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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo Feb. 2015

 

EM PAUTA - MORTE DA PALAVRA?

 

Martim – pescador de palavras: a trama da linguagem em Clarice Lispector1

 

Martim – kingfisher of the words: the language plot in Clarice Lispector

 

 

Fernanda Mara Colucci Fonoff*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A trama da linguagem no tocante à concepção e ao enredo da obra A maçã no escuro (1961), de Clarice Lispector, é nosso fio condutor. A linguagem de Martim, entrelaçada à sua aventura interior – seu percurso pela e para linguagem, a fim de alcançar sua individuação, através do retorno simbólico à gênese do mundo, à gênese do homem e à gênese da criação literária –, é o que nos propomos a acompanhar de perto nesta análise. Para tanto, realizar-se-á o estudo do percurso de Martim, que se caracteriza, sobretudo, pelos movimentos narrativos de recuos assim como de avanços, ao qual denominaremos de movimento helicoidal. A fortuna crítica da autora, especialmente da crítica literária deste romance, unidas à teoria psicanalítica assim como à teoria literária, servirão como subsídios desta empreitada.

Palavras-chave: Psicanálise, Literatura, Linguagem, Clarice Lispector, Individuação.


ABSTRACT

The language plot related to the conception and the story of A maçã no escuro – The apple in the dark –, Clarice Lispector (1961) is our guiding thread. Martim's language entangled to his interior adventure – his way through and to the language, in order to reach his individuality over the figurative return to the genesis of words, genesis of the human beings and genesis of literary creation – is what we propose to come close to in this analysis. This is a study of Martim's journey marked by the narrative movement around the axis of time, which in turn is named a helicoidal movement. The critical fortune of the writer, specially to this romance, united to psychoanalytic and literary theory will serve as subsides to this course.

Keywords: Psychoanalysis, Literature, Language, Clarice Lispector, Individuation.


 

 

Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu próprio eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que persegue o seu próprio caminho na vida.
(Freud, 1989)

 

A maçã no escuro é o quarto romance de Clarice Lispector. À época, a autora já havia publicado Perto do coração selvagem, 1944; O lustre, 1946; A cidade sitiada, 1949; e os livros de contos: Alguns contos, 1952; e Laços de família, 1960.

Se nos detivermos, especificamente, ao plano das ações objetivas do romance, encontraremos a personagem Martim após cometer algum ato criminoso: ao iniciar a fuga, embrenha-se no "coração do Brasil", sem saber qual direção seguir. Apenas toma consciência de estar em um campo deserto, longe da civilização. Então, supõe: "hoje deve ser Domingo", alusão ao primeiro dia, segundo o mito judaico-cristão. Continua sua peregrinação pelos caminhos (re)descobertos de uma terra desconhecida e alcança as pedras, para as quais elabora um discurso, já que lhe pareciam homens sentados. Porém a tentativa de discurso se faz falaciosa e o narrador antecipa, o que será o eixo narrativo, a busca da personagem por algo original: "Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria".

Martim chega à fazenda de Vitória, mulher forte e decidida, que o contrata para serviços gerais. Depois que Martim instala-se na fazenda, recomeça solitariamente a (re)nomear objetos e a criar pequenas frases. Evita o contato direto com os moradores da fazenda, preferindo aproximar-se gradualmente. Aqui, a narrativa se aproxima do que entendemos como um breve panorama da evolução da vida no planeta Terra: seu primeiro contato fora com o reino mineral (com as pedras), depois com o vegetal (no "terreno terciário", nome dado ao terreno fronteiriço ao seu alojamento, e na horta), em seguida com o animal (as vacas no curral), para finalmente aproximar-se corporalmente da mulher e iniciar os diálogos com Vitória e sua prima Ermelinda.

No entanto, Vitória suspeita do forasteiro e pede, então, ajuda ao professor, figura que ela respeita. Este o investiga e em uma tarde aparece na fazenda a fim de revelar o que de fato Martim fizera e que ele próprio desconhecia. Martim, que se julgava criminoso, descobre então que havia tentado – sem êxito – assassinar a esposa. Ocorre uma espécie de julgamento privado no qual estão presentes o prefeito, o professor, os policiais e Vitória – representantes sociais da vida regrada.

