por meio de sua linguagem, um modo de se pensar que expressaria uma acentuada tendência a relacionar e sugerir relações.

A união decorrente da somatória dos ideogramas não parece, portanto, produzir nada além do ato de reunir, nada além de sugerir a direção para a qual o pensamento se dirigirá com esse ato, mas essa reunião é, no entanto, tudo. Essa "tentativa" de união, de uma união fecunda – por isso sexualizada –, não é a criação de uma unidade autônoma e sintética, mas a orientação de um pensamento, que passa a ser dirigido em determinada direção, do mesmo modo como Maurice Blanchot (2011) tão alusivamente expressou nesta passagem:

O que nos fala, aqui, alcança-nos pela extrema tensão da linguagem, por sua concentração, pela necessidade de manter, de levar um na direção do outro, numa união que não cria uma unidade, palavras doravante associadas, unidas por outra coisa que não o seu sentido, apenas orientadas na direção de [...]. (2011, p. 75)

A somatória do ideograma cria o que não se deixa nunca ser alcançado, mas que, paradoxalmente, nos alcança, de algum modo, pelo pensar, para que possamos formular uma tentativa de corresponder ao seu apelo por ser pensado, por nosso pensar. A união dos ideogramas parece sugerir, no clamor desse apelo, uma correspondência, pelo pensar, a essa somatória, a esse a mais, mas também a esse apelo por uma união. Um apelo não pela consumação da união em uma unidade, mas pela necessidade de respeito pelos seus radicais, que se tensionam na direção um do outro e que não podem ser eliminados. Radicais que, quando associados, caminham não em busca de uma síntese, de uma unidade de fato, mas em busca da frágil união que o pensamento pode formular pela tolerância daquele que pensa. Como no ideograma 男, observamos que os radicais em tensão e unidos como forma produzem uma imagem, um som e um pensar.

O problema da tensão entre os ideogramas pode ser observado nesse fragmento de Paul Celan (2011, citado por Blanchot), que nos mostra como as palavras podem estar isoladas e, ao mesmo tempo, tensionadas na direção de uma união com as outras, sem encontrarem, no entanto, uma unidade entre si:

de novo encontros com palavras isoladas como: pedreira, capim-farpado, tempo. (p. 74)

Permanecemos, assim, diante dessas palavras, sem que possamos criar realmente uma unidade. Ao tensioná-las na direção de uma união, somos levados a criar ou novas palavras, ou um cenário para elas, ou permanecer nelas e em débito. Com isso acreditamos que, diante delas, permanecemos em débito por nossa incapacidade de pensá-las inteiramente. Certamente podemos oferecer um sentido para que as palavras isoladas obtenham uma unificação e uma unidade. Mas isso apenas seria um modo de obter uma pausa na tensão geradora do processo de se pensar. Nosso pensar permanece constrangido pela percepção de que, para aquilo que se procura corresponder, pode não haver uma reciprocidade adequada, inteira, completa. Quantas frases, quantas imagens distintas e repletas de sentido não poderiam ser produzidas com essas palavras de Celan! A reciprocidade adequada do pensar com o pensamento relaciona-se com o respeito pela inevitável restrição que se impõe a nós a preservação da tensão que os radicais impõe-nos em sua união e pela inevitável evocação de um pensamento. Esse respeito faz conservar o espaço existente entre as palavras e os sentidos possíveis que podem ser criados. Esse respeito faz com que possamos conservar sempre a tensão presente nas palavras como o seu aspecto gerador de sentido e de designação de algo que se encontra para além das palavras e do sentido.

Não seria um equívoco afirmar que há uma amarga restrição do apelo que a união dos ideogramas nos impõe, mas o respeito por essa restrição nos direciona para aquilo que é possível dizer, quando sentimos a impossibilidade do impossível do pensar. E, assim, estamos sempre, de algum modo, sentindo o amargor dessa restrição; da restrição do impossível, do Real6. Por mais que queiramos, há o que não cessa de não poder ser pensado, pois perdura um "ponto ausente". A impossibilidade do impossível é, em outras palavras, a impossibilidade de pensar o Real, que se apresenta na tensão das palavras, como uma alteridade sempre desconhecida e nunca alcançada. Os ideogramas, nesse sentido, podem ser considerados apresentações icônicas que conduzem o nosso pensar tanto em direção ao desenvolvimento daquilo que ainda não foi formulado por alguém, como uma abertura para o que não pode, como possibilidade, ser pensado. No entanto, são, simultaneamente, a matriz de uma narrativa, do que pode ser formulado, pensado e, principalmente, considerado como os sinais por meio dos quais uma narrativa se desenvolverá, por conservar justamente o que não cessa de não ser pensado.

