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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo Feb. 2015

 

EM PAUTA - MORTE DA PALAVRA?

 

Palavras náufragas: relatos de vida de uma moradora de rua em Brasília1

 

Castaway words: life histories of a homeless in Brasília

 

 

Pedro de Andrade Calil Jabur*

Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo
Sociedade de Psicanálise de Brasília
Universidade de Brasília (UnB)
Bolsista da Capes
Instituto de Ciências Sociais (ICS) – Universidade de Lisboa

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca apresentar a construção de um planejamento metodológico de uma pesquisa realizada com população em situação de rua em Brasília (Brasil), partindo da ideia de que um processo de pesquisa, mais do que ações instrumentais visando objetivos claros e percursos pré-definidos, também é uma forma de encontro, que envolve tanto situações concretas como fatores subjetivos e emocionais. A partir do relato de vida de uma moradora de rua busca-se discutir e analisar aquilo que chamamos de "palavras náufragas", indicadoras tanto da sua condição social e estrutural, como de suas vivências psíquicas e construções simbólicas. Nesse sentido, este artigo tenta construir um diálogo entre o material teórico e de campo e uma perspectiva psicanalítica acerca, principalmente, do trabalho analítico a partir da relação da dupla.

Palavras-chave: Situação de rua, Método psicanalítico, Relatos de vida, Pesquisa de campo.


ABSTRACT

This article intends to present the elaboration of a methodological planning of a survey about the homeless population in Brasilia (Brazil). It starts from the idea that a research process rather than instrumental actions searching clear and pre-defined pathways, it is also a way of meeting, that involves both concrete situations and subjective and emotional factors. From the life history of a homeless, we pretend to discuss and analyze what we call 'castaway words', that indicates both social and structural condition and psychic and symbolic constructions. This article attempts to build a dialogue between theoretical and field material and a psychoanalytic perspective based on the relationship of the analitical pair.

Keywords: Street life, Psychoanalysis methods, Life histories, Field research.


 

 

Introdução: desenhando um projeto

O projeto "Situações de rua: histórias de vida, vínculos e sociabilidade" teve início no primeiro semestre de 2013 com o intuito de realizar uma série de pesquisas, dentro do contexto acadêmico, com a população em situação de rua, envolvendo pesquisadores das áreas de Ciências Sociais e de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB).

Na tentativa incipiente de esboçar o desenho de um plano metodológico para essa pesquisa, nos deparamos com um questionamento – como se aproximar dessa população? – que se tornou indicador de nossos primeiros passos e nos auxiliou dentro do desenvolvimento do projeto.

A figura de um fantasma miserável, solitário e sujo, envergonhado de sua condição, deambulando delirante pelas ruas, permeava as observações iniciais do grupo. Imagens e questionamentos baseados em receios e medos, mas que continham, desde então, desejos e tentativas de delineamentos mais amplos acerca do ato da escuta, do convívio, da troca, de receber e ser recebido por esses estranhos maltrapilhos que vagam à noite, segundo pré-concepções recolhidas de nossas próprias fantasias.

Este intercalar de movimentos (concretos e emocionais) de aproximação e distanciamento, que transita, ao mesmo tempo e sem se contrapor, entre a vontade de se aproximar e o medo de escutar, e o medo de se aproximar e a vontade de escutar, representava tanto o percurso de nossas escutas como a tentativa de construção de um setting de pesquisa que nos possibilitasse, além de um saber ouvir próprio de um trabalho metodológico em pesquisa social, uma escuta mais atenta e sensível tanto das concretudes como dos sentidos e vivências emocionais dessas vidas a céu aberto na grande cidade.

De uma maneira geral, pode-se pensar em pesquisas que se aproximam e pesquisas que evitam se aproximar. Se, por um lado, essas primeiras aproximações continham temores, por outro lado, indicavam, claramente, como nos lembra Freud (1996), a familiaridade desse estranho e o nosso desejo de conhecê-lo, de tornar esse encontro familiar. É, justamente, através da tentativa de desenhar nossa avalanche de imagens não pensadas que podemos criar possibilidades de uma real aproximação, tanto da rua como de nossos desamparos em relação às pessoas que nelas vivem.