Martim retorna ao convívio social, agora sob a forma de condenado, pois seu ato libertador, o de tentar matar a esposa para romper com a vida estereotipada, é julgado e nomeado como crime. Decide, então, escrever um grosso livro, enquanto estiver preso, cujo título será: Em homenagem aos nossos crimes ou Aos nossos crimes inexplicáveis. Deseja que seu livro seja um livro de palavras, muitas palavras, que deixará "inexplicado o que é inexplicável".

 

A construção de um mito: sem palavras?

Partindo desse enredo, acompanharemos a peregrinação de Martim pela busca de sua individuação, representada, aqui, pela recusa à linguagem comum e pelo esforço em direção a uma linguagem própria. Ao se condenar ao isolamento de tudo o que é comum à vida em sociedade, Martim se aproxima ferrenhamente, à sua revelia, da cultura humana, sugerindo a reapropriação de diversas tradições culturais, incluindo os textos religiosos: Livro Védico (Upanishad), "Antigo" e "Novo Testamento" da Bíblia; assim como também possui ecos científicos, em particular, com relação à evolução da vida no planeta Terra.

O percurso de Martim é, assim, confeccionado por alguns fios-ideias: sua história pessoal, a história da humanidade, a tradição cultural e as descobertas científicas. E a trama desses fios-ideias se dá em um plano narrativo tridimensional, nomeado, aqui, de helicoidal, ou seja, há o retorno ao ponto de origem para em seguida desdobrá-lo e complicá-lo novamente (Rosenbaum, 1999).

De uma certa perspectiva, o narrador acompanha Martim e "finge" despojar-se de seu passado para deter-se no aqui e no agora, acompanhando seu fluxo de consciência – alinhando-se ao narrador do romance moderno (Bakhtin, 1934/1988). Numa espécie de processo regressivo, Martim retroage de um mundo fixado em regras e leis para pretender renomear e reconhecer-se. Entendemos a proposta de Martim, ou seja, a travessia pela e para a linguagem na busca por sua individuação, como aquilo que Benjamin denominou de experiência, diferenciando-a da vivência (Benjamin, 1936/:1987).

O mito surge na narrativa como a busca da compreensão do mundo. Theodor Adorno e Max Horkheimer, em A dialética do esclarecimento, lembram que o mito serviu para a humanidade se libertar da opressão da Natureza, porém, progressivamente, o mito não dava mais conta de tal libertação. "[...] O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina" (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 23). Assim, se a razão prometia a libertação, ela escravizou, qual novo mito. Além disso, o mito nos aponta o vínculo de Martim com a cultura e com a sociedade de que ele julga poder escapar.

A reconstrução do mito individual, no caso, a existência da própria personagem, contém a revisitação de todo o seu percurso. O psicanalista Armando Ferrari, em seu texto "Indivíduo – universo dos mitos", fala sobre o processo de desenvolvimento do mundo interno permeado por narrativas de origem. Segundo o autor, o homem "[...] não pode descobrir o próprio mundo interno e defini-lo como sua consciência, a não ser sob a condição de pensá-la por meio, sobretudo, dos mitos pessoais dos quais advém a sua origem e a sua forma como indivíduo" (Ferrari, 2001, p. 311).

