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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

ESPECIAL

 

Os véus e os esconderijos do tempo1

 

 

Alexandre Socha*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

 

 

Certas imagens provocam fascínio e nos convidam a sonhar para além de suas bordas. A força do seu potencial imaginativo faz com que a imobilidade fotográfica ganhe movimento dentro de cada observador, levado a criar e recriar narrativas ali meramente sugeridas. Se isso é válido para as fotografias artísticas, ou de alto valor estético, o é em igual medida para as "fotos de época", alçadas à mesma qualidade imaginativa das primeiras por remeterem a um passado longínquo e propício ao fantasiar. As fotos antigas, com sua inerente poética da transitoriedade, realçam a multiplicidade de tempos operando simultaneamente em cada registro fotográfico. O momento passado e já inexistente, encapsulado pela imagem, torna-se presente a cada olhar e, por essa mesma abertura, projeta-se também a um eterno devir. Bem sabemos que o antigo álbum de família parece mudar constantemente e ganhar novos sentidos com o passar dos anos.

Recentemente deparei-me com uma série de fotos do século XIX, reunidas por Linda Fregni Nagler em um livro intitulado The Hidden Mother (2013)2. São fotos de crianças no colo de suas mães que, de um modo um tanto improvisado, buscam ocultar-se da cena cobrindo-se com lençóis, tapetes, ou escondendo-se atrás de poltronas e cortinas; não raro fingindo inclusive ser as próprias poltronas e cortinas. A técnica fotográfica da ferrotipia, utilizada na época, exigia que o tempo de exposição de luz, para que a imagem fosse diretamente gravada na placa de metal, durasse em média vinte segundos. Tempo esse suficiente para que qualquer movimento borrasse a imagem. Logo, a presença tranquilizadora das mães contendo seus filhos tornava-se imprescindível, embora claramente indesejável aos propósitos da cena.

O contraste entre a calma obediente das crianças e o fato de estarem sentadas no colo de uma figura no mínimo apavorante a qualquer observador desavisado provoca mesmo espanto, seguido talvez de certo efeito cômico, suscitado por tentativas tão malsucedidas de disfarce. Porém, passado esse momento inicial, fui tomado por uma estranha sensação, como se das imagens emanasse algo sombrio e enigmático, ao que pude apenas associar à vivência de certo efeito inquietante (unheimlich). O termo, aliás, parece apropriado tanto aos retratos quanto ao que eles me despertaram, sobretudo se, como Freud (1919/2010), partirmos da definição proposta por Schelling: o inquietante é algo que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu.

Ainda tocado pelo impacto emocional proveniente do encontro com tais imagens, senti imediatamente a exigência de sonhá-las. O que primeiro veio à mente foi a célebre sentença de Winnicott de que "não existe um bebê", ou seja, de que com ele há sempre uma mãe por perto. Sentença que, ao propor uma díade inseparável, enfatiza a importância dada pelo autor ao ambiente no desenvolvimento humano3.

No entanto, permanecia algo de sinistro nas figuras sem rosto sustentando a fragilidade de bebês e crianças de colo. A sombra materna recaindo por sobre os filhos fez com que em meus devaneios também associasse essas imagens a uma espécie de encenação prototípica da melancolia, do indivíduo sustentado por um objeto que não está mais lá, exceto enquanto negativo, enquanto sombra. Seria a "mãe escondida" uma representação figurativa possível de uma "mãe morta", psiquicamente mortificada, com seu bebê?

Persistindo o estranhamento, a tentativa de tirar-lhes o véu levou-me, porém, a outra direção. Ao voltar-me à sequência de mais de mil fotos do livro de Fregni Nagler, dei-me conta subitamente de que, assim como nas "fotos de época" o tempo e o lugar retratado inexistem, também todas as pessoas ali retratadas há muito já se foram. O inquietante da impossibilidade de representação psíquica de certas experiências primordiais, tais como a ausência de um objeto primário vivo e responsivo, conduziu então ao inquietante provocado por aquilo cuja natureza mesma não seria passível de representação: não propriamente a mãe morta, mas a morte ela mesma. No texto já mencionado, Freud aponta desta forma o vínculo íntimo entre o unheimliche e o inconcebível da própria morte: "É certo que a frase 'Todos os homens são mortais' vem apresentada, nos manuais de lógica, como exemplo de proposição universal, mas para nenhuma pessoa ela é evidente, e hoje, como outrora, nosso inconsciente não tem lugar para a ideia da própria morte"4 (1919/2010, p. 361). Assim, se por um lado podemos assumir as fotos em questão como efígie de uma relação entre mãe e bebê, também poderíamos ver ali o retrato da própria condição humana. O entrecruzamento de nascimento e morte em cada uma das figuras presentes nos mostra no colo de nossa própria finitude, sendo por ela sustentados. Nascer implica caminhar em direção ao fim, na mesma medida em que as diversas mortes que vivemos são condições para novos começos. Somos aqui novamente remetidos à máxima winnicottiana lembrada, ecoando o desamparo e dependência que nos constitui humanos5.

A questão da finitude e sua transcendência pode ser igualmente encontrada no cerne da fotografia enquanto arte e registro histórico. Como observa Susan Sontag, "tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo." (1977/2013, p. 26). A dialética entre transitoriedade e permanência sustenta então a experiência fotográfica, permitindo-lhe ser renovada e renascer a cada novo olhar. Se uma das descrições possíveis da fotografia é a de uma forma altamente complexa de articular simultaneamente presença e ausência, visível e invisível, bem poderíamos reconhecer nesses despretensiosos retratos familiares um valor paradigmático do registro fotográfico ele mesmo. Um retrato do tempo em seus movimentos e, como busca demonstrar esse breve texto, um espaço para que cada um possa sonhá-lo a seu modo. Afinal, não seria o sonho uma das únicas maneiras possíveis de nos aproximarmos do irrepresentável?

 

Referências

Batchen, G. (2013). Hiding in plain sight. In The hidden Mother. London: Mack & Nouveau Musée National de Monaco.         [ Links ]

Freud, S. (2010). O inquietante. In Obras Completas (Vol. 14). São Paulo: Companhia das letras. (Trabalho original publicado em 1919).         [ Links ]

Sontag, S. (2013). Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das letras. (Trabalho original publicado em 1977).         [ Links ]

 

 

* Membro filiado do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
1 Imagens gentilmente cedidas por Linda Fregni Nagler, provenientes do livro The Hidden Mother, 2006-2013 (#0173, #0097). Reunião de 997 daguerreótipos, ferrotipias, impressões em albumina, instantâneos, dimensões variáveis.
2 O interesse por tais fotografias, promovidas inclusive a gênero fotográfico, pode também ser constatado pela sua publicação em diversos sites na internet, tais como o Retronaut (http://www.retronaut.com/2011/10/the-invisible-mother-1800s/) e o da artista Laura Shill (http://www.lauraleeshill.com/hidden-mother-image-of-absence/).
3 Vale lembrar que a importância da relação mãe-bebê é algo que ganha relevo apenas no século XX, e que mesmo a noção da infância como categoria à parte, em oposição à de "pequeno adulto", era ainda recente no século XIX.
4 Freud já havia se referido de modo semelhante à irrepresentabilidade da própria morte em suas Considerações atuais sobre a guerra e a morte, de 1915.
5 Batchen (2013), curiosamente, esclarece que era comum na época realizar retratos post-mortem de crianças, visto a alta taxa de mortalidade infantil. A presença das mães disfarçadas, portanto, não apenas atestavam aos parentes distantes a fertilidade do casal, mas também que seus filhos permaneciam vivos.