Dentro dessa dinâmica de trabalho, este artigo tenta construir um diálogo entre o processo de pesquisa de campo e os aportes psicanalíticos a respeito do trabalho clínico, buscando compreender as possibilidades de abertura crítica e sensível que o pensamento teórico-clínico oferece por questionar, constantemente, o encontro da dupla analista-analisando. Embora essa dupla possua especificidades e contextos próprios, muitos de seus movimentos nos permitem analisar esse processo de pesquisa sob uma perspectiva emocional e, portanto, viva (Ogden, 2013), não só por parte dos entrevistados, mas também em relação aos pesquisadores.

Le Blanc (2007), buscando retratar a tradição da escuta dentro das etapas de uma pesquisa social a partir de relatos de vida, lembra que Freud, ao relatar o jogo de carretel de seu neto, estava apresentando tanto o acontecimento da escuta psicanalítica em si, através do brincar da criança, como o próprio movimento de aproximação e distanciamento, inerente ao ato de estar disponível para a escuta do outro. Por isso, este processo de disponibilidade, tanto na psicanálise, como dentro do âmbito da pesquisa social, é elaborado por percursos que não podem ser separados e/ou hierarquizados: aproximação, distanciamento e escuta, assim como o próprio carretel, fazem parte do sentido de apreensão da experiência emocional e concreta da vida; uma escuta que perpassa o mero ato de ouvir.

É, nesse sentido, que o próprio funcionamento do fazer psicanalítico e da maleabilidade do mundo psíquico abrem espaço para que o processo de pesquisa se torne também mais criativo e sensível a esses movimentos de longe e perto que atravessam sujeitos e pesquisadores, a esse diálogo feito de muitas vozes.

Dentro do contexto da metodologia de pesquisa social, o sociólogo italiano Franco Ferrarotti (1983) tenta também demonstrar esse movimento de aproximação e distanciamento, ao explicar que entre os pesquisadores e os narradores existe uma relação direta, que por isso mesmo é frágil (no sentido pendular de distância física e emocional), imprevisível e problemática, sem qualquer tipo de resultado esperado. O que está em jogo, segundo o autor (1983), não são só palavras, mas gestos, expressões do rosto, movimentos da mão, a expressividade do olhar; um diálogo polifônico – com matizes concretas e emocionais – no qual nenhum dos presentes está excluído.

Em um primeiro impacto, estas histórias recolhidas nas ruas, gravadas ou anotadas em cadernos de campo, se apresentam como um despejo de miséria, pobreza, cheiros, delírios, medos e perseguições reais e imaginárias. É a partir de uma caracterização do antropólogo e psicanalista francês Patrick Declerck (2006) acerca da população de rua, que começamos a denominar esses relatos de palavras náufragas, tanto no objetivo de caracterizar a situação social e psíquica extrema vivida nas ruas, como pela intensa mobilização de vivências que surgiam ao escutar e construir os relatos juntamente com esses sujeitos. Uma história de quebras e rupturas – família, amigos, escola, trabalho, cidade de origem, Brasília, local de moradia; de palavras soltas que se perdem e, parecem, nascem perdidas em memórias e histórias pretéritas e presentes.

Relatos de vida de sujeitos em um processo de afogamento social e psíquico severos, construídos em um cenário, também de perdas, onde os cacos das palavras, misturadas aos ruídos, barulhos e cheiros da rua, enredam um cenário de afogamento; onde as palavras náufragas, na tentativa de serem ouvidas e mesmo compreendidas, acabam puxando quem as ouve para baixo; em uma espécie de afogamento (emocional) duplo. A transcrição de parte dessas narrativas tenta destacar este jogo de aproximação e distanciamento através da sensação, muitas vezes presente nos diálogos, deste afogamento duplo evidenciado em pausas mudas, que se misturam a verborragias, esquecimentos de nomes, pessoas, lugares, recusas, ruminações ininteligíveis, momentos de euforia e situações depressivas e agressivas.