 

A falácia de um projeto autêntico

Martim é um pescador de palavras. Como o pássaro martim-pescador, a personagem sobrevoa o vasto mar léxico e em um mergulho certeiro deseja apanhar a palavra. Quer a palavra criativa, que expresse seu mundo interno. Da perspectiva da criação dessa personagem e de sua demanda pela (re)criação de si e do mundo, capturada a palavra em A maçã no escuro, Clarice Lispector a utiliza como ardil para apreender e sugerir a não palavra, como expressa anos mais tarde, em Água viva:

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente. (Lispector, 1980, p. 21)

Inicia-se a aventura pelo caminho da linguagem articulada em voz alta. Desse ponto de vista, Martim vivencia algo que é, centralmente, parte do projeto de Clarice Lispector. O trabalho de escritura da autora é definido como "o trabalho com e sobre a linguagem" (Machado, 1989, p. 119). A primeira fala de Martim se dá após ter rosnado para o pássaro negro, que encontrou entre um ramo baixo:

[...] "é, sim!" Cada vez que dizia essas palavras estava convencido de que aludia a alguma coisa. Fez mesmo um gesto de generosidade de largueza com a mão que segurava o passarinho, e magnânimo pensou: "eles não sabem a que estou me referindo"./ Depois – como se pensar tivesse se reduzido a ver, e a confusão da luz tivesse tremido nele como em água – ocorreu-lhe em refração confusa que ele mesmo esquecera ao que aludia. (Lispector, 1995, p. 27)

A linguagem torna-se parca e enigmática neste momento em que o homem depara com a própria existência e quer ressignificá-la enquanto tal. A alusão, como recurso de linguagem, é valorizada por ampliar a rede de significação, mas os recursos de Martim com o processo de expansão dos significados da linguagem e, portanto, da consciência, são escassos. O homem alude, mas esquece ao que aludia. E introduz ecos da fala de sua esposa: "– Você não sabe mais falar?" (Lispector, 1995, p. 27). Esse é o primeiro indício da sociabilidade anterior – com a qual rompera e que implicara a travessia também pela linguagem.

O domínio da linguagem convencional não lhe desperta interesse, pois ele parece saber do esvaziamento de seu significado e assim pretende lançá-la ao esquecimento. Assim, a conquista de uma linguagem própria passa pela tentativa de recusa radical à comunicação dialógica com os outros. "– Não sei mais falar, disse então para o passarinho, evitando olhá-lo por uma certa delicadeza de pudor". Prossegue afirmando, 'Perdi a linguagem dos outros' (Lispector, 1995, p. 28), e nota que "[...] alguma coisa estava lhe acontecendo. E era alguma coisa com um significado" (Lispector, 1995, p. 28).

Sua percepção parece radicalizar a aporia: seria impossível a personagem rejeitar plenamente a linguagem dos outros, aquela compartilhada socialmente, já que a duplica em seus próprios solilóquios. Além disso, note-se que ele, ao pronunciar, dirige-se ao outro, ao passarinho; abdica, apenas, da comunicação e do contato interpessoal – na busca por reinaugurar-se; duplica, ao projetar o (seu) outro na figura apequenada do passarinho, a mesma incomunicabilidade de que visara a escapar.

No entanto, Martim parece acreditar que, assim, rejeita seu modo antigo de significar o mundo e de denominar-se. E continua:

"Na verdade", pensou então experimentando com cuidado esse truque de defesa, "na verdade apenas imitei a inteligência assim como poderia nadar como um peixe sem o ser!" O homem se mexeu contente: imitei? mas sim! [...] E com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a idéia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a idéia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a idéia de existir; sem falar na concentração angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade – com uma cautela diária em não escorregar para um ato verdadeiro, e portanto incomparável, e portanto inimitável e portanto desconcertante. [...] Porque mesmo a compreensão a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras. (Lispector, 1995, p. 31)

No trecho, Martim, tateante, elabora suas reflexões sobre a imitação, a alienação e a palavra inserida no contexto social. Ao imitar o que é ser homem, Martim não era homem, mas sua imagem especular. A alienação de Martim, descrita como algo anterior a seu ato transgressivo, talvez possa ser compreendida, a posteriori, como sua incapacidade de valer-se do comportamento mimético para depois abandoná-lo. Se antes Martim imitara, mecanicamente, o que é ser homem, agora quer ser – e para isso precisa romper as engrenagens do viver automatizado. Inicialmente estudada por Platão e Aristóteles, a necessidade do homem de imitar o real, sempre retomada, foi reiluminada por teóricos como Sigmund Freud, Adorno e Horkheimer.