"Você é uma mulher ou uma flor?". Essa pergunta, que se orienta por meio da ideia de uma impossibilidade de união entre mulher e flor, parece criar em nós, repentinamente, a inglória tarefa de procurar conciliar essa tensão entre as palavras, unindo-as e, inevitavelmente, esquartejando-as. Na unidade parece haver a equivocada ideia de que os elementos não estariam mais esquartejados, mas uma unidade entre mulher e flor seria a dissolução da tensão que existe entre esses radicais.

 

O rébus e o sonho como ideograma

A narrativa, quando produzida por associações provenientes de ideogramas, parece permitir a alteridade desconhecida, como a força que a sustenta e a tensiona. Os ideogramas evocam narrativas ou cenas, como já nos disse Cheng (2011). Francesco, na formulação das palavras que exprimem a experiência da presença simultânea de mulher e flor, parece revelar o que seria a origem de uma narrativa.

Podemos nos lembrar que em A interpretação dos sonhos, Freud (1900/2006) discute sobre a enigmática narrativa do rébus, observando que a formulação do seu sentido poderia aparecer pela substituição de elementos pictóricos aparentemente isolados por palavras ou sílabas. Essa substituição, assim, daria àquilo que era apenas um elemento imagético, certa formulação verbal e o surgimento de uma frase repleta de beleza e significado. Seu interesse, como sabemos, era associar o rébus ao sonho, para falar sobre a tarefa do analista na interpretação dos sonhos.

Suponhamos que eu tenha diante de mim um quebra-cabeça feito de figuras, um rébus. Obviamente, porém, só podemos fazer um juízo adequado do quebra-cabeça se [...] tentarmos substituir cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. As palavras assim compostas já não deixarão de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de extrema beleza e significado. O sonho é um quebra-cabeça pictográfico desse tipo [...]. (1900/2006, p. 183)

Na interpretação, a tradução seria análoga à transformação da imagem em palavra. A intenção de Freud seria mostrar como o sonho, como um rébus, poderia revelar sentidos poéticos amplos e belos. Com essa intenção, Freud nos legou o caminho para compreendermos que uma composição aparentemente unificada, produzida pela reunião de partes isoladas, de elementos variados, parecia ser o movimento dinâmico de pensamentos inconscientes sobrepostos. E isto pôde ser observado por Freud quando compreendeu que a condensação (Verdichtung) era a reunião em imagem de uma polifonia de ideias inconscientes; o que o leitor atento dos ideogramas é convidado a admirar e a ler nos radicais polifônicos de ideias.

Há, sem dúvida, na formulação de uma frase poética de amplo significado, o cuidado pelo uso de palavras que mantenham a presença de uma alteridade desconhecida. Uma alteridade que indicaria, simultaneamente, um caminho de um pensamento que poderia ser pensado e nele a impossibilidade de ser pensado de modo completo. Sua poética consiste em indicar a beleza como aquilo que está diante de nós, sem que possamos apreendê-la inteiramente, pois ela sempre escapa de nós. Essa forma de revelar a beleza parece ser o que Francesco, ao indagar sua analista, faz: a beleza que se encontra na impossibilidade de unir em uma unidade elementos que não estão unidos, a beleza que se encontra na tensão e na relação entre dois ideogramas ou entre palavras que não puderam ser unidas em um sentido único porque estão, em sua tensão com as outras, assinalando para além delas a alteridade desconhecida do inconsciente. E, assim, Francesco indica-nos também que é necessário, para compreender essa comunicação em forma de pergunta, sermos "parteiros da comunicação entre dois estados de mente" (Bion, 1967/2000, p. 377), o que considera o sentido de cada comunicação formal, imagética, e o outro que, por meio disso, vislumbra o que há a mais, desconhecido, na experiência que está sendo comunicada. Podemos dizer que para cada cena vislumbrada, haveria ainda outra cena, sendo apenas aludida.

 

No "Túmulo das Musas", a morte da palavra?