A escuta dessas histórias recolhidas se assemelha a ouvir um único grande relato, com tintura majoritariamente dramática, no sentido colocado por Thomas Ogden (2013). As palavras náufragas, seguindo o raciocínio do psicanalista norte-americano (2013), são dramáticas, não somente no sentido de histéricas, chocantes ou mesmo teatrais, mas no senso de que essas palavras são únicas – específicas da situação em que se fala e para quem se fala –, íntimas e reveladoras de uma confiança de que aspectos e vivências de quem fala sejam reconhecidos ou mesmo acolhidos pela sensibilidade de escuta de quem as ouve.

Como coloca Le Blanc (2007), a voz precária é, por si só, uma voz barulhenta, marcada por palavras que perturbam, que quebram o ruído habitual da vida social. As palavras ruidosas dos excluídos estão presentes em seus relatos, mas se expressam através dos restos e das perdas, condição concreta de suas vidas, mas expressão simbólica da precariedade e da exclusão desses sujeitos. São também palavras em vias de se perderem; barulhos sem ecos, muitas vezes, solitários, pedidos de socorro inaudíveis, como expressa Bauer (2007).

As palavras náufragas, nesse contexto, nascem já em busca de socorros. São, ao mesmo tempo, palavras sobre perdas e palavras perdidas em um emaranhado de outros discursos e signos, palavras da rua e na rua, relatos sem abrigo, escondidos debaixo de pontes, em vielas, perambulando por outras cidades; perdas e sofrimentos carregados em sacolas plásticas.

 

Entre as palavras de perdas e as histórias que se perdem

Os relatos de vida não são um instrumento metodológico que se refere unicamente a um conjunto de fatos e à relação entre eles, mas inclui também o investimento emocional do narrador e também do pesquisador. Por isso, à medida que são relatados se tornam progressivamente objetos de análise, mecanismos interpretativos, tanto pelo próprio sujeito da pesquisa, em nível mais individualizado, como pelo próprio pesquisador, dentro de referências teóricas e, porque não, emocionais. É um relato dotado de uma afetividade particular justamente porque é por meio dele que o sujeito se reconta e se reafirma.

A experiência da precariedade, que é, também, uma precarização da experiência, segundo Le Blanc (2007), estabelece uma fala marginalizada destes relatos sobre a vida, muitas vezes sem amplitude e alcance, que, em sua condição miserável, se assemelha muito mais a ruminações; restos de palavras e memórias, afundadas, ou prestes a sucumbir em uma miséria de sentidos e reconhecimento.

Claudia Girola (1996), antropóloga franco-argentina, afirma que os relatos dos sem abrigos (denominação europeia para a população em situação de rua) são, inicialmente, sempre um contar, quase mítico, de histórias de perdas. A escuta dessas vidas deve tentar, como reforça a autora, a partir de uma atenção mais sensível, ultrapassar esse sentido primeiro de perdas, não para deixar de ouvi-las, mas para entrar em contato com outras palavras (justamente aquelas que não estão fixas) e, portanto, com outras construções de perdas e ganhos formadores de uma condição de realidade social e psíquica permeadas por faltas, mas que não deixa de ser humana.

Construir relatos para manter as palavras vivas, como explica Ogden (2013), para tentar apreender algo da experiência de vida e construir, a partir da dupla, um vínculo vivo no qual, por isso mesmo, as palavras são movediças, por conta de suas imprecisões e expressividades, e não fixadas por meio de um único significado. Corpos errantes (Frangella, 2004) e palavras errantes, brutas, muitas vezes escondidas.

Ao construir, dentro do contexto psicanalítico, a ideia de inconsciente, Freud, explica Ogden (2013), amplia o espaço da palavra, que se torna o principal instrumento de aproximação e também de barreira ao outro, inaugurando um tipo de comunicação sensível entre paciente e analista. Palavras que demandam um desejo de compreender e ser compreendido, e a escuta como via de acesso a esse desconhecido, não como deciframento de significado, mas a partir de associações, descoladas do seu significado concreto, descolado das palavras reais.

Como coloca Minerbo (2009), a escuta psicanalítica compreende uma maneira peculiar de escuta descentrada, fora da rotina da conversa cotidiana, pois tenta colocar em evidência representações da identidade, ampliando o repertório do paciente das formas de sentir, pensar e agir; tentando, enfim, captar a vida das palavras.

