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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

ESPECIAL

 

Fóóóótô!

 

 

FranciscaVieitasVergueiro*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Com seus dedos longos, finos e ágeis de menina-quase-moça, unhas pintadas, cada uma de uma cor, ela havia anotado em seu iPhone o telefone do meu consultório. Eu não estava preparada para a foto que naturalmente viria a seguir – claro!, filhas de séculos diferentes, minha paciente e eu. Ela, nascida no berço tecnológico do século XXI, e eu, que aprendi a "datilografar" antes que a palavra digitar fizesse parte do nosso vocabulário cotidiano.

Sexto órgão dos sentidos, os celulares registram em sua memória necessidades do cotidiano: lista de compras, trajetos, o detalhe de uma fachada, a placa do carro que bateu, o machucado, a flor, a tatuagem – tudo o que queremos guardar, o que precisamos lembrar, o que desejamos mostrar a alguém.

Como extensão do corpo, os celulares conversam, têm boca e ouvido. "Falei pra ele que não queria mais, ele disse que tudo bem, nem ligou". Do meu lugar de escuta analítica, demoro a entender que a conversa foi por escrito – Whatsapp. Faltam-me os tons, os sons, os gestos, tudo o que daria alma a essa conversa. Mas eles sabem, apreendem, interpretam. Sentem o interlocutor por meio do texto escrito.

Estou me alfabetizando no universo da análise sem a presença do corpo. Ou melhor, como corpo presente por meio da voz. Atendo por Skype, em geral, nas análises que seriam interrompidas porque o paciente não está mais no mesmo lugar geográfico que eu. Mas a geografia do planeta mudou depois da internet – milhares de quilômetros e a transferência continua, viva e demandante. Prefiro não usar a imagem: recebo e cumprimento o paciente, desligo a tela assim que ele se"deita" no divã. Ficamos às escuras, ligados pelo som, a voz é nosso lugar de encontro. Um setting que vai se compondo à medida que a demanda começou a surgir. Percebo que a experiência me aporta uma escuta, nessa condição de distância física. Os silêncios, as pausas, os suspiros, sinais da angústia, continuam presentes, é possível apreendê-los e aprender a escutá-los, afinar os receptores para tal. Uma forma radical da posição do analista atrás do divã. Afinal, não estamos nós, analistas, sempre no escuro?

Os celulares, as câmeras, os computadores, vêm se revelando como dispositivos tecnológicos produtores de sentidos. Mais do que isso, transformaram-se em instrumentos de nossa capacidade de ouvir, olhar e pensar.

Imagino a sacudida que a invenção da fotografia, em 1839, provocou na arte. Como pensar a pintura no contexto em que a tecnologia poderia, então, reproduzir a realidade como ela é? Por certo houve uma reorganização no ofício: mapas, retratos, vistas de cidades e de campos, reportagens, ilustrações, trocam de mãos, dos pintores aos fotógrafos. Mas a crise, no sentido de ruptura como modo usual de se pensar a pintura, encontra dois caminhos: um deles sustenta que a arte é uma atividade espiritual, que não pode ser substituída por meios mecânicos; o outro, legitimando o conflito entre fotografia e pintura, postula a necessidade de clara definição entre as funções da imagem pictórica e da imagem fotográfica. Restaria à pintura, liberada de sua tarefa tradicional de "representar o verdadeiro", mostrar a originalidade de sua produção.

Estariam os impressionistas, pintando nas margens do Sena, imprimindo em pinceladas grossas, toscas, a luz, o brilho e as cores que lhes chegavam, tão distantes de minha jovem paciente, que em um movimento espontâneo captura um instantâneo daquela nossa última sessão?

Muitas tentativas foram e são feitas para colocar "a coisa" do inconsciente em imagem. Atualmente, produções para televisão procuram retratar o tratamento psicanalítico, chegando, no máximo, ao psicoterapêutico. As pessoas e pacientes assistem, comentam, parece que procuram a chave que abriria o segredo: a mágica da psicanálise. Pontalis relata que quando, em 1925, Abraham propôs a Freud um projeto cinematográfico, ele se opôs, com a seguinte observação: "Minha principal objeção continua a ser que não me parece possível fazer de nossas abstrações uma representação plástica minimamente respeitável" (Pontalis, 1991, p. 160).

Com a expressão "nossas abstrações", penso que Freud condensa todo o universo da psicanálise, da metapsicologia à prática clínica. Uma síntese impossível: a imagem fixa, o inconsciente pulsa.

"Fotografamos para lembrar, para proteger a experiência da precariedade da memória. Fotografamos para deixar o rastro da felicidade dos momentos vividos. Para afirmar aquilo que nos agrada, para cobrir ausências, para deter o tempo, e, pelo menos, ilusoriamente, adiar a inevitabilidade da morte" ( Fontcuberta, 2010, p. 40). A ficção seria, finalmente, acreditar que aquela fotografia, instantâneo testemunhal do último momento daquela análise, pudesse fixar o fluxo de tudo o que se passou ali, entre nós.

Não há gesto ingênuo na sala de análise.

 

Referências

Argan, G. C. (1992). Arte Moderna. São Paulo: Companhiadas Letras.         [ Links ]

Fontcuberta, J. (2010). O beijo de Judas: fotografia e verdade. Barcelona: Editorial Gustavo Gili.         [ Links ]

Pontalis, J-B. (1991). Perder de Vista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Schapiro, M. (2002). Impressionismo. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

 

 

* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.