Haroldo de Campos, em seu brilhante artigo "Ideograma, Anagrama, Diagrama: Uma leitura de Fenollosa" (1977), ao discutir sobre os chamados "harmônicos" fenollosianos, ou seja, a similaridade de imagens ou radicais presentes em um verso ideogramático, resgata a ideia de Décio Pignatari que, em sua leitura de Freud, destaca que a associação livre poderia ser pensada não somente como uma associação de ideias, mas como uma associação de formas (p. 105, nota 8). Essa associação de formas, que expressa o próprio espírito da poesia concreta, certamente poderia ser, por nós, também repensada em dois níveis distintos, mas complementares: o primeiro nível seria aquele já destacado em A interpretação dos sonhos, o de que as imagens dos sonhos seriam conglomerados de formações ideativas com a forma transformada, distorcida, por imagens muitas vezes justapostas, como a apresentação de uma condensação de ideias. Assim, uma única imagem de um sonho poderia expressar um conjunto de ideias diversas. Estas ideias, mesmo antitéticas, sob a lente aguçada do interpretador, poderiam ser reconstituídas para um sentido consciente – ou cada uma delas ou sua junção, na forma de um sentido comum – deste agrupamento inconsciente. Podemos perceber, assim, uma espécie de associação de formas, mas aparentemente subordinada às ideias que dariam a ela substrato. O segundo nível seria a associação de formas como uma somatória sexuada, a partir da qual duas formas distintas poderiam aludir a um terceiro elemento, designado a partir dos outros dois. Nesse segundo nível está a expressão mesma da construção do ideograma, não como um composto sintético, um terceiro elemento definido, mas como a expressão da inter-relação entre seus radicais. E com isso entraríamos certamente no vasto campo das construções em análise.

A relação que podemos estabelecer entre esses dois níveis nasce antes de uma crítica: quando pensamos no sonho como uma pintura de ideias, destacamos excessivamente o aspecto ideativo presente nele. O outro aspecto que poderíamos destacar (não em oposição a este, mas em acordo) seria o seu processo conjuntivo. Há, em A interpretação dos sonhos, uma dedicada e profunda referência a esse processo (em especial no capítulo 6). Mas, o que visamos destacar, é que quando duas formas estão justapostas, a interpretação tenderia a revelar fracionalmente quais ideias (separadamente) estariam presentes nessa imagem do sonho. Mas, caso enfatizarmos o aspecto formal, poderíamos manter a conjunção para aludirmos à presença do pensamento que pode ser evocado justamente por essa conjunção. Duas formas, sob esse ponto de vista, poderiam certamente formar não exatamente uma terceira forma, mas sugerirem relações fundamentais entre ambas (Fenollosa, 1936/1977)7.

Voltando à pergunta de Francesco, poderíamos dizer que, diante do assombro, em que duas palavras foram expressas (mulher e flor), há uma terceira – você – que Francesco também diz. Essa terceira, um pronome de tratamento, tenta, por sua vez, dar conta de uma experiência de assombro, em que uma das duas outras palavras tentaria dizer o que ela é. Mas o assombro presente nessa pergunta mostra que nem uma nem outra palavra cabem no pronome, pois são formas aproximadas de expressão da experiência emocional. Lembrei-me de um famoso ensaio de 1884, de R. W. Emerson (citado por Campos, 1977), em que há uma passagem muito interessante:

O poeta cria todas as palavras; por isso a linguagem é o arquivo da História e, a bem dizer, uma espécie de túmulo das musas. [...] conquanto esteja esquecida a origem da maioria das nossas palavras, cada uma delas foi, a princípio, um achado e obteve vigência porque, no momento, simbolizava o mundo para o primeiro elocutor e para o ouvinte. Constata o etimologista que a mais morta das palavras foi algum dia uma figura brilhante. A linguagem é poesia fóssil. (p. 34)

E, nessa passagem, Emerson parece oferecer um sopro do nascimento, da origem e da morte da palavra. Mais do que questionarmos se isso é, de fato, verdade, atinge-nos essas palavras por seu caráter mitológico, em que nos sugere haver a experiência de um achado na linguagem, a presença de uma figura brilhante que, no caso de Francesco, parece expressa pelo pronome de tratamento. Sua associação de formas, você, mulher e flor, parece ainda não se conjugar na formação de uma imagem. A palavra (poética) que poderia ser criada, como um achado, precisaria, antes de tudo, ser ideogramatizada, ou seja, ser feita como experiência metabolizada em forma. Da forma a palavra parece, assim, ser herdeira. Mas em qual forma caberia o assombro de sua experiência em forma de pergunta? Pensamos assim que entre a linguagem e o pensamento parece haver uma ligação essencial. No ideograma 好, por exemplo, a junção do ideograma "mulher" (女) e do ideograma "criança" (子), indica a expressão de "amor", e como o amor é bom, há uma extensão do significado do ideograma que transforma o seu sentido para "bom" (Chu, 1977). Podemos assim pensar: bom é o amor do encontro entre a mãe e o seu filho. Além disso, caso pudéssemos acrescentar o ideograma "flor" (花), teríamos 好花, ou "boa floração": um encontro amoroso que faz florescer. Esse processo de ideogramatização de uma experiência emocional seria o prenúncio de uma narrativa; a narrativa da experiência emocional florescente do encontro perturbador entre Francesco e Diomira.