No contexto de A maçã no escuro, o conceito pode ser definido como aquele que limita os atos do indivíduo e o aprisiona na massificação. A mecanização do comportamento humano, tanto com relação às normas sociais como com relação ao próprio indivíduo, é discutida por esses pensadores. A dialética do esclarecimento enfatiza que "[...] com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reações e funções convencionais que se esperam dele como algo objetivo" (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 40).

Clarice Lispector, tanto nesse romance como em outros textos, recorre à ruptura do cotidiano pelo uso da transgressão: o caminho é o do mal. Este tema foi amplamente trabalhado por Gilberto Martins em As vigas do heroísmo vago (Martins, 1996), e por Yudith Rosenbaum em Metamorfoses do mal (Rosenbaum, 1999). Martim deseja que seu crime saia da banalidade e da palavra comum, para modificar-se em ato. Assim, seu crime deixaria de fazer parte da estatística da criminalidade no país, para significar algo verdadeiro, individual, único – numa espécie de ressignificação da palavra que retorna, miticamente (ainda que na esfera apenas pessoal), identificando-se com o ato. Com isso, instaura-se uma nova questão e se apresenta outro aspecto com relação ao significado de mimese.

Além de conter as ideias de alienação e de pulsão de morte, o conceito de mimese, neste processo interpretativo, inclui a necessidade de discutir o comportamento regressivo no processo de formação do sujeito e supõe romper com a prisão do esclarecimento e retornar à esfera do mito. Ao abandonar sua vida regrada na sociedade dita esclarecida, Martim deseja reconstruir seu mito pessoal, buscar o que o constitui como sujeito.

Junto a isso, retomamos a noção de poietiké como imitação. Segundo Aristóteles, "[...] Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar" (Aristóteles, 1981, pp. 21-22). Lembramos, ainda, que Walter Benjamin pensa o conceito de mimese não como regressivo, mas como transformador, principalmente na linguagem. "Essa faculdade (mimética) tem uma história, tanto no sentido filogenético como ontogenético. No que diz respeito ao último, a brincadeira infantil constitui a escola dessa faculdade" (Benjamin, 1987, p. 108). Parece ser nesse sentido – a imitação como a possibilidade de sua ampliação em simbolização, ou aquisição da linguagem – que se pode entender a mimese de Martim.

Martim regride – e imita os gestos supostamente "originais"; Martim regride – e seu corpo imita, ou revive, gestos da animalidade (em todo esse processo, os termos a ele dirigidos expressam ações animais – grunhir, pulo de macaco etc.). Ao fazê-lo, porém, no cerne da regressão quer dar o salto ao conhecimento.

A trajetória de Martim torna-se especial, segundo nossa percepção, por tratar da aventura trilhada em um percurso que se deseja totalmente inédito – o percurso de sua individuação –, oposto ao caminho socialmente estabelecido.

"Crime?" Não. "O grande pulo" – estas sim pareciam palavras dele, obscuras como o nó de um sonho. Seu crime fora um movimento vital involuntário como o reflexo do joelho à pancada [...] ./ Com deslumbramento, vira que a coisa inesperadamente funcionava: que um ato ainda tinha o valor de um ato [...] . Assim, com um único gesto, ele não era mais um colaborador dos outros, e com um único gesto cessara de colaborar consigo mesmo. Pela primeira vez Martim se achava incapacitado de imitar [...] ./ Em um minuto Martim fora transfigurado pelo seu próprio ato. Porque depois de duas semanas de silêncio, eis que ele muito naturalmente passara a chamar seu crime de "ato". (Lispector, 1995, p. 33)

Ao buscar romper com a comunicação estereotipada, Martim suspende predominantemente a relação com o outro e com a continuidade de suas relações objetais. E, de fato, desde o início, e antes mesmo de empreender a viagem por território desconhecido, Martim entra em contato consigo mesmo e deseja refazer o percurso inicial de sua individuação. Dessa forma, a ruptura estabelecida não diz respeito apenas à linguagem propriamente dita, se entendermos a forma final do pensamento como linguagem verbal. A personagem descobre, com a ruptura do ato, a vacuidade de certa linguagem dialógica e, a partir deste contato traumático com a sociedade alienada, inicia a travessia pela e para a linguagem.