Na conversa analítica, explica o autor, os detalhes dissonantes e marginais permitem sinalizar a presença de outros sentidos e lógicas às palavras, mobilizando na dupla um repertório mais livre de associações. Essa escuta das dissonâncias, nas palavras de Minerbo (2009), parte em busca de elementos que se referem, também, a um funcionamento primário não verbal: estilo, estrutura da fala, sua função, clima emocional criado, a mobilização criada no analista na tentativa de recortar e recompor uma nova composição emocional para o paciente.

No mesmo sentido de Minerbo (2009), mas dentro da área de pesquisa social, Manuel Delgado (2007), antropólogo espanhol, afirma que a pesquisa na e da rua deve buscar evidenciar, justamente, as palavras e o sentidos marginais na tentativa de dar conta, não somente do significado concreto dessas enunciações, mas também do ritmo fluido e efêmero, próprio desses espaços urbanos. É preciso, segundo Delgado (2007), criar dispositivos de escuta que possam recolher as marginalidades dos sentidos das ruas; os restos de discursos destes seres que vivem de restos, de materialidades e simbolismos jogados na rua, abandonados, muitas vezes prontos para se afogarem e sumir no anonimato de rumos ignorados.

É a partir dessas perspectivas que a pesquisa, em vez de tentar esquadrinhar (social e psiquicamente) as palavras náufragas, tenta elaborar conjuntamente com esses indivíduos uma disponibilidade de fala e escuta dessas histórias; uma espécie de atenção flutuante em relação ao outro que está ali. Construir relatos para, quem sabe, também não se afogar.

Importante ressaltar que estas palavras náufragas, extraídas do relato de uma única moradora de rua, não nos permitem construir generalizações teóricas acerca das inúmeras e diversas vidas nas ruas, mas não impedem, todavia, uma análise crítica de como essas palavras náufragas são indícios de aspectos de vulnerabilidade e fragilidade social e psíquica que extrapolam o cenário meramente individual e subjetivo. Esses indivíduos vagam de emprego, de lugares, de "casas", de abrigos; situações sem qualquer forma aparente de continuidade ou de um projeto mais ou menos racional de vida. Mais do que uma forma de excedente social (Castel, 2003), esses indivíduos se caracterizam pela ordem aleatória de suas vidas e, portanto, de escolhas, sentidos e narrativas.

 

Lucimara: palavras a gente inventa, igual a nomes

Nossos encontros com Lucimara aconteceram entre maio e julho de 2013. No total foram 10 encontros, em sua maioria, curtos e permeados por interrupções abruptas. As gravações e anotações foram expressamente permitidas pela entrevistada.

Como demonstramos, a escuta dessas histórias tem como pano de fundo a construção de relatos de vida, de sociabilidades e sensibilidades das ruas, e, por isso mesmo, a liberdade que o trabalho psicanalítico oferece se torna, naturalmente, um dos instrumentos utilizados tanto no ato da pesquisa como na análise dessas histórias. Nesse sentido, muitas das construções, expressas ou não, que ocorrem durante os diálogos retratados, embora possuam tinturas e perspectivas psicanalíticas, não têm, em nenhum momento, qualquer intenção terapêutica.

Avistamos Lucimara, algumas vezes, andando com uma espécie de manto negro pelas redondezas do centro de Brasília. A aparência: cabelos longos, cinzas embranquecidos, carregando duas grandes sacolas, quase como uma bruxa. Passa o dia perambulando e, à noite, prefere, segundo ela, "as cavernas". Quando nos apresentamos pela primeira vez, estava já há algum tempo parada em uma espécie de vão, embaixo do viaduto de uma avenida movimentada.

Pesquisador (P) – Me chamo Pedro e estou fazendo uma pesquisa sobre pessoas que vivem na rua. Posso conversar com a senhora?

Sua primeira reação, nos parece, foi de susto ao ouvir uma voz com a intenção e o desejo claro de conversar com ela. Ficou em silêncio. De antemão, não sabia se a intenção era a de não falar ou de reflexão sobre o pedido, talvez um pouco inusitado, de se iniciar um diálogo com um estranho. Esse mesmo convite se repetiu em outras três tentativas. Embora, em outros lugares, nossos encontros, até então, se resumiram a esta resposta muda, leito de palavras, tínhamos esperança, não morta, mas ainda por ser gestada.