 

Palavras magras, palavras frias

A palavra alfabética não ostenta a metáfora em sua própria aparência, como faz o ideograma. A linguagem, como poesia fóssil, em especial na linguagem ideogramática, por meio de sua visibilidade, desenvolve seu discurso como conglomerados de metáforas que vão, como na expressão de Fenollosa (1936/1977), se "[...] superpondo em camadas quase geológicas" (p. 138). A existência das interações das relações entre as suas camadas parece ser o próprio caráter dessa escrita, que muito se assemelha ao pensamento poético, um pensamento que opera "por sugestão, acumulando o máximo de significado numa única frase replena, carregada, luminosa de brilho interior" (p. 144):

Nossos antepassados organizaram os acúmulos de metáforas formando estruturas de linguagem e sistemas de pensamento. As linguagens atuais são magras e frias porque nelas nosso pensamento cada vez menos se adentra. Na busca da rapidez e da precisão, somos forçados a catalogar cada palavra na faixa mais estreita de seu significado. Dir-se-ia que a Natureza deixa progressivamente de assemelhar-se a um paraíso para lembrar cada vez mais uma fábrica [...]. Um estágio final da decadência é apanhado e embalsamado no dicionário. (Fenollosa, 1936/1977, p. 140)

Quando a linguagem torna-se menos apta para dar forma e conter um pensamento que se apresente por meio de metáforas que poderiam se expandir com mobilidade para serem capazes de se unir a outras formas, parece, desse modo, tornar-se menos receptiva e simultaneamente mais técnica. Os sonhos, como expressão mesma desse nosso mundo mental ideogramático, evocativo, composto de sobreposições de "metáforas geológicas" e palimpsésticas, talvez estejam diante de nós a cada noite para nos despertar de nosso adormecimento; para que, ao observarmos a sua natureza, possam alertar-nos para a magreza e frieza das palavras costumeiramente ditas por nós em nossa vida de vigília.

 

Referências

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Endereço para correspondência
RICARDO TRAPÉ TRINCA
Rua João Moura, 627ኙ,
05412-001 – São Paulo – SP
tel.: 3085 9176
E-mail: ricardotrinca@hotmail.com

Recebido: 01.11.2014
Aceito: 05.12.2014

 

 

* Psicanalista, membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Psicólogo. Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP.
1 Os ideogramas Kanji são ideogramas japoneses formados a partir de ideogramas chineses e dos caracteres silabários japoneses katakana, especialmente formulado para a transliteração de palavras estrangeiras, e o hiragana.
2 Ou "macho", segundo a tradução de Fenollosa (1936/1977).
3 A coisa em si ou a Realidade última.
4 Em termos matemáticos poderíamos expressar essa ideia dizendo que: 1 + 2 = 3n, sendo n o seu elemento indefinido e excedente, um a mais. O sinal de mais, nesse sentido, precisaria ser sexualizado (Bion, 2000). Os objetos matemáticos, como equações e fórmulas, são imagens das quais podemos extrair os movimentos guardados em seu interior, mantendo esse caráter ideográfico, ou seja, de uma imagem em movimento.
5 Podemos, no entanto, questionar o papel que certas palavras compostas ou mesmo certas palavras combinadas (tais como construídas por e. e. cummings em seus poemas) não tenderiam a suscitar evocações como os ideogramas, ou a serem equivalentes, pelo alfabeto, àquilo que designaríamos como ideogramas. Em nosso português usual, temos certas palavras que poderiam assemelhar-se a elas, tais como beija-flor, pé-de-cabra etc.
6 Pensamos sobre as fórmulas modais aristotélicas e a discussão feita por Lacan (1972/1985). Tanto aquilo que não pôde ser ainda pensado quanto o que não cessa de não ser pensado são designações de âmbitos do Real, embora cada qual se refira a algo particular. Das chamadas fórmulas modais, discutidas por Lacan, temos aqui, desse modo, o impossível e o possível, ainda em contraste com o necessário e o contingente.
7 Vale a pena dizer que Fenollosa (1853-1908) foi professor visitante de filosofia na Universidade Imperial de Tóquio, aos 25 anos de idade. Como professor, tinha a incumbência de ensinar filosofia e ciência política e logo se tornou conhecido como "professor dos grandes homens", pelo fato de ensinar apenas para um seleto grupo de alunos. Sua atividade como professor era, entre outras coisas, lecionar Hegel, e por isso podemos sentir a verdadeira força dessa expressão que citamos acima, já que ela parece destoar radicalmente de um pressuposto da dialética hegeliana, já que a síntese, como sabemos, seria justamente a expressão da formação de um terceiro elemento decorrente da tensão contrária de outros dois.