"'Perdi a linguagem dos outros'" (Lispector, 1995, p. 28). Contudo, sua percepção parece radicalizar a aporia: seria impossível a personagem rejeitar plenamente a linguagem dos outros, aquela compartilhada socialmente, já que a duplica em seus próprios solilóquios. E acredita poder nomear algo original a partir de uma linguagem interior igualmente original.

O "ato de homem" significara destruir a vida anterior, de "imitação" como condição "para reconstruí-la em seus próprios termos" (Lispector, 1995, p. 124). Por isso o ato de julgar-se significa para Martim a nova condição – em recuo – para o passo seguinte. Julgar-se precede o ato de definir – processo novo – a vida reconstruída. Isso implica responder a "o que um homem quer" (Lispector, 1995, p. 123) e empreender a busca pela "grande reivindicação" (Lispector, 1995, p. 124).

"[...] Ele por enquanto estava se moldando, e isso é sempre lento; ele estava dando forma ao que ele era, a vida se fazendo era difícil como arte se fazendo" (Lispector, 1995, p. 137). A forma, como a lapidação de sua humanidade, não permite a finalização. Seu processo é lento, sua forma inalcançável. A gênese da arte implica a gestação da forma e da palavra exata; gênese do homem se refere à gestação e ao nascimento de uma vida tanto biológica como emocional. O nascimento da vida emocional, em sua complexa dimensionalidade, se dá com dor. E a dor do contato com a experiência emocional pode levar ao medo de se perder. "E se o caminho é longo, a pessoa pode esquecer para onde ia e ficar no meio do caminho olhando deslumbrado uma pedrinha ou lambendo com piedade os pés feridos pela dor de andar ou sentando-se um instante só para esperar um pouquinho" (Lispector, 1995, p. 138).

 

A busca pela palavra: processo ou fracasso?

"[...] Quem sabe se o nosso objetivo estava em sermos o processo" (Lispector, 1995, p. 166). A linguagem contém em seu bojo a cisão entre o homem e suas próprias experiências, assim como entre o homem e o outro.

Confuso com os limites entre o eu e o outro, Martim tenta coexistir a sua verdade com a verdade alheia. E ao ser questionado sobre os motivos que o levaram a cometer o crime, e frente à hipótese de seu crime ter sido passional, Martim elabora: "[...] A verdade dos outros tinha que ser a sua verdade, ou o trabalho de milhões se perderia. Não seria esse o grande lugar comum a todos?" (Lispector, 1995, p. 288). A personagem, novamente, se vê numa aporia – se se mantiver fechado em sua concha narcísica, perderá a riqueza do contato humano, e se se colocar aberto à interferência do julgamento social, também correrá o risco de ficar enredado na teia alienante. Então, utilizando recursos astuciosos como solução de compromisso, Martim aceita que seu crime seja lido como passional. O desafio de Martim, nesse momento, é reconhecer e respeitar sua individualidade dentro do grupo social. "[...] Fui até onde pude. Mas como é que não compreendi que aquilo que não alcanço em mim... já são os outros? Os outros, que são o nosso mais profundo mergulho!" (Lispector, 1995, p. 298).

Distingue sucesso de fracasso em sua travessia; reconhece seu processo e também suas limitações. Martim entra em contato com o discurso do outro – não mais como seu idêntico ou como seu rival, mas como ouvinte dessa alteridade (Bakhtin, 1988).