Na quarta vez, mudamos nossa forma de apresentação e, analisando a posteriori, parece, juntamente com a insistência dos pedidos, ter surtido um efeito. Perguntamos a ela se gostaria de se apresentar. Lucimara parece ter gostado de ser convidada a se apresentar.

(P) – Gostaria muito de saber sobre a sua vida. Não gostaria de sentar para conversarmos e você poder se apresentar?

Ainda retraída com o convite, Lucimara (L) começa a falar. Sua voz possuía uma frequência aleatória, que misturava palavras inaudíveis e outras com uma tonalidade mais alta, quase como gritos.

(L) – Sou Lucimara de deus dos homens. Tudo escrito assim, Lucimara com L grande e deus dos homens separado com letras pequenas. Porque eu não sou Deus, só uma serva que caminha atrás de luz. Não gosto que me chamem assim, de Deus. Sou deus dos homens.

Tentando conter a curiosidade, diante do incomum, perguntei a ela se era um nome de batismo (talvez querendo saber se era um nome de verdade. Mas, o que seria um nome de verdade?). Lucimara pareceu confrontada com minha dúvida ao responder a questão, pois logo depois encerrou nosso primeiro diálogo de forma abrupta.

(L) – Nome e sobrenome só meu mesmo. Não tem de pai, nem de mãe, nem de avó, nem do sertão. Meu nome é esse, cheio de formigas que "rancam pedaços dos dedos".

Ela mostra seus dedos sujos e lascados, alguns sem unha, pega suas sacolas e vai embora.

Dois dias depois, sentada em um banco de uma entrequadra, sem esperar qualquer fala minha, parece me reconhecer e se lembrar dos meus pedidos anteriores para que se apresentasse.

(L) – Você ainda quer que eu me apresente? Vou me apresentar então. Eu sou Deus dos Homens. Não sou mais Lucimara, nem Lourdes, nem Maria dos Deus. Sou dos Deus dos Homens, com maiúscula, porque sou mulher. Não é nome de mulher, mas é nome do Deus, Senhor Jesus, e assim ninguém acha, ninguém sabe. E é para ninguém saber mesmo, é melhor assim, porque não tenho que ser vista por ninguém.

Eu, que de uma primeira vez não quis saber/acreditar em seu nome, arrisco um novo pedido.

(P) – E você poderia me contar sua história?

(L) – Não tenho história não. Ninguém ouve ninguém fala. E palavras, palavras a gente inventa, igual nome. Toda hora, que nem gente, nasce nome e palavras.

Depois de um longo silêncio nosso, ela continua.

(L) – Minha vida na caverna é só mesmo para escutar [...]. Tenho 84 anos mais 14, menos 15, menos 30 e mais 12 por conta do marido que morreu. Soma isso, mais minha experiência com bordado e crochê. Sei escrever, ler e tudo o que é da vida está já escrito, a gente faz só morrer de encher a boca dessa palavraiada toda.

Ficamos em silêncio. Surpreso com essa multiplicidade de "palavraiada toda", arrisco novamente um convite, tentando, entretanto, integrar seu jogo de múltiplos nomes e idades.

(P) – Com toda essa idade, a senhora deve ter bastante palavraiada para contar.

(L) – Mas eu não acabei de contar minha idade para o senhor, não. Contando as formigas no pântano, no açude lá na casa da minha mãe, se somar tudo, devo ter 325 anos, arredondado. O mesmo número da loto, que meu marido ganhou e foi-se embora.

Embora as formigas que comeram os dedos de Lucimara me chamaram novamente a atenção, fiquei em silêncio. Lucimara se levanta novamente e vai embora. Esboço segui-la, mas desisto.

Em outro encontro, Lucimara começa falando, novamente, de suas idades, para depois ir embora novamente.

(L) – Sei que isso não. Meus dias são meus anos. 9 de abril, 9 de fevereiro, 5 de agosto, 37 de dezembro do ano do Nosso Senhor Deus. São os anos do povo lá da minha casa.

Pega suas sacolas e, sem se despedir, vai embora, me deixando, sentado, pensando em casa, datas, nomes, formigas que comem dedos; todos esses pertences. "Palavraiadas".

Em um novo encontro:

(L) – Hoje, mudei de novo. Meu nome é Lourdes de Deus de Jesus, Nosso Senhor e dos Homens. Hoje, amanhã é outro e depois outro e depois outro. O resto do nome eu esqueci, deixei guardado, mas na caverna, a gente guarda e depois perde desses 325 anos na rua, então perde mesmo.

(P) – Você me contou, da última vez, de sua casa, de seus filhos... (Pensando em suas perdas mais concretas.)

(L) – Tenho casa, não, senhor. Pois é de barro e a chuva passa e leva tudo. Levou os filhos, o marido. Sou só eu.

(P) – Não tem mais ninguém? – a questão parece ter chamado a atenção de Lourdes, que faz um relato grande.

(L) – Ninguém escuta não. Sou só eu mesma. Meus filhos nunca escutaram, foi por isso que fui para rua. Andei, andei, cheguei aqui a pé. Andava na estrada de noite por conta do sol, "dos avião". Mas aprendi que tem sempre onça na espreita, por isso fico quieta, quieta, tem ninguém para ouvir não. Nunca tem ninguém para ouvir. Mas o que eu sei fazer mesmo é olhar e escutar. Por isso estou aqui, passa muito avião e eu consigo escutar todos eles, escuto avião, helicóptero, carro de polícia, criança pequena, escuto vocês, escuto "as formiga".

Depois de um silêncio, continua:

(L) – Se eu me lembrasse onde deixei, mostraria RG e carteira de trabalho. Tava lá escrito, "costureira". De noite eu rezo, durmo, rezo de novo, alguém que já conhece? Você quer escutar minhas rezas?! É assim: "Que proteja, proteja, proteja, proteja essa serva, essa serva, essa serva. Proteja das onças, das formigas e dos homens. Ninguém ouve ninguém. Por isso Deus, ouça minhas preces".

(P) – Mas estamos aqui lhe ouvindo agora, não?

(L) – Mas o que você acha? Ouvem, mas tem como me guardar, tem como guardar palavras? Depois vocês vão embora, por isso é que não falo. Então o que você acha? Não tem ninguém para ouvir, então eu só escuto. Escuto aquilo tudo que falei, com "os ouvido" e com os olhos lá no fundo da caverna.

Nesse momento percebo um reconhecimento maior de Lucimara da nossa presença, pelo menos como ouvinte. Tento conversar com ela sobre ser escutada, mas, novamente, ela nos interrompe, indo embora. Em uma tentativa de se identificar e de se esconder, Lucimara parece se repetir cada vez de uma forma diferente. Nosso diálogo parece se basear nessa tentativa de apresentação de suas perdas. Em uma espécie de jogo de esconde-esconde com suas fantasias persecutórias, brinca conosco de criar nomes, talvez para dar conta de suas perdas.

Tentamos ainda encontrar com Lucimara, mas, segundo informações de comerciantes da região e outros moradores de rua, ela sumiu, falando que ia fazer uma viagem. Em uma de suas cavernas, havia um par de latas enferrujadas, que já havíamos visto com ela, esquecidas em um canto.

 

Catando palavras: considerações com rumos ignorados

A transcrição de um relato oral, ao ser materializado pela escrita, possui sempre, em sua essência, uma perda de expressividade e de momentos emocionais importantes. A história ou, pelo menos, a tentativa de se construir uma história de vida, juntamente com Lucimara, não é diferente.

Seu tom de voz, que se alterava a cada palavra, seu cheiro forte de fezes, suas roupas velhas, suas sacolas cheias de latas, ferros, papéis velhos e amassados; as palavras náufragas, como denominamos esses relatos, ficavam (e ainda ficam) impregnadas em quem as vive, cheira, vê e ouve. Invenções e ruminações; "palavraiadas" de datas e nomes que, ao mesmo tempo, eram boias de salva-vidas criativas e âncoras de submersão em um mundo miserável.

Nossos encontros se movimentavam em palavras (vivências) de vida e morte: a imagem de uma pessoa se debatendo, lutando contra um possível afogamento. Permeadas por relatos curtos, invariavelmente com finais repentinos e momentos longos de silêncios, nossas entrevistas foram sempre carregadas por emoções, incompreensões e angústias. Nesse sentido, o movimento pendular do processo de pesquisa de aproximação e distanciamento – remetendo novamente à imagem do jogo do carretel – é também um jogo de vida e morte, conhecimento e estranhamento.