"Bem, toda história de uma pessoa é a história de seu fracasso. Através do qual... Ele, aliás, não falhara totalmente" (Lispector, 1995, p. 300). A ideia do fracasso, aqui proposta, nos conduz a outra reflexão: a travessia de Martim fracassa com sua prisão? Alguns autores (Nunes, 1995; Souza, 1980) acreditam que sim, que toda a travessia de Martim chega ao fim com seu retorno à sociedade e com a assunção do discurso cristalizado – a única forma de se tornar compreendido. Para nós, porém, a proposta inicial de Martim só fracassa na medida em que tenta realizar a travessia do alcance da individuação isolando-se socialmente. Entretanto, Martim atinge, por via dos fracassos parciais, alguns êxitos. Desse modo, sua travessia pode ser entendida como a da busca do inacessível e, nessa medida, é êxito, porque também o aproxima de si mesmo. Lembramos, aqui, da fala da jornalista Eliane Brum, na mesa 1, intitulada "Poesia & Prosa", da FLIP 2014: "[...] Para então descobrir de novo e de novo que a palavra não pode salvar. Que as palavras serão sempre insuficientes para dar conta da vida. Essa é a tragédia, essa é a graça. Dessa busca condenada ao fracasso que todos nós fazemos aqui. Mas ainda assim, de uma beleza tão pungente" (Informação verbal, 01 de agosto de 2014).

Ao acompanharmos Martim, passo a passo, ao longo de toda sua peregrinação, na tentativa de aproximar-se do que nomeamos individuação, notamos como seu projeto é falacioso. A principal dessas falácias diz respeito à sua premissa de que conseguirá atingir seu objetivo rompendo com a cultura e com os homens. Se concordarmos com essa premissa, teremos também que concordar que, no momento em que Martim é capturado pelos representantes sociais, e, assim, vê-se obrigado a retornar à normatividade civilizatória, seu objetivo não é atingido e toda sua peregrinação teria sido vã, pois ao fim do romance teria havido o inevitável fracasso.

Se nos perguntarmos se o retorno à "vida comum" seria a confirmação de seu fracasso ou se seu retorno configuraria que sua proposta é fracassante, teremos outro ponto de vista sobre o romance e sobre a peregrinação da personagem. Assim, ao questionarmos sua premissa, poderemos considerar que seu projeto, sendo anseio do impossível, contém o fracasso como momento da continuidade.

Martim percorre as dimensões do tempo e do espaço. Sua travessia inicia no indiferenciado, passa pelo cíclico, seguido pelo mítico e alcança seu tempo/espaço histórico atual. A literatura nos oferece, por meio da linguagem, a criação da imagem pictórica do processo evolutivo – tanto ontogenético como filogenético – do homem.

 

Referências

Adorno, T. & Horkheimer, M. (1985). A dialética do esclarecimento. (G. A. Almeida, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Aristóteles. (1981). Poética. In Aristóteles, Horácio & Longino. A poética clássica. (J. Bruna, trad.). São Paulo: Cultrix/EDUSP.         [ Links ]

Bakhtin, M. (1988). O discurso no romance. In Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. São Paulo: Hucitec.

Benjamin, W. (1987). O narrador. In Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

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Martins, G. (1996). As vigas de um heroísmo vago. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Nunes, B. (1995). O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Atica.         [ Links ]

Rosenbaum, Y. (1999). Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: EDUSP/FAPESP.         [ Links ]

Souza, G. M. (1980). O vertiginoso relance. In Exercícios de leitura. São Paulo: Duas cidades.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
FERNANDA MARA COLUCCI FONOFF
Av. Paulista, 1636, cj. 207
01310-200 – São Paulo – SP
tel: 11 3237 2031
E-mail: fmcolucci@gmail.com

Recebido: 15.10.2014
Aceito: 05.12.2014

 

 

* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mestre em Teoria Literária pela FFLCH-USP.
1 Trabalho baseado em Entre a fuga do social e a busca do individual: parcerias na leitura d'A maçã no escuro, de Clarice Lispector (2004), e na dissertação de mestrado Martim: pescador de palavras (estudo d'A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector) – FFLCH-USP (2002). Agradeço à Ivone Daré Rabelo por sua leitura atenta e pelas conversas animadas sobre literatura e psicanálise.