Veena Das (2008), antropóloga indiana, sugere que a escuta de episódios de dor deva partir do princípio de que esses relatos são formados por palavras que demandam, a todo instante, reconhecimento e um espaço de disponibilidade concreta e emocional de escuta. Uma das preocupações acerca do trabalho desse tipo de escuta é justamente este sentido fragmentário que acaba por dificultar ainda mais a aproximação de quem sofre e de quem escuta esses sofrimentos. As dores (não suas causas imediatas e objetivas) não possuem um encadeamento lógico, a partir de fatos cronológicos, mas se espalham pelo corpo, pela mente e pelas palavras de quem conta. No espaço que se cria está a possibilidade de se construir formas e momentos de troca e acompanhamento. Por parte do investigador, ressalta Veena Das (2008), espaços de aproximação, compreensão e análise deste outro em sofrimento.

Ao ouvir novamente os relatos gravados, a voz de Lucimara parece realmente fugir de qualquer tentativa de apreensão; palavras difíceis de serem encontradas, como que escondidas, entremeadas pelos barulhos do mundo a céu aberto, carcomidas pelas formigas da miséria.

Nossos encontros no meio de ruas, em calçadas de avenidas movimentadas, sentados em algum banco ou raiz de árvore, foram momentos de coletas destas curtas conversas em vias de se afogarem ou de serem salvas, transfiguradas neste sentido disperso e fragmentado de um cotidiano sofrido. Até mesmo seu nome utilizado neste trabalho – Lucimara – parece catado de uma coleção confusa e dolorida, colocado em uma sacola plástica e talvez (já) esquecido em alguma de suas cavernas, afogado em misérias concretas e sonhadas. No meio de tantos, todos parecem nomes sofridos, tingidos pelo seu cheiro forte de abandono.

Talvez, o grande desafio dessas palavras náufragas seja acompanhar seus movimentos, a fim de poder escutá-las. Como coloca Ogden (2013), as palavras vivas de uma relação analítica parte da ideia, já estabelecida em Freud, de se apreender e acompanhar o movimento do mundo inconsciente. Palavras da e na rua, em movimento constante; frágeis, fáceis de serem mortas, atropeladas ou por afogamento. No entanto, ao mesmo tempo, possuíam a força de movimentar minhas emoções depois de nossas conversas, enquanto voltava para casa, abrigo que Lucimara há muito havia perdido e que, dramaticamente, parecia perder sempre e, por isso, sofrer sempre.

Por cerca de um mês, tentamos ainda encontrar Lucimara. Em um desses lugares-casa, sem nome, no meio da rua, umas crianças brincavam de esconde-esconde. Uma delas gritava que iria se esconder no fundo do mar, porque seu pai havia lhe explicado que lá não tem GPS. Realmente, no fundo do mar as palavras náufragas se escondem: rumo ignorado.

 

Referências

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Minerbo, M. (2009). Neurose e não neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação: captando algo humano. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
PEDRO DE ANDRADE CALIL JABUR
SEPS/EQS 714, 914 Bl. A, sala 328 – Ed. Porto Alegre
Asa Sul 70390-145 – Brasília – DF
tel.: 61 3245 4562
E-mail: pedrojabur@gmail.com

Recebido: 14.11.2014
Aceito: 05.12.2014

 

 

* Psicanalista em formação pelo Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo e associado à Sociedade de Psicanálise de Brasília. Professor Adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Sociologia (UnB) e coordenador do Projeto de Pesquisa "Situações de rua: histórias de vida, vínculos e sociabilidade". Bolsista da Capes, Proc. 1996/14-2. Professor Visitante do Instituto de Ciências Sociais (ICS) – Universidade de Lisboa.
1 Pesquisa de campo realizada em Brasília a partir do Projeto de Pesquisa "Situações de rua: histórias de vida, vínculos e sociabilidade", financiado pelo CNPq por meio do edital Universal de 2013. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília, em 10/07/2013, sob protocolo nº 